Exposição no Colégio da Trindade, em Coimbra, percorre o sofrimento humano dos condenados à morte e o progresso intelectual dos pioneiros que defenderam a abolição da pena de morte.
Ao princípio, o enforcamento público de José António Domingues decorreu como tantos outros. Pendurado na forca de Tavira a 24 de Novembro de 1845, ficou a estremecer na corda durante 15 minutos — raramente os enforcados morriam em menos do que isso.
Quando finalmente foi dado como morto, o corpo foi retirado do patíbulo e transportado para o cemitério. Muitos em Portugal estavam habituados a ver a agonia prolongada dos enforcados. Mas ninguém em Tavira estava preparado para o que se seguiu.
Já no cemitério, perceberam que Domingues “respirava ainda”, escreveu três meses depois José Joaquim de Mattos na Revista Universal Lisbonense. “Deu-se parte à autoridade judicial e, enquanto se resolvia o que convinha fazer naquela delicada conjuntura, houve tempo de verificar pela observação de imensa gente que o justiçado estava vivo, porque continuava cada vez a respirar melhor, forcejava por desprender-se da corda que lhe atava os braços, conservava todo o brilho natural dos olhos e até fazia esforços para responder quando o chamavam pelo nome”, escreve o antigo juiz.
Condenado pelo assassinato de três pessoas (uma mulher idosa, a sua criada de 18 anos e um rapaz de 12), José António Domingues, que teria 22 anos, acabou por ser executado duas vezes.
“Passado por todo o bárbaro processo do suplício, o que levou um bom quarto de hora”, a seguir Domingues esteve “quase duas horas” a “lutar desesperadamente”, conta Mattos. “Até que um tiro mandado dar por mão do carrasco lhe cortou para sempre a vida!!” O juiz imagina três possíveis causas para esta insólita aberração: a incompetência ou a inexperiência do carrasco ou a “extrema e superabundante vitalidade do executado”. O caso chegou a Lisboa. Três semanas depois, o Procurador Geral da Coroa escreveu ao ministro dos Negócios da Justiça sugerindo que o ministro mandasse "advertir que em casos melindrosos” o juiz deve “preferir sempre” aplicar a lei e não “o próprio arbítrio”, e que “quando lhe ocorram dúvidas consulte o Ministério Público”. O tiro fora uma decisão de boa-fé, mas ilegal.
Sofrimento físico
Portugal estava ainda a 22 anos de ver abolida a pena de morte para crimes civis (para crimes políticos foi abolida mais cedo) — e assim ser pioneiro internacional — mas já havia claros sinais de mudança entre académicos e políticos. Além disso, o sofrimento humano dos executados causava horror nas populações. Nos 13 anos anteriores ao caso de Tavira, foram condenados 99 réus e executados 32 em Portugal. “Há relatos de multidões que fogem espavoridas”, conta Carlos de Sousa Mendes, secretário-geral do Ministério da Justiça e um dos comissários da exposição Condenados à pena última – 150 Anos da abolição da pena de morte, que foi inaugurada esta quarta-feira à noite no Colégio da Trindade, em Coimbra.
O magistrado-comissário dá o exemplo de Domingos Batista, um sapateiro com 21/22 anos condenado pela morte de José dos Santos na serra de Manhouce, em Vouzela, e enforcado no campo da Cordoaria, no Porto, a 23 de Julho de 1838. Depois da execução, ao ser lançado à terra, os relatos contam que “ele se movera, abrira os olhos e dava outros sinais de vida”, tendo sido levado para o hospital da Misericórdia, onde acabou por morrer. “Os enforcados morriam sobretudo por asfixia, não porque a coluna partia. Por ser uma morte lenta, o carrasco pendurava-se no condenado para fazer peso”, conta Sousa Mendes.
Na exposição, reproduz-se o relato do padre José Adão dos Santos Álvares, que assistiu ao enforcamento de José Begueiro, em Montalegre, em 1844. Ele estava lá, mas fechou os olhos. "A execução não a vi. Mas um choro geral e extraordinários alaridos dos espectadores anunciaram que tudo estava consumado. O cadáver foi pela Irmandade da Misericórdia conduzido ao cemitério da Matriz, acompanhado de quase todos os espectadores [mais de 5000] que em seus sombrios semblantes indicavam o terror."
Não faltam descrições do sofrimento físico e desumano causado pelas execuções. “O laço comprimindo obliquamente o colo do padecente não lho aperta logo a ponto de subitamente lhe fazer cessar a respiração”, escreve José Joaquim de Mattos em 1846. "O peso do padecente e do seu verdugo é que vai estreitando o nó, impedindo a comunicação do ar. E para isso mesmo mais pronto se conseguir, é preciso que repetidos esforços do executor, caindo e recaindo por muitas vezes sobre os ombros do justiçado, consumem a estrangulação e lhe acabem de todo a vida." O juiz Mattos é eloquente, mas está longe de ser original.
O progresso intelectual
Trinta anos antes, já o jurista António Ribeiro dos Santos (1745 -1818), considerado o primeiro abolicionista português, defendera publicamente que a pena de morte é “ir além dos limites da necessidade do remédio, é exceder a moderação e violar a Lei Sagrada, que nos manda não fazer maior mal do que o que nos é absolutamente necessário para a nossa conservação, para a defesa da nossa vida”.
Muito influenciado pelo italiano Cesare Bonesana, marquês de Beccaria — que em 1764, aos 26 anos, escrevera Dos delitos e das penas a defender a abolição da pena de morte — António Ribeiro dos Santos repete a ideia aí defendida de que a pena capital “não é nem útil nem necessária”. “Este livro foi decisivo para a mudança de mentalidades na Europa e foi um sucesso enorme de vendas. Teve 80 edições em pouco mais de 30 anos”, diz Carlos de Sousa Mendes. O tema era tão delicado que a primeira edição é anónima e não tem indicação do local de edição. Em Portugal há um único exemplar (na Biblioteca Joanina) e está exposto no Colégio da Trindade. É uma 2.ª edição de 1764, ainda não tem indicação do autor e inclui a menção (falsa) do local da edição (Mónaco, quando na verdade foi editada em Livorno).
Argumentos actuais
“É interessante ver que os argumentos usados hoje para combater a pena de morte são os mesmos que eram usados há 150 anos”, nota Inês Horta Pinto, co-comissária da exposição (tal como a professora de Direito Penal da Universidade de Coimbra Maria João Antunes e a designer Luísa Castelo dos Reis). “É um tratamento desumano e é inútil, não reduz a criminalidade. No Canadá, a diminuição dos homicídios coincidiu com a abolição da pena de morte. E há muitos outros exemplos.” Além disso, continua a haver execuções em que tudo corre mal, como vemos nos EUA, onde é possível assistir-se às execuções. Há hoje 90 países que ainda têm pena de morte na sua legislação — e 104 que a aboliram.
A exposição no Colégio da Trindade inclui vários documentos e objectos que contam parte da história da pena de morte em Portugal, sobretudo nos 50 anos que antecederam a abolição. Três exemplos: uma “bandeira dos condenados” (o estandarte que abria o cortejo a caminho da forca) e uma "campainha dos condenados" do século XVI. “Muitas vezes, o condenado ia para a forca numa cadeirinha, amarrado, com um irmão da Santa Casa da Misericórdia a tocar, outro a segurar o estandarte e outro a pedir esmolas”, nota Sousa Mendes. E inclui também a cabeça perservada em formol de um dos últimos enforcados em Portugal (Diogo Alves, executado em 1841, conhecido como o assassino do Aqueduto das Águas Livres), que nunca tinha saído de Lisboa.
"O que quisemos fazer foi homenagear 'o progresso intelectual' de que fala Alexandre Herculano, e dos que defenderam o fim 'dessa selvajaria chamada pena de morte', como disse no Parlamento o deputado António Ayres de Gouveia em 1863", diz o comissário. "Sabia que no século XIX se dizia 'morte natural'?! Os juízes escreviam 'condenado por morte natural'."
A exposição, inaugurada esta quarta-feira à noite pelo Presidente da República e pela ministra da Justiça, fica no Colégio da Trindade, em Coimbra, até Outubro. A seguir fará uma itinerância nacional.
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