“One trick-pony” é uma expressão inglesa que descreve pôneis de circo que só conhecem um truque. Usa-se a expressão também para descrever aquelas pessoas que só têm um talento e o usam em todas as circunstâncias. Parece-me uma boa descrição, também, de algumas auto-intituladas organizações da sociedade civil. Elas também só têm talento para uma coisa. O problema com estas organizações, contudo, é que quando insistem nesse único truque sem tomarem em conta aquilo que as torna necessárias e as legitima, elas podem se tornar nocivas. É sobre isso que vou reflectir neste texto ciente de que os defeitos do talento único vão encontrar maneiras perversas de distorcer o conteúdo.
Num momento em que os pérola indianos estão a lamber as feridas da amarga derrota sofrida em casa pelas destemidas Mambas pode parecer inoportuno levantar questões mundanas. Talvez fosse melhor juntar a minha voz à voz tipicamente pérola indiana e procurar argumentos que confirmem aquela convicção que muitos de nós temos de que não merecemos melhores resultados. Ironicamente, esta voz pérola indiana estabelece a ponte entre o desaire frente ao portentoso Madagascar e as O$C de talento único. A sua razão de ser é uma convicção profunda segundo a qual nós somos irremediavelmente maus, não merecemos melhor. Escusado será dizer que esta avaliação arrogante de “nós os outros” se aplica apenas aos outros, não aos que fazem a avaliação. Há um José Mourinho em cada um dos pérola indianos que lamenta a derrota dos Mambas da mesma maneira que há um doador (isto é, uma entidade competente e íntegra) em cada uma das O$C de talento único que critica o desempenho do governo. Moz é pura perda de tempo; os únicos que se safam são os que criticam.
Isto tudo é a propósito de mais uma campanha do Centro de Integridade Pública com o título “#-nãodevoaninguem”. Que as dívidas ocultas iam ser dia de campo para essa O$C não surpreende, claro. Se quisesse ser maldoso até diria que devem ter esfregado as mãos de alegria por lhes cair na agenda tema tão pertinente e mobilizador. Mas não vou dizer isso porque fica mal. Previsivelmente, o que o “spot” publicitário diz é que, primeiro, a pressão dos doadores, da imprensa e da sociedade civil obrigou o governo a “desocultar” as dívidas, que, segundo, o sumário executivo do relatório, trouxe “evidências” e “comprovou” que houve fraude em grande escala e que, terceiro, perante os “factos” a Procuradoria Geral da República tem que de imediato mandar prender os implicados ao invés de os proteger. Termina, também privisivelmente, proclamando-se a favor da transparência e da democracia e recorda ao cidadão que é seu direito exigir isso. Algo curioso no “spot” – que fala, presumivelmente, para os moçambicanos – é que é em português com legenda em inglês, língua oficial dos doadores, e não em nenhuma outra língua nacional. Mas esse é um detalhe.
Previsivelmente, também, sinto-me incomodado pelo “spot” e não resisto à tentação de o criticar mesmo sob o risco de a minha crítica ser vista como um atentado à liberdade de expressão dessa O$C. O “spot” levanta os problemas típicos duma O$C de talento único. Ela não se vê como parte do problema, mas sim e, de forma miraculosa, como parte da solução. Vejo dois problemas fundamentais no “spot”. O primeiro tem a ver com a forma como ele, consciente ou inconscientemente, viola um princípio fundamental do Estado de Direito, nomeadamente a presunção de inocência. O “spot” não exige que este caso seja esclarecido, exigência essa perfeitamente legítima. Ele exige que “culpados” que não passaram por nenhum julgamento sejam formalmente transitados em tribunal para confirmação da sua culpa e posterior punição.
Quem tem um entendimento tão tosco quanto o do CPI em relação ao Estado de Direito não vê nisto nenhum problema de maior. Antes pelo contrário, vê neste tipo de exigência a robustez duma cidadania activa que tem coragem para dizer as coisas como elas são. Nos países onde a sociedade civil contribui para a civilização do sistema político as organizações consideram sua obrigação sintonizar a sua acção com a protecção daquilo que as viabiliza. O que viabiliza a sociedade civil é um espaço de debate são que não faz da indignação militante e linchamento única razão de ser da participação cívica, mas sim a protecção da própria democracia. Em que é que este “spot” protege a democracia é uma questão que prefiro até não responder, mas espero que as minhas reservas estejam claras.
O segundo problema é ainda mais grave e já o tinha abordado num outro “post” neste mural. O nosso sistema político é representativo. Isso significa que ele está assente no acto de confiar um mandato a certas pessoas para agirem em nosso nome. A palavra chave é “confiança” que denota toda a fragilidade da democracia, pelo menos teoricamente e sobretudo em países como o nosso. Existe todo um aparato jurídico que determina as balizas da sua actuação, mas o problema é que esse aparato não nos dá nenhuma garantia de que essas pessoas não possam agir contra o nosso interesse por comissão ou omissão.
Teoricamente, o único que temos na mão é esse aparato jurídico para responsabilizar criminalmente as pessoas que violarem essas balizas. O que não temos, em contrapartida, é a possibilidade de fugirmos à responsabilidade que temos por os ter colocado lá. Os seus erros são os nossos erros, mesmo se tivermos votado naqueles que não ganharam as eleições. Portanto, é extremamente falacioso – em teoria democrática – imaginar que cada um de nós se possa furtar à responsabilidade de assumir os erros cometidos por aqueles a quem confiamos o poder. Uma OSC devia saber isso antes de andar aí a infectar a opinião pública com palavrões demagógicos do tipo “eu não devo a ninguém”.
É claro que cada um de nós é parte dessas dívidas, quer queira, quer não. Não é justo, claro, mas é assim mesmo. É a única maneira de viabilizar a política, pois sem essa protecção ninguém iria governar porque erros são sempre possíveis. Se todo o governo tivesse que andar preocupado com a possibilidade de ser responsabilizado individualmente pelas consequências de decisões que deram berro só aqueles que se consideram infalíveis – tipo algumas O$C e governos totalitários – é que chamariam a si a tarefa de governar. E, por favor, não me entendam mal. Não estou a dizer que todo o governo tem o direito de prejudicar o país como bem entender. Estou a dizer que a democracia representativa tem um funcionamento sui generis que precisa de ser equacionado por quem o anima.
Isto levanta uma série de problemas que não cabem nesta reflexão, mas que precisam de ser abordados. Um desses problemas é a questão da legitimidade do governo tendo em conta a forma como as eleições são feitas e como os partidos recrutam os seus militantes. Uma OSC genuinamente nacional tem que abordar este problema e colocá-lo no centro das suas actividades e de suas campanhas. A campanha tem que ir para além da legitimíssima exigência de responsabilização e colocar no seu centro a protecção da própria democracia, algo em que esta campanha, como muitas outras por parte dessa organização, falha redondamente. Não se pode contentar apenas em fazer aquele número único para a plateia de doadores que falam em inglês sob pena de contribuir para a inviabilização de todo o sistema político.
No fundo, é aquele problema com os Mambas. Só são equipa nacional enquanto tiverem bons resultados. Assim que perdem deixam de ser equipa nacional para serem esses falhados, “prostitutas” (como alguns escreveram no Facebook), “preguiçosos”, “burros”, etc., comandados por uma pessoa festejada há coisa de quatro semanas e que agora tem de ir às favas.
Agora vou me reclinar e apreciar as reacções previsíveis do nosso “one-trick pony”.
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