terça-feira, 27 de julho de 2021

Abater pessoas

 

Abater pessoas
Nunca foi fácil ser intelectual. Não é só em Moz. Em todo o lado. Não é porque intelectuais sejam arrogantes (eu sou). É mais porque há uma diferença importante entre intelectuais e demais pessoas. As demais pessoas pensam que sabem. Os intelectuais pensam que não sabem. Por causa disso, onde as demais pessoas param de pensar porque já sabem, os intelectuais entram em agonia para se certificarem que realmente sabem. Em reacção a essa agonia, o intelectual usa todos os meios ao seu alcance para reflectir sobre o que pensa saber. Por isso, não basta apenas dizer que as coisas são assim, ponto final. É preciso expôr o pensamento, aquilo que é preciso saber para se poder dizer alguma coisa, o que sustenta esse conhecimento, etc.
O que acontece muitas vezes é que esta agonia intelectual pode ser vista como arrogância por parte de quem desistiu muito cedo de pensar, ou, após ter dado o seu máximo, foi confrontado por quem conseguiu ir mais longe. Aí a pessoa sente-se atacada na sua auto-estima e ao invés de regressar ao seu pensamento e ver onde falhou, concentra-se no supérfluo, perde interesse pelos méritos das questões e procura fragilidades no pensamento exposto que não são relevantes para o argumento central. Muitas vezes a dificuldade de se ter um debate são na esfera pública resulta da reluctância que o ser humano tem de rever o seu próprio raciocínio. Esse é um luxo que um intelectual, (in)felizmente, não se pode permitir.
Só que aí o intelectual corre o sério risco de se tornar num anti-social. E muitas vezes é. Não é porque ele coloque a verdade acima de tudo, ou que seja a pessoa mais honesta e íntegra do mundo. É porque, necessariamente, quem fez da reflexão intelectual seu principal ganha-pão vai, por defeito profissional, ver fantasmas onde as demais pessoas veem anjos. Vai ver defeito onde os outros veem virtude. E vice-versa. Paga-se um preço muito elevado quando se procura ser intelectual. Não é o risco de ver as pernas partidas (que isso pode até acontecer com uma pessoa que não é intelectual). É o risco do isolamento, e aqui não me refiro ao facto de as pessoas se afastarem de alguém como se tivessem medo de ser contaminadas (ainda que isso me incomode, mas aceito, claro). Refiro-me ao isolamento a que sou votado pelos meus próprios pensamentos que se transformam num mundo próprio.
O que estou aqui a escrever parece fazer do intelectual um animal especial. Não é. O intelectual é uma pessoa que tem consciência duma verdade simples: não é fácil ser pessoa. Ou melhor, muita gente não tem consciência do trabalho que precisa de fazer para ser pessoa. Não digo ser boa pessoa. Digo ser pessoa, só isso! O intelectual usa essa verdade e aplica-a a tudo. Quando ele vê um pintor, vê também a distância que separa esse pintor do ideal de pintor. Quando vê um engenheiro, vê também a distância que separa esse engenheiro do ideal dum engenheiro. Quando vê outro intelectual (ou a si próprio), vê a distância que separa esse intelectual do ideal de intelectual. Quando vê um Presidente, vê também... E a ideia não é mostrar a imperfeição humana. É de perceber o que é preciso fazer para lidar com essa imperfeição ciente de que ela se comporta como o horizonte: quanto mais terreno ganhamos, mais ele se afasta de nós.
Ultimamente tenho lido notícias sobre a guerra em Cabo Delgado que cada vez mais usam o termo “abater” para descrever o acto de matar um insurgente. O uso desse termo tem tradição no nosso País. Lembro-me, há mais de vinte anos, de ter sido convidado pelo falecido Carlos Serra a participar num debate no Centro Cultural Franco-Moçambicano em Maputo. Já nem me lembro do tema. Só sei que saí do tema e lamentei o uso do termo “abater” numa reportagem jornalística sobre o que a polícia tinha feito a pessoas tidas como criminosas. As memórias da guerra da Renamo ainda eram frescas e eu achava que tínhamos a obrigação de purificar as nossas mentes, o que exigia a purificação da nossa língua. Duvido que tenha sido entendido pela maioria das pessoas que lá estavam.
Eu tenho consciência de que pessoas inocentes estão a ser vítimas de pessoas com sanha assassina lá em Cabo Delgado. Penso também que é obrigação das nossas FDS de garantirem a protecção de inocentes, o que pode envolver, por exemplo, a matança de quem mata. O que eu gostaria que a gente entendesse, contudo, é que o nosso direito de auto-defesa pode contribuir para nos afastar do ideal de pessoa. A auto-defesa, para continuar auto-defesa, precisa de ser temperada pela preocupação em trabalhar em nós próprios para que a guerra não nos desumanize. Vejo, infelizmente, esse risco, não só na forma como a morte dos insurgentes nos deixa indiferentes (são terroristas, né), como também na maneira como nos acomodamos dentro dum discurso de razão que nos dispensa de toda a reflexão moral.
Os “insurgentes” são pessoas e muitos deles são moçambicanos. São adolescentes e, provavelmente, adultos, que escolheram (ou foram forçados a escolher...) um caminho que fez deles alvos legítimos das nossas acções de auto-defesa. Há pelo menos doiss problemas morais aqui. O primeiro é: qual é a diferença entre o jovem moçambicano que presta “serviço” nas FDS, e o jovem moçambicano ao “serviço” dos terroristas? Para muita gente a resposta é simples. A diferença está no facto de um servir a pátria amada e outro servir interesses obscuros. Essa resposta parte do pressuposto segundo o qual no nosso País estas escolhas seriam assim tão lineares. Não quero ser mal entendido: servir terroristas é mau e precisa de ser punido. Mas uma sociedade onde isso é opção é uma sociedade que não está bem. Combater esses jovens sem reflectir sobre o que está mal nessa sociedade faz parte do processo de desumanização.
O segundo problema moral é: qual é a diferença entre um jovem das FDS matar um jovem inimigo e um jovem inimigo matar um jovem das FDS? Aqui de novo a resposta é simples: o primeiro mata de forma legítima enquanto o segundo é bandido. Mas será? Peguemos numa ideia “não bem fundamentada” (para usar linguagem presidencial), nomeadamente a ideia de jovens que respondem à sua marginalização com violência contra o Estado que deixou de ser legítimo aos seus olhos.
Os nossos jovens estariam a matar uma pessoa desesperada que teve a coragem (e o incentivo assim como oportunidade) de se opôr ao Estado. O “nosso” jovem é chamado a matar em nome dum Estado que ele sabe que não está nem aí para ele. Ele serve um exército mal equipado, é enviado como carne de canhão para o campo de batalha, a sua família não pode responsabilizar o Estado pelos seus erros, pelos erros dos seus oficiais, etc. Ele sabe que quando acabar a sua comissão o mais provável é que volte à incerteza do desemprego, falta de habitação, etc. Quanto tempo vai levar para que o “nosso” jovem se transforme no “outro” jovem?
Não me vou alongar. Eu acho que o Presidente não abordou estas questões devidamente no seu discurso. Assumiu uma atitude maniqueísta – dos bons e dos maus – que empobrece, moralmente, a nossa sociedade. Mesmo recusando falar das falhas do nosso sistema político e das nossas FDS (que fizeram com que o problema crescesse a olhos vistos), ele devia ter reflectido em voz alta sobre o perigo da nossa desumanização pelo nosso direito de nos defendermos. E não estou a dizer nada abstracto aqui. Sabemos todos dos relatos de violações de direitos humanos em Cabo Delgado protagonizados pelas nossas FDS.
Para mim, o estranho seria se isso não estivesse a acontecer. Militares sérios como há, de certeza, muitos nas nossas fileiras, têm consciência desse risco moral. Eles precisam dum Comandante-em-Chefe que coloque essa questão no topo da sua agenda. Precisamos de FDS que no acto de defender a pátria matam pessoas com um sentimento de reluctância e repulsa por um acto que os afasta do ideal de pessoa (e de moçambicano). Elas precisam de saber que no final de todas as contas estão a matar um ser humano. Um moçambicano.
Mas é o que eu disse. Não é fácil ser intelectual. Também não é fácil ser pessoa. Invejo quem consegue não ver assunto aqui.
Carlos Edvandro Assis, Santos F. Chitsungo ve 10 diğer kişi
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As omissões
“Como Chefe de Estado não hesitarei em tomar decisões que salvem a vida de cada Moçambicano”
Estas foram as palavras finais do discurso presidencial de ontem. Parecem-me, também, um bom resumo do objectivo daquela comunicação. A intenção não era de partilhar com a sociedade moçambicana o que se passa em Cabo Delgado e o que o governo faz para fazer frente à situação. O objectivo era de informar que ninguém, em Moz, tem o direito de interpelar o Chefe de Estado porque nessa função ele tem a prerrogativa de tomar as decisões que quiser. Resta saber se esta é a sua convicção, ou apenas o que os seus assessores pensam. Não coloco de parte a hipótese de ele não ter consciência do alcance das palavras que usa.
O discurso em si confirma isto. É notável pelas omissões do que pela informação. A primeira omissão regista-se logo no início. Ele diz que o problema começou em 2012 (altura em que ele era ministro da defesa), mas não diz o que o governo de então fez para alterar o cenário. Também não diz o que ele, depois, como Presidente, também fez para controlar a situação. A sua alocução dá a impressão de que o governo pura e simplesmente deixou que o problema crescesse. Um discurso que quer partilhar a situação de Cabo Delgado com a nação tem que falar disto. O que falhou para que o problema não fosse tomado a sério? O que não se fez bem para que o problema crescesse assim?
A segunda omissão diz respeito à destruição de vidas e infra-estruturas económicas. Ele simplesmente inumera o sendeiro de destruição, mas em nenhum momento fala do que as autoridades fizeram para contrariar a situação. Não indica o que falhou na organização das nossas FDS e das estruturas políticas para que os “terroristas” destruíssem como o fizeram. De novo, ele dá a impressão dum governo que ficou a assistir de forma impávida à destruição.
A terceira omissão é ao nível da definição do problema. Ele praticamente desprezou toda a pesquisa que se faz sobre este assunto colocando, por exemplo, a palavra estudiosos entre aspas no discurso escrito. Ele acusa os “estudiosos” de usar razões “nem sempre bem fundamentadas” e conclui: “Para nós, ainda não estão claras as verdadeiras motivações do terrorismo em Moçambique. A verdade incontornável é que ao assassinar pessoas inocentes e destruir infra-estruturas sociais e económicas, pilhar bens das populações e inviabilizar projectos de desenvolvimento, estão a criar terror.”
Isto é anti-intelectualismo barato. Ao descartar o trabalho de pesquisadores desta maneira, ele precisaria de dizer em que tipo de conhecimento se baseia para tirar conclusões diferentes das que são tiradas por “estudiosos”. Não é que isto me surpreenda. É muito característico do tipo de assessoria que ele parece privilegiar partir do princípio de que uma opinião nutrida pela pessoa certa vale mais do que um argumento fundamentado nutrido pela pessoa errada.
A quarta omissão surge quando ele parece estar a falar da guerra em si. Ele enaltece a valentia das FDS e alude, constantemente, à falta de meios. Contudo, em nenhum momento explica porque as FDS não têm meios e de quem é a responsabilidade. O cúmulo desta omissão torna-se aparente quando no mesmo fôlego ele festeja as victórias e a resistência das FDS sem explicar como os mesmos que não têm meios dum momento para o outro conseguem derrotar o inimigo.
A quinta omissão está ligada aos pedidos de ajuda. Em nenhum momento ele explica porque não viu a necessidade de consultar o parlamento. Ele refere-se a uma bacteria de instrumentos jurídicos internacionais e nacionais que não dizem nada sobre a sua competência, como Chefe de Estado, de convidar tropas estrangeiras para o País. Esta é a parte mais desonesta do seu discurso, pois ele dá a entender (ou são os seus assessores) que quem critica isto está contra o pedido de ajuda ou contra a presença de forças estrangeiras no País quando, na verdade, não é isso que está em questão. O que está em questão é a soberania, isto é se ela reside nele ou no povo. Salvo melhor esclarecimento, tenho em mim que esta reside no povo, logo, os seus representantes precisam de ser consultados.
Por último, a sexta omissão é sobre o papel que ele reserva à esfera pública (que é, na verdade, a sociedade moçambicana) nisto tudo. Ele constrói uma tensão fictícia entre unidade nacional e diversidade apelando para a unidade nacional como se não concordar com o que o governo faz (ou não faz) representaria uma afronta à unidade nacional. Não sei que interesse um presidente democraticamente eleito tem de exigir aprovação de tudo quanto faz, mesmo quando está evidente que ele não está a dar conta do recado.
O discurso teria sido uma grande oportunidade para ele criar canais de comunicação com todos aqueles que têm uma opinião fundamentada sobre estes assuntos. Imaginem a diferença que teria feito ele anunciar nesse discurso que criou um grupo alargado de reflexão composto por académicos e pesquisadores mozes no país que se ocupam destas questões para saber mais sobre o que têm apurado no terreno.
Há pessoas que ficam por cima do muro a assistir os extremos que parecem caracterizar a avaliação deste discurso. Não percebem o que está em jogo, nomeadamente o exercício da cidadania. Eu não interpelo o Presidente para mostrar que ele não vale nada. Interpelo-o porque como moçambicano tenho o direito de contribuir. A melhor maneira que encontro de fazer isso é interpelar criticamente a governação.
Governar não é fazer tudo certo. Governar é aprender dos erros para que quando voltarmos a errar as consequências não sejam graves. As dívidas ocultas só são um problema maior se não aprendermos delas. O meu receio é de que ao ser omisso em relação ao papel do seu governo na deterioração da situação de Cabo Delgado o Presidente mostrou claramente que não quer aprender dos erros e vê o País como propriedade individual. Não interpelar o discurso criticamente é promover a cultura de irresponsabilidade que cada vez mais tomou conta da nossa governação.
Mas, como disse num outro post, o que me dá esperança desta vez é que há um silêncio interessante da parte daqueles que em circunstâncias normais estariam a celebrar ruidosamente a mediocridade. Só falam os que estão de serviço.
Edio Matola, Constantino Pedro Marrengula ve 70 diğer kişi
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