quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Quando um partido detesta o País que governa

Quando um partido detesta o País que governa
Não é bem verdade que a liberdade de expressão protege o pensamento e, por essa via, a dignidade humana. A liberdade de expressão protege aquele que tem o poder de nos mandar calar a boca da sua própria falibilidade humana. Quando você tem poder você fica muito vulnerável às suas próprias emoções, o seu juízo fica toldado e, muito facilmente, você fica impenetrável à razão. Foi assim com Samora. Embora esta ideia tenha sido adaptada juridicamente à constituição política liberal, ela não é prerrogativa dos europeus. Em muitos sistemas políticos africanos, sobretudo na nossa região, havia aquelas pessoas que tinham a função de cantar louvores ao rei. Não eram lambe-botas como os temos hoje espalhados por aí. Eram pessoas cuja tarefa era também falar das fraquezas do rei para que este não perdesse a modéstia e, consequentemente, o discernimento.
Alguns porta-vozes (in)oficiais da “Nova Frelimo” não têm consciência disto porque o seu forte não parece ser interpretar as coisas. O seu forte é apenas defender alguma coisa, não importa qual, desde o momento que ela, aos seus olhos, proteja a prerrogativa do poder. Não são o tipo de militantes que dão vigor a uma organização. Destroem-na por tudo quanto fazem para a protegerem de supostos inimigos. Uma característica marcante deste tipo de porta-vozes é o instinto quase animal de reagir a uma interpelação crítica questionando a pessoa que a fez. Com isso, presta-se um mau serviço à própria organização, pois o que mais devia interessar a um partido não é quem disse o quê, mas sim o que o que foi dito significa para a sua organização. O que não está bem? O que deve ser melhorado? Se estiver tudo bem, bom, tudo bem, não há razão para pânico. Reagir à crítica tapando os ouvidos é uma grave recusa de ajudar a própria organização a ser forte e resiliente.
Dito isto, devo também confessar que não sou fã do tipo de jornalismo feito pela CartaMoz. Várias vezes critiquei a pobre qualidade das suas reportagens sobre a violência em Cabo Delgado. Há, para mim, graves violações do profissionalismo numa boa parte dessas reportagens – em duas ocasiões dei parabéns por artigos bem conseguidos, um dos quais, vim a saber mais tarde, tinha sido da autoria da Lusa! Nunca, contudo, me ocorreu sugerir que esse jornal fosse proibido de fazer o seu trabalho da maneira pouco profissional como o tem feito, nem mesmo me passou pela cabeça acusar o jornal de falta de patriotismo. Na verdade, não me ocorreu fazer isso pelas mesmas razões que me levaram, um dia, a criticar com veemência a intenção de processar o nosso físico nuclear pelas ameaças que ele andou a proferir contra gente decente no seu mural. Uma sociedade que só recorrendo à justiça é capaz de civilizar o discurso público é uma sociedade doentia. Deve ser possível, através do discernimento e decoro, levar as pessoas a respeitarem a sua profissão assim como a respeitarem também a dignidade dos outros.
O mau profissionalismo de certos jornais não coloca sobre o governo a obrigação de agir contra esses órgãos. Coloca sobre o cidadão a obrigação de ter mais discernimento. Coloca sobre os outros órgãos de comunicação a obrigação de prestarem melhor serviço para suprirem as lacunas dos maus. O mau jornalismo coloca sobre o governo apenas dois tipos de responsabilidade: um consiste em criar condições para que se faça um consumo responsável de conteúdos mediáticos. Como se faz isso? Investindo numa educação de qualidade. O outro tipo de responsabilidade consiste na introspecção sobre a sua própria acção e o que precisa de fazer para que conteúdos problemáticos não envenenem a esfera pública. Só estas duas responsabilidades. Um governo decente e com sentido de responsabilidade preocupa-se apenas com estas coisas, não com a perseguição de maus jornalistas. É mesquinho todo o governo que está preocupado em saber se as pessoas falam bem de si ou não.
Mas é justamente aqui onde está o problema dos porta-vozes (in)oficiais da “Nova Frelimo”. Eles sabem que o governo tem uma política de informação miserável em relação a tudo, especialmente em relação a Cabo Delgado. Se alguém reunir todos os pronunciamentos feitos pelas autoridades sobre Cabo Delgado não vai ter a possível dimensão real do problema (segundo o Comandante Geral da Polícia, há dois anos, o problema devia ter sido resolvido em dois dias!). Vai pensar que se trata mesmo de grupos dispersos de malfeitores que aterrorizam as populações. Existem, entretanto, vários estudos, mal e bem feitos, que dão conta dum problema gravíssimo. Em países onde os governos respeitam a sociedade o problema teria merecido uma informação detalhada que também partilhasse a estratégia que o governo desenhou para com ele lidar. Se calhar há muito que, em Cabo Delgado, devia ter sido declarado um estado de emergência para lidar com a situação. O que piora a nossa situação é que temos um principal partido de oposição com o rabo preso e que, por isso, nem pode interpelar o governo para exigir acção.
O que incomoda os porta-vozes, contudo, não é o mau jornalismo, mas sim a exposição das omissões do governo e da sua aparente perplexidade geral. Se você não informa quando podia informar e passa a vida dizendo “estão a mentir esses aí”, dificilmente você vai convencer a esfera pública que ela está a ser mal informada. Foi assim com a guerra da Renamo. Durante anos a fio a Frelimo manteve a população na ignorância falando de “bandidos armados”. Emitia aqueles comunicados trágico-cómicos que diziam “bandidos armados atacaram a Aldeia Comunal 3 de Fevereiro, queimaram habitações, raptaram dezenas de pessoas, roubaram várias cabeças de gado e fugiram em DEBANDADA”. Hoje fala de “malfeitores”...
O que esta discussão levanta para mim é algo mais fundamental do que a simples questão de determinar os limites da liberdade de expressão. Tem a ver com o entendimento que se tem do desafio de governação. A ideia predominante em Moz é de que governar é cumprir um programa de boas intenções. Não é que seja completamente equivocado pensar assim, mas é bastante limitado. Governar é criar condições para que quem tem boas intenções encontre espaço para as satisfazer. O estado moderno oferece uma ferramenta estratégica muito útil: a cidadania. Governar é reforçar a cidadania. Reforçar a cidadania significa garantir as liberdades consagradas na constituição (essa é a tarefa que o Presidente recebeu na sua inauguração). Dito doutro modo, todas as boas intenções contidas no programa eleitoral não valem sequer a folha de papel onde estão escritas se para a sua satisfação o governo se sentir na obrigação de atentar contra a cidadania. Parece difícil governar desta maneira, mas não é. É a forma mais segura de criar instituições fortes e ganhar a confiança das pessoas.
É por esta razão que considero profundamente confrangedor que o nosso governo dê ouvidos – e confiança – a “porta-vozes” que têm uma relação difícil com a decência democrática. É claro que um governo não pode passar a vida a se distanciar de toda a gente que presume falar em seu nome. O problema é que a essas pessoas foram confiadas funções importantes, o que significa que o governo não se sente incomodado pela sua companhia apesar de constituirem um perigo à saúde da esfera pública. Só que não é apenas o silêncio do governo que incomoda. É o silêncio de muita gente decente que simpatiza com ou milita na Frelimo, mas por medo, conveniência ou oportunismo fica calada, não se distancia dessas pessoas, nem exige que o partido o faça. Isso não é militância, nem disciplina partidária. É indiferença em relação ao País. Algumas pessoas que se dizem da Frelimo deviam ter muita vergonha de si próprias porque um partido que se sente bem representado – ou se deixa representar – por indivíduos da estirpe de Julião João Cumbane e Gustavo Mavie é um partido que, no fundo, detesta o País que governa.
Tão simples quanto isso.
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  • Sergio Serpa Salvador A digerir o texto. Uma aula gratuita.
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  • Gito Katawala Man!!
    What a lesson! 🙏
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  • Rildo Rafael O silêncio de muita gente e sobretudo dos militantes de certos partidos políticos é que "reproduz" os tais porta-vozes. Por outro lado, há sempre aquela ideia sobre o."poder da frelimo" artigo muito bem escrito por si Elisio Macamo que antecipou a expDaha Fazlasını Gör
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  • Rodrigues Tembe Obrigado pela aula Professor!
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  • Ricardo Santos A razão que te assiste è mais do que óbvia. No entanto, eu acrescentaria um outro ponto de vista resumidos desta forma: os Gustavos Mavie e os Julião Cumbane de um lado, e os Savanas e Carta de Moçambique do outro, merecem-se. Os primeiros são avessos a todo o tipo de crítica, os segundos são especialistas em críticas que não são críticas, são apenas ataques continuados contra quem está no poder, sem desfalecimento. Ou seja, os primeiros são avessos a qualquer crítica, os segundos querem fazer-nos acreditar que criticam mas apenas "dão porrada". A uns e outros falta uma ideia de país, uma ideia de moçambicanidade.
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  • Rui Costa Resumo tudo isso a uma generalizada falta de relação com os Avós ( com os 4) . Acham que tudo começou agora, não só repudiam essas figuras geneologicas, como não entendem serem parte de uma evolução geracional e social. O frenesim da arrogância e ostentação , da mera critica critica, como também das competências decisorias individuais ou de grupo restrito, revela muita falta de experiência em ouvir conselhos,opiniões ou novas " velhas ideias".
    E assim vai aqui a Zona ...
  • Gabriel Muthisse Elisio Macamo, já houve gente, na FRELIMO, que mostrou indignação contra ameaças de morte, contra o holigganismo, contra o bullying político que alguns desses indivíduos confundem com propaganda, mobilização ou defesa do Partido. E não foi uma, foram várias vezes
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    • Wa Ka Mabjaia Mas não passa disso. Deve até ser uma indignação vazia, “só para inglês ver”. O facto de essas pessoas ainda serem confiadas posições à mesa do poder - não importa o nível - implica não apenas aceitação mas legitimação e promoção delas e das suas ideias.
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    • Gabriel Muthisse Wa Ka Mabjaia, a FRELIMO é uma organização com perto de 4 milhões de membros. Não é uma igrejinha com cinquenta paroquianos. No seio de 4 milhões de pessoas é normal encontrar todo o tipo de pessoas, cada uma com as suas imperfeições e acertos.
    • Raul Junior Texto interessante. Acredito que os " porta-vozes" nomeados em alguns fora que a olhos de todos não passam de " não oficiais" vão ler e ignorar com sucesso a acessoria/consultoria que estão a receber. Fazem este carrasco serviço espreitando sempre uma vaga onde possam engordar que nem as vacas leiteiras. Assumem-se sabichões iguais aos faches!
    • Wa Ka Mabjaia Concordo consigo em parte. Mas discordo também. É diferente um Zé ninguém como eu, alguém que não tem aonde cair morto, escrever/defender extremismos por aí. Todos sabem/vêm quando se trata de fauna acompanhante; mas vêm também quando certas pessoas aparecem por aí com todas as asas para cima, como que mostrando que estão em missão, a falarem em nome do partido. E fazem-no aqui, nas rádios, nas tvs, nos jornais, etc. Volta e meia estão nos mais altos órgãos do partido, outra voltinha estão na direcção máxima disto ou daquilo... e continuam mostrando que não são apenas ovelhas tresmalhadas. Fazem o que fazem por mandato, oficial ou não oficial, formal ou informal...
    Yanıt yaz...

  • Custódio Mugabe Gostei deste texto Professor. Senti que o Gustavo Mavie exagerou. Dizer que apenas a RM e a TVM são órgãos de comunicação social sérios ofendeu a todos jornalistas moçambicanos, incluindo muitos que trabalham.na RM e TVM!

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

"Clã Nyusi" quase triplica património empresarial no primeiro mandato do Presidente


Em cinco anos, número de empresas com participações da família de Filipe Nyusi amplia de cinco para 14, segundo o CIP. Investigador diz que atuação do "clã Nyusi" se pauta pelo "secretismo".
Família de Filipe Nyusi (foto) amplia presença empresarial no seu mandato Família de Filipe Nyusi (foto) amplia presença empresarial no seu mandato
Nos últimos cinco anos, o número de empresas com participação da família do Presidente Filipe Nyusi quase triplicou. Segundo um relatório publicado pelo Centro de Integridade Pública (CIP) de Moçambique, Nyusi e os seus filhos tinham cinco registos empresariais em janeiro de 2015. No final do primeiro mandato, o número de empresas com participação dos integrantes da família do Presidente chegou a 14.
Depois de 2015, as nove empresas ligadas à família procuram estabelecer-se em setores estratégicos, como os recursos minerais, energia e agricultura. Algumas têm o objeto social amplo e desconexo, como a Motil, de Florindo Nyusi, filho do chefe de Estado moçambicano, que atua nos ramos de pesca e segurança. Esta empresa chamou a atenção dos pesquisadores do CIP por ter cedido a concessão de pesca à chinesa Nanjing Runyang Fishing Corporation.
A empresa mais recente da família é a Agropecuária Paroba, com sede no município de Namaacha, na província de Maputo. O empreendimento foi aberto pelo filho do Presidente, Ângelo Filipe Jacinto Nyusi, e pela primeira-dama Isaura Gonçalo Ferrão Nyusi no final de 2019.
 
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"Clã Nyusi" quase triplica património empresarial

Empresas "James Bond"
Os pesquisadores do CIP suspeitam que tanto a Motil como a Agropecuária Paroba são casos das chamadas empresas "James Bond", que têm registo comercial, mas não saem do papel até ao surgimento de algum parceiro estratégico com capital e know-how.
"Procurámos, mas nenhuma consta nos endereços que foram [registados] no Boletim da República, o que leva a crer que estas empresas possam estar à espera de um investimento para sair do papel. Também podem ser usadas como forma de branqueamento de capitais, porque as empresas estão registadas, mas não têm operacionalização", diz Egas Jossai, pesquisador do CIP.
Dos quatro filhos do Presidente, Florindo, Ângelo e Cláudia são destacados no relatório do CIP.
A Luxoflex, por exemplo, retomou às atividades em 2015, quando Cláudia Nyusi assumiu o controlo do empreendimento. Em 2017, a empresa especializada em mobiliário para escritório ganhou dois concursos públicos de fornecimento de mesas. Egas Jossai observou que a Luxoflex não entregou metade das peças solicitadas pelo concurso público.
O estilo do "clã Nyusi"
Para Jossai, apesar de os Nyusi reproduzirem a prática de famílias de outros presidentes em Moçambique, há uma caraterística própria do "clã" na transformação do capital político em capital económico. A filha Cláudia detém a gestão do maior número de empresas da família e permanece no anonimato. É diferente da filha de Armando Guebuza, Valentina, que se expunha à frente dos negócios da família.
"A família Nyusi tem pautado pelo secretismo. É diferente da família de [outros presidentes] que pautavam pela exposição das suas atividades empresariais", constata o pesquisador do CIP.
Armando Emilio Guebuza Präsident Mosambik Afrika Família do ex-Presidente Armando Guebuza teria outro estilo
A pesquisadora sénior de desenvolvimento social, pobreza e vulnerabilidade do Instituto Christian Michelsen, Carmeliza Rosário, lembra que, no primeiro mandato de Filipe Nyusi, o filho Florindo teve bastante espaço na imprensa.
Rosário concorda parcialmente com a tese de "secretismo" sugerida por Jossai. A pesquisadora considera que há outros fatores que possam levar o "clã Nyusi" a ser mais discreto na transformação do capital político em capital económico. Para Rosário, o momento de Joaquim Chissano e de Armando Guebuza era de crescimento económico e não de crise.
"Algumas dessas empresas [dos Nyusi] estão a espera de oportunidades, enquanto as empresas dos filhos de Chissano e Guebuza eram ativas no mercado. Eu acho que tem a ver com os contextos económicos e com o contexto das dívidas ocultas que requerem um outro cuidado", pondera.
Rosário destaca que este tipo de transformação de capital político em capital económico não é uma prática somente da família dos presidentes em Moçambique. "É algo que tem a ver com toda a elite política que tem acesso ao poder. E [há] até alguma vontade da oposição de poder ascender a este lugar onde se tem acesso à informação privilegiada, onde se tem acesso a um certo capital político que se pode transformar em capital económico também."
O CIP considera que o acervo patrimonial dos titulares de cargos públicos e dos seus familiares próximos deve ser submetido a escrutínio público e defende a necessidade de se alargar o número das pessoas pertencentes às famílias dos governantes que devem fazer a declaração do seu património. Egas Jossai sugere que o Ministério Público se deve esforçar mais para fazer este controlo.
 
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