quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Uma sociedade (in)civil

Uma sociedade (in)civil
Um grupo de OSC emitiu um comunicado declarando as eleições não livres, não justas e não transparentes porque, sustenta, “o partido no poder capturou e assaltou a máquina eleitoral”. O comunicado vem logo após notícias segundo as quais homens armados não identificados atacaram viaturas civis e tiraram a vida a algumas pessoas. O ataque não foi reivendicado, por isso não se sabe ao certo quem está por detrás dele. Sabe-se, contudo, que ele aconteceu numa região onde se sabe que há homens armados da Renamo.
Para mim, o comunicado das OSC, sobretudo, a sua linguagem, é grave. É duma insensibilidade que brada aos céus num momento tão delicado como este. Não é segredo para ninguém que houve muitas irregularidades nestas eleições. Eu próprio estou surpreendido com as margens da vitória, sobretudo ao nível das presidenciais e das eleições de governadores provinciais. Admito erros de raciocínio no que me levou a supor que a margem fosse ser menor. Embora aceitando a possibilidade de que as irregularidades tenham também enviesado os resultados, custa-me a acreditar que elas sejam a única explicação para o desaire sofrido pela oposição.
A linguagem do comunicado parece-me completamente irresponsável. Ela constrói a falta de credibilidade destas eleições com alegações. Começa por dizer, por exemplo, que o partido no poder “capturou e assaltou a máquina eleitoral”. Isto é grave, senão mesmo difamação. O facto de pessoas ligadas ao partido no poder cometerem irregularidades não implica necessariamente que o partido no poder “capturou e assaltou” o processo. Há membros da oposição que foram apanhados a cometer irregularidades. Organizações sensatas iriam concluir a partir daqui que o processo eleitoral foi afectado por irregularidades de vária ordem envolvendo maioritariamente pessoas ligadas ao partido no poder, mas também outras ligadas a outros partidos. Não seria apenas para respeitar a verdade. Seria para evitar atiçar os ânimos, sobretudo numa altura em que há violência pós-eleitoral. Não percebo quem estas organizações pensam que ganha com este tipo de insensibilidade.
Continua dizendo que estas eleições foram as mais viciadas e fraudulentas. Outra alegação irresponsável por duas razões. A primeira é que eles falam de “indícios”, logo, não de factos confirmados. Só o pronunciamento de tribunais ou de instâncias com competência para determinar se alguma coisa é irregular ou não é que nos proporciona uma base para falarmos com certeza. Existem procedimentos claros que tornam possível que isso tudo seja encaminhado às autoridades competentes. Se depois dessas coisas forem analisadas e essas autoridades confirmarem que, realmente, se trata de irregularidades, então haverá uma base para fazer este tipo de afirmação. Sem isso, os signatários da declaração estão a fazer agitação. A segunda razão é que comparações precisam de critérios. Qual seria o critério desta vez? O número de notícias de irregularidades? Como sabem se não sabem de que maneira é que essas irregularidades influíram nos resultados?
Prossegue estabelecendo ligações com as eleições municipais do ano passado, portanto, fazendo passar a ideia de que as irregularidades do processo fazem parte dum projecto de fraude de longo prazo. Pode ser. Ou não. Isto é, constitui razão para alguém suspeitar que algo não cheire bem, mas decididamente é pouco para vir a público pôr o processo em causa de forma tão bombástica. O mesmo vale para o uso excessivo de recursos do Estado, intimidação da oposição e da sociedade civil. No dia das eleições, o candidato presidencial da Renamo brandiu boletins de voto previamente “preenchidos” e acusou a Frelimo de fraude – ao invés de apresentar queixa dentro dos procedimentos previstos. Na verdade, ele estava, num certo sentido, a fazer campanha num dia proibido para tal e o facto de aliar os seus pronunciamentos à ameaça de não aceitar os resultados constituía uma forma de influenciar o comportamento eleitoral. Tudo isto faz parte de tudo quanto pode correr mal num processo eleitoral entre nós. Olhar só para o que parece beneficiar um lado não me parece responsável da parte das OSC.
O mais nojento nesta declaração é a insistência em associar o partido no poder ao homicídio que vitimou um observador em Xai-Xai. Sim, estão envolvidos agentes da polícia agora nas mãos da polícia. Existe a possibilidade real – que nunca houve noutros casos semelhantes – de que a verdade venha ao de cima. Porque não esperar por isso para fazer declarações públicas bombásticas? Porque incitar os ânimos? Se grupos de cidadãos conscientes vandalizarem a sede do partido Frelimo em Xai-Xai porque as OSC disseram que o partido é que mandou matar Matavele, os signatários do comunicado vão ficar felizes?
Os casos de impedimento ilegal de observação independente são fáceis de documentar. O mesmo vale no que diz respeito às falhas no cumprimento das regras de apuramento parcial. Que se reúnam estas coisas e sejam encaminhadas para os órgãos competentes. Se depois de as queixas serem processadas as OSC não estiverem contentes, ainda podem emitir este tipo de declarações. Ignorar todo o processo jurídico que deve ser observado e correr para os altifalantes para proclamar a falta de credibilidade do processo é, de novo, irresponsável.
Duvidar da idoneidade dos observadores internacionais e do Conselho Constitucional com base em alegações que deviam ter sido encaminhadas para as autoridades competentes para serem analisadas é simplesmente grave e, insisto, irresponsável. Praticamente, as OSC colocam tudo o que é autoridade em causa, retiram credibilidade ao Estado e só sobram elas como repositórios da honestidade e integridade. Parece-me suspeito. Achar que a constituição duma nova Comissão Nacional de Eleições por si garantirá um processo eleitoral “credível” é ingênuo, a não ser que a tal comissão seja composta pelos membros das OSC que, como se sabe, são o antro da virtude e da integridade no País...
Há muitas razões para se supor que estas eleições não tenham satisfeito os critérios desejáveis de transparência e respeito pelos procedimentos. Elas decorreram num ambiente de grande desconfiança não só entre os actores políticos, mas também entre militantes das OSC contra o partido no poder. Isto fez com que não houvesse discernimento suficiente para documentar todas as irregularidades como devia ser, resistir à tentação de acusar seja quem for e depositar confiança nos procedimentos. As OSC ao invés de serem um factor de estabilidade e de sensatez constituíram-se como factor de agitação emocional e política. Falharam estrondosamente no seu papel de moderadores do diálogo político e, com este comunicado, contribuem decisivamente para que a oposição não aprenda dos seus possíveis erros e, acima de tudo, para que haja violência pós-eleitoral.
Mais do que duma melhor oposição, o País precisa duma sociedade civil, não duma sociedade incivil (bélica).
N.B. incluo aqui o elo para a declaração em questão, também para que fique claro quem são as organizações signatárias. Nem todas as organizações que acompanharam o processo eleitoral são signatárias do documento, o que me parece interessante.
Comentários
  • Moulinho Lehuany No ultimo paragrafo esta a chave de ouro.
    1
  • Benedito Mamidji Também me preocupa ver as OSC fazendo o papel que devia ser da prerrogativa da oposição. A derrota que a Renamo e o MDM sofreram é demasiadamente grande para que se explique apenas pela fraude. Aliás, a alegação da fraude sempre existiu desde 94, no entanto os resultados nunca foram tão avassaladores como estes. A oposição precisa fazer o seu devido TPC, estabelecer metas e aprender a fazer política em épocas não eleitorais. Durante todos os cinco anos os presidentes da oposição não fazem uma aparição pública e esquivam-se de enfrentar os problemas - nacionais e sobretudo de conflitos internos (Simango geriu muito mal o caso Amurane e Dlhakama morreu sem deixar um herdeiro político credível). Bem analisadas as coisas, estes resultados não deviam surpreender. Não houve nenhum trabalho de base digno de registo pela oposição. Tenho para mim que, se as OSC se tivessem organizado em partido e concorrido teriam melhor desempenho que os dois partidos.

    Não me incomoda que as OSC se oponham ao partido no poder. O vazio da crítica e a pressão para a prestação de contas seria abismal. Sou adepto de muitas das campanhas que organizaram neste mandato de Nyusi, sobretudo em torno das dívidas. Incomoda-me que assumam a posição da oposição quando esta vive do erário público e faz pouco por merecer. Quem são os estragas políticos da oposição? Quem faz o plano de campanha? Quem prepara a campanha? Com que dados estatísticos e de opinião pública contam? Fizeram algum inquérito para saber a tendência de voto? E os níveis de abstenção, preocuparam-se com eles? Como chegar aos que não vão às urnas? Qual é a mensagem principal da campanha? Porque as pessoas devem votar neles? (tirar a Frelimo do poder por si só não é motivo nenhum, a questão é o que propõe que seja diferente?). E depois das eleições, quem é responsável por fazer o balanço? Quem faz o estudo para perceber porque os resultados foram o que foram e partilhar com os simpatizantes? Tudo isso precisa de um melhor entendimento de fazer política. Os estrategas de política não devem ser amadores ou gente com maior pujança de discurso. Os estrategas são estudiosos de política, de comportamentos eleitorais e de comunicação. Nunca soube de nenhum nome na oposição cuja função seja organizar o partido para as eleições e que tenha credenciais para tal. O caminho ainda é muito longo. Fazer oposição não é apenas acusar e alegar fraude. Dá muito trabalho!
    • Elisio Macamo é isso. concordo com muito do que diz. por acaso eu também não me sinto incomodado pelo facto de a nossa sociedade civil parecer ter preferências políticas. o que me incomoda é a maneira como isso afecta negativamente o papel útil que ela poderia desempenhar. este comunicado incomoda-me por ser politicamente inoportuno dada a violência que se regista e a necessidade que a oposição tem de encontrar um culpado externo para o seu desaire. agora, eu penso que a fraqueza da oposição é uma manifestação de problemas estruturais gerais. num país como o nosso, ter o controlo do estado constitui uma vantagem estrutural enorme com consequências asfixiantes para a oposição. será necessário encontrar maneiras de equilibrar o jogo se a gente quiser manter o sistema democrático saudável.
      4
    • Constantino Pedro Marrengula Elisio Macamo, prof, de facto, o controlo do Estado faz muita diferença. Atrai adeptos oportunistas e genuinos para o Partido que controla o poder do Estado. Torna o exercício da política na oposição um acto de muita coragem, num certo sentido arriscado. Talvez, seja por isso que em parte temos a oposição que temos. Os que podem ajudar a fazer oposição ou estão calados, ou encontram-se escondidos no activismo das OSCs. No caso do comunicado, achei estranho que o problema tivesse sido reduzido a reforma da CNE. Não imagino como isso se consegue, mantendo tudo o resto constante.
      3
    • Elisio Macamo Constantino Pedro Marrengula , concordo. é o que estava a tentar articular aqui. que o problema não é simplesmente da “fraqueza” da oposição. essa fraqueza é estrutural. na verdade, parte do comportamento das osc confirma algo que eu pensei que fosse acontecer e que discuti na altura com alguns amigos. pensei que a frelimo fosse perder atracção por não ser capaz de distribuir recursos do estado a todos e que assim sendo surgiria um espírito mais crítico dentro do partido. o que parece ter acontecido é que os potenciais críticos e descontentes foram parar num outro sistema patrimonial, a saber dos doadores.
      1
    • Benedito Mamidji Elisio Macamo subscrevo em absoluto com a tese das fraquezas estruturais. No texto que escrevi para o AfricanArguments antes das eleições observei que a oposição ia, como de todas as outras vezes, em posição de desvantagem. Mas é precisamente daí que o redobro no esforço de fazer política de oposição tem que vir. É ideal que todos partam da mesma linha. Mas essa não é a nossa realidade, e a oposição sabe disso. A questão é como é que ela se prepara para concorrer estando muito atrás da linha de partida. É preciso mais criatividade e acima de tudo, trabalho sério de base. Os problemas estruturais só servem de desculpa até um certo nível. Um partido com pretenções sérias não pode acomodar se com menos de 10% de votos num sistema tripartido. A Frelimo jamais vai largar a vantagem que tem pelo seu acesso aos recursos do estado. Se a oposição se quer relevante, vai ter que usar da criatividade para conquistar o seu espaço. Esta devia ser uma oportunidade para ela avaliar o seu papel.
      4
    • Azarias Chihitane Massingue Benedito Mamidji perfeito. Nestas coisas ninguém cede seu espaço voluntariamente, conquista se através de trabalho sério. Veja que depois de cada eleição perdem mais de metade do mandato ocupados em resolver problemas ja ocorridos. O seu oponente Ver Mais
      2
    Escreve uma resposta...

  • Mablinga Shikhani Grave aonde? São bíguis dotores aqueles. Sabem tudo (e não sabem nada). Desculpe a risada mas algumas coisas só merecem isto: uma triste e lamentável risada...
    1
    Escreve uma resposta...

  • Mablinga Shikhani Tenho dito e “puxado conversa” para este mimetismo político das nossas ongs, literalmente “Saciedade Civil” parafraseando Quino.

    Algumas, ongs e pessoas, estariam melhor representadas por hienas. Com aquele riso sinistro sempre à procura de confusão p
    Ver Mais
    4
  • Samuel Chacate Prof, não se trata de falha nenhuma as OSC são oposição sim ao partido no poder e nunca aos partidos da oposição de tal ordem que não podem ser embutidos de neutralidade axiológica para ajudar a si mesmas... aliás são repositórios de honestidade e integridade para tamanha e grosseira enviesamento ... ntla
    3
  • Dinis Chembene Antes mesmo do dia da votação uma "reputada" OSC promoveu a assinatura de um manifesto contra a fraude da FRELIMO, ou seja, desde o princípio foi isto. Então este comunicado não surpreendente, é apenas mais gasolina no fogo. Esta postura não ajuda em nada ao processo de consolidação da democracia.
    1
    Escreve uma resposta...

  • Antonio Gundana Jr. Ângelo Igor Niji, o que relatou no seu texto. Durante a campanha eleitoral a oposição se ocupou tanto em atacar discursivamente a FRELIMO que se esqueceu do seu projecto.

    Agora, depois das eleições, temos uma oposição que volta a repetir o mesmo proc
    esso. Quer dizer, para a oposição, o problema continua o mesmo: a FRELIMO.

    Como disse uma vez, o Prof. Elisio Macamo, a oposição não se faz alternativa. Não consegue vender seu peixe dentro dos princípios e valores democráticos. Não consegue mostrar, digamos, merecer ser escolhida no lugar do partido no poder.

    Tenho em mim que os "discursos de ataque" da oposição, produziu um efeito contrário. Ao invés de aproximar, afastou os eleitores. Não base sólida para comentar, mas parece que a tendência do voto que ditou os resultados anunciados foi a continuidade ou abstenção. Porque a alternativa não está sólida!
    3
    Escreve uma resposta...

  • Domus Oikos Tem olhos mas não vêem e nem pretendem ver. Irregularidades são irregularidades.
    1
    Escreve uma resposta...

  • Azarias Chihitane Massingue Reparem que em cada mandato perdem os primeiros três anos ocupados com eleições anteriores e o seu adversário apesar de ter máquina bem pujante não perde nunca o foco. As OSC (o CIP principalmente) deviam era acessora-los em fazer política a partir do termo de um processo com foco no seguinte. Ajudariam lhes a implantarem se efectivamente efectivamente em todo o território nacional. O único órgão que se ouve no entervalo das campanhas eleitorais é a bancada e, ou no Facebook. Células ou núcleos junto às comunidades nada. Se as tais OSC quiserem ser úteis à sociedade devem ajudar os actores políticos a se posicionarem, em vez de os ajudarem a chorar no vazio, por exemplo, o reconhecimento desta derrota por parte da oposição só rebustece a ela (oposição) e, alegar fraude quando sabem que não mereciam ganhar porque nada fizeram para isso, só lhe valor.
  • Ntumbuluka Mucavele "Mais do que duma melhor oposição, o País precisa duma sociedade civil, não duma sociedade incivil (bélica)." Na verdade ainda nos encontramos alguns degraus abaixo para cogitarmos uma eventual substituição da Frelimo no poder, precisamos como bem disse de uma oposição mais seria que se mostre suficientemente preparada para conquistar o poder; a cerca da sociedade civil na minha opinião ela não consegue fazer valer seu papel por razoes diversas (uma delas, foca-se em coisas erradas), e a sociedade moçambicana é que sofre com isso, porque as duas forças que deviam salvar a sua "alienação " parecem -me atadas para isso, consequentemente reclama-se mas sem nenhuma saída que não seja a Frelimo.
  • Reginaldo Mutemba A sociedade de grupos fechados resulta nisso. A academia num lado, os grupos de pressão (partidos da oposição e OSC) noutro, Governo à sua parte, com apoio incondicional do parlamento, CC, TA, TS, PGR. Com os antigos indígenas esperando do esforço de governo no sentido de… OSC e Partidos na oposição caricaturando os pobres como as principais vítimas apenas do governo. Assim, não vejo futuro de um Estado em Moçambique. Não podemos esquecer a história. 7/09/1974, Portugal entregou o poder exclusivamente para a Frelimo. A forma como esse poder está sendo exercido é o que toda gente vê. Mas, se quisermos construir Estado, os Grupos de pressão (Partidos Políticos e OSC) deveriam ter capacidade de mobilização em oposição à capacidade de ataque ao governo. Deve penetrar nos meandros governamentais mostrando que pretende um Moçambique melhor para todos, onde as pessoas que reivindicam ter herdado o poder do colono, sintam se representado nas utopias lançadas. Conseguir mobilizar toda gente em torno de um ideal. Buscar alianças de líderes de influência dentro dos partidos, onde a ideia de Estado é pensado. Polarizados insultando-nos, não iremos para nenhum sítio. Clima de confiança em todos. Aqui a ideia de separação nítida entre o governo e a sociedade civil não cola, provavelmente por causa da desconfiança.