Os nossos entrevistados
Este assunto não me larga. Qual é o estatuto exacto de entrevistas como fontes de dados? Para que servem? Podemos partir do princípio de que os nossos entrevistados são uma espécie de “proto-cientistas sociais” que nos explicam o mundo social? Quanto mais trabalhos de ciências sociais leio, mas convencido fico de que esta é a suposição que fazemos. Parece-me problemática, pois a própria entrevista é uma situação social bem específica. As pessoas reagem às nossas perguntas, ao que elas acham ser a nossa intenção, posicionam-se em relação a nós, mas também em relação à uma audiência ausente, assumem vários papeis e, basicamente, usam o depoimento como forma de criar um mundo bem específico ao momento da entrevista.
Volto à carga depois de ler um relatório de pesquisa publicado pelo IESE sobre o que os autores (João Pereira, Salvador Forquilha e Saide Habibe) chamam de “radicalização islâmica” em Mocímboa da Praia. Numa altura em que precisamos de trabalhos de pesquisa sobre a violência em Cabo Delgado faz muito bem ler trabalhos desta natureza, ainda para mais escritos por pesquisadores de mão cheia. O relatório reproduz vários depoimentos que dão uma ideia da complexidade do assunto. Era tão bom se houvesse maneira de criar um acervo de dados acessível a todos pesquisadores e que permitisse, por exemplo, o armazenamento das entrevistas completas (incluindo as perguntas dos pesquisadores).
Trata-se, segundo os autores, dum estudo exploratório que faz parte duma linha de pesquisa que está a ser iniciada sobre estado e violência. Parece-me uma excelente ideia. Do ponto de vista teórico e analítico o trabalho deixa muito a desejar, mas pode ser que com o tempo melhore já que ainda se está na fase exploratória. O principal calcanhar de Aquiles é a natureza circular da tese. Faz-se um trabalho exploratório para entender o que se passa, mas parte-se do princípio de que o que se passa é a radicalização islâmica. Isto faz com que os pesquisadores façam incidir toda a sua pesquisa na demonstração dessa tese. Isto é patente em dois momentos.
O primeiro momento é o da escolha da orientação teórica. Os autores usam o conceito de “radicalização” na sua dimensão de “causação”, isto é de como ela reflecte uma reação de pessoas a factores que fazem com que elas aspirem por um outro tipo de sociedade. É evidente que com esta decisão teórica todo o trabalho fica sujeito ao viés de confirmação, algo bem patente na forma como os questionários parecem enviesados a favor da demonstração duma suposta radicalização islâmica. Sintomaticamente, tudo o que os entrevistados dizem parece confirmar o que os pesquisadores querem ouvir. Não me parece prudente organizar uma pesquisa desta maneira.
Pelos vários excertos que o trabalho contém dá para perceber que ainda que a tese da radicalização faça sentido, ela é uma redução grosseira duma situação política, social e económica complexa. Há muito mais coisas que estão a acontecer lá e que escapam aos pesquisadores porque eles estão concentrados na confirmação do palpite sobre a radicalização. É neste ponto que regresso à minha preocupação com o estatuto de entrevistas na pesquisa. Parece evidente que os pesquisadores aqui usam os depoimentos como relatos de colegas pesquisadores que “explicam” a “radicalização” aos seus”colegas” oriundos de Maputo. Os excertos são apresentados sem as perguntas dos pesquisadores e sem a devida contextualização das condições em que as respostas foram dadas. Parece tudo limpinho.
Vou dar um exemplo particularmente interessante. Os autores falam dos jovens que se juntaram aos insurgentes e a dado momento reproduzem o depoimento dum jovem cujo irmão se foi, mas ele ficou. Ele diz o seguinte “O meu irmão não queria ouvir os nossos pais. Dizia que eles eram velhos e não sabiam nada do Islão e iam a mesquitas de um sheik que nem de Alcorão sabia. O meu irmão esteve fugitivo por não querer ouvir os conselhos dos mais velhos. Tudo isso está acontecendo com ele por causa de ambição de dinheiro e de coisas fáceis”. Os pesquisadores apresentam este depoimento como prova de casos em que membros da mesma família tomaram decisões diferentes.
Mas o depoimento é muito mais rico do que isso. Para já, não prova nada. Pode ser que não exista esse irmão que se juntou aos insurgentes. Pode ser que ele esteja em Maputo ou Pemba. Pode ser que o entrevistado queira se apresentar como alguém que respeita os pais. Pode ser que ele esteja a racionalizar a sua própria cobardia. Sobretudo, há nesse trecho a ideia de que as razões que levam à tal radicalização podem ser vistas como sendo controversas localmente. Dito doutro modo, não basta ter razões para se juntar à insurgência. É preciso todo um trabalho de transformação pessoal que abre a possibilidade de se descreverem vários perfis sociais para que se possa determinar qual o mais propenso a esta ou aquela decisão.
Portanto, há todo um trabalho analítico que precisa de ser feito para se chegar à conclusão da “radicalização” e que não basta apenas encontrar trechos de entrevistas que confirmem o que vai na mente dos pesquisadores. Aqui vale, como sempre, o princípio interpretativo segundo o qual o mais importante não seria mostrar a “radicalização”, mas sim as circunstâncias em que certas pessoas se radicalizam. Isso só é possível tratando as entrevistas de forma menos jornalística, uma tentação difícil de resistir nas ciências sociais.
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