quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Apetece-me recontar este acontecimento fascinante dos anos 1856-7 no Cabo oriental, na África do Sul. Ensina muita coisa, mas sobretudo até que ponto a racionalidade pode ter um desfecho trágico. F


Elisio Macamo
28 de setembro às 23:17 ·



Nongkawuse

Apetece-me recontar este acontecimento fascinante dos anos 1856-7 no Cabo oriental, na África do Sul. Ensina muita coisa, mas sobretudo até que ponto a racionalidade pode ter um desfecho trágico. Foi o que aconteceu ao povo Xhosa nesses anos fatídicos. Uma menina de 15 anos, Nongkawuse, contou ter tido um encontro com os antepassados na foz dum rio que lhe disseram para instruir o povo a chacinar o seu gado, desfazer-se do milho, deixar de cultivar a terra e construir currais com a promessa de que eles ressuscitariam e trariam consigo gado novo, milho bom e escorraçariam os ingleses do seu território.

Com o conhecimento que hoje temos nada disso faz sentido, claro. Mas lá está, a racionalidade é sempre função do conhecimento dominante em contexto específico. A profecia de Nongkawuse não entrava em contradição com as crenças locais. Os Xhosa sabiam que maus espíritos não só davam azar como também podiam levar à derrota militar. É por isso que eles tinham o hábito de procurar por feiticeiros e seus artefactos, matá-los ou destrui-los para garantir a prosperidade da comunidade. Os revezes que tinham sofrido nas três décadas anteriores às mãos dos ingleses reforçavam essa crença. No início da década de 50 tinham perdido uma guerra estrondosamente contra os ingleses e que tinha resultado na perda de mais terras, na sua sujeição e humilhação por parte de sucessivos governadores ingleses, um dos quais, nascido em Lisboa e grande "brada" de Charles Darwin, George Grey, soube tirar proveito do desaire Xhosa para consolidar o poder inglês sobre o território.

Em 1853 uma doença aftosa trazida por um navio holandês assolou a região com uma virulência desconhecida. Dizimou centenas de milhares de cabeças de gado perante a perplexidade de todos. Num ambiente tão claro de catástrofe natural e humana as profecias de Nongkawuse, interpretadas pelo tio, Mhlakaza – que se tinha convertido ao cristinismo anglicano enquanto servente dum missionário inglês e tinha tomado muito a peito a história da ressureição – faziam muito sentido. Por isso, Mhlakaza não teve dificuldades em convencer o grande chefe Xhosa, Sarhili, a ordenar ao seu povo o cumprimento da profecia. No início poucos seguiram o conselho, mas o seu não cumprimento ao invés de fazer com que as pessoas abandonassem a crença contribuiu para que mais pessoas a ela aderissem. O mecanismo para tal foi o que até aos dias de hoje funciona: culpar os que não acreditam pelos desaires.

Os Xhosa ficaram divididos entre os “crentes” e os “discrentes”. Descrita por John Maclean, comissário inglês para a “Kafraria britância” como “uma rapariga de 16 anos de idade, tem um olhar imbecil, e pareceu-me que não batesse bem de cabeça. Não estava coberta de matope, nem parecia se preocupar muito com a própria aparência”, Nongkawuse poderia hoje ser descrita como uma pessoa que sofre de alguma doença que explica o seu carácter. Ela tinha a certeza de falar regularmente com os antepassados e de receber instrucções deles. Via-se investida duma missão, a saber salvar o seu povo, devolver o futuro aos outros jovens que os desaires sofridos pela geração dos seus pais às mãos dos ingleses tinha sido roubado. Ela estava do lado da razão dominante na época, por isso todos aqueles que faziam parte da turma dos “discrentes” passavam maus bocados.

Como muitos deles fossem homens e, pior ainda, muito próximos dos ingleses, viviam sob o estigma de não acreditarem na profecia por razões oportunistas. Enquanto as mulheres, que se dedicavam mais ao cultivo da terra, tinham mais dificuldades em esconder o não-cumprimento, os homens, que cuidavam do gado, conseguiam subterfúgios. Vendiam o gado, sacrificavam aquele com sinais visíveis de infecção ou simplesmente arranjavam desculpas para não seguir o que a menina, com muito fervor e com o apoio dos chefes, dos curandeiros e, acima de tudo, de sinais claros da veracidade do que dizia, profetizava.

Um dos sinais mais importantes foi a morte em batalha de Sir George Cathcart na guerra da Crimea com a Rússia. Cathcart tinha ganho a grande guerra de Mlanjeni que tinha resultado na grande humilhação do povo Xhosa. Quando a notícia da sua morte chegou a Xhosalândia trazida por dois ingleses que fugiam dos seus credores os crentes interpretaram aquilo como um sinal claro da veracidade da profecia. Logo correu a notícia de que os russos eram negros e, na verdade, antepassados dos Xhosa que tinham ressuscitado e estavam a caminho para libertar o povo.

Outro sinal crucial foi quando uma embarcação com vários soldados ingleses se afundou na foz do rio das profecias – o governador inglês havia enviado um navio para mostrar que nao havia nenhum antepassado lá, mas o comandante estava bêbado, dirigiu mal a operação e quando o barco se afundou abandonou o local com o seu navio. Um sobrevivente recusou-se a embarcar e regressou à pé. Para o povo a embarcação tinha sido virada pelos antepassados e o sobrevivente tinha sido poupado para ir contar aos outros ingleses o que os esperava. Esse foi, na verdade, o incidente decisivo, em fevereiro de 1857, que fez com que a esmagadora maioria dos Xhosa chacinasse o seu gado e se recusasse abertamente a cultivar os campos.

O cálculo mais conservador do número de pessoas que morreram de fome é de 35.000. E, naturalmente, a victória final dos ingleses sobre os Xhosa. O que me interessa nesta história, razão pela qual a conto, é a forma como a esfera pública Xhosa lidou com o assunto. Conforme já disse, ela dividiu-se em crentes e discrentes. Os primeiros estavam na mó de cima com o apoio da “verdade” que estava do seu lado. Os segundos eram simplesmente cépticos em relação a uma profecia que fazia sentido, mas exigia muito deles. Eles viam a devastação causada pelos ingleses e pela doença aftosa. Não havia como negar isso. Mas achavam que o remédio parecia exagerado e, sobretudo, viam com muita suspeita que a urgência de acção viesse da boca duma menina de 15 anos. Mhlakaza, o tio, e Sarhili, o grande chefe, encarregavam-se de garantir as palavras da menina.

Uma boa parte dos crentes apupava os discrentes, muitos dos quais, na fase mais quente, viram o seu gado morto e até perderam a vida por causa da sua atitude recalcitrante. Eram acusados de faltar respeito aos antepassados, às tradições culturais, ao conhecimento sólido e, sobretudo, a sua atitude céptica era vista como manifestação de interesses obscuros que pouco tinham a ver com os méritos da questão.

Hoje diriam que é coisa de certos homens, inseguros perante a sexualidade jovem de Nongkawuse, impotentes perante o lado viril duma nova forma de articulação de protesto ou qualquer outra fantasia em voga para reprimir a dúvida perante o que parece um pânico moral. As profecias de Nongkawuse encontraram terreno fértil na mente Xhosa não porque esta fosse “irracional”, mas sim porque era extremamente racional. A opinião comum correspondia aos mais altos padrões da verdade – naquele contexto.

A verdade, naquele contexto, estava refém da convicção. Era a convicção que fazia com que os crentes não tivessem nenhuma paciência com os discrentes e que a cada sinal de divergência de opinião fossem confrontados com argumentos ad hominem. O debate público, entre os Xhosa, tinha todas as marcas da verdade em contexto populista. Verdade como algo absoluto sempre que trouxer conforto a convicções. Vemos isso hoje com os Bolsonaros e Trumps da nossa vida. A forma como eles lidam com factos e com a verdade não é diferente da forma como aqueles que se apoiam na ciência lidam com factos e verdades sempre que se convencem de que a interpelação crítica e a dúvida constituem obstáculos à acção. É tudo farinha do mesmo saco.

Eu tenho muito medo desse pessoal. Os tempos que correm metem-me medo porque estão cada vez mais inóspitos para a dúvida. Nunca gostei de Platão por causa do apoio moral que ele deu ao totalitarismo, mas numa coisa ele tinha razão. A democracia pode também conduzir à tirania. Mas, prontos, podem ser os receios duma masculinidade ameaçada...

Nongkawuse terminou em Robben Island.




27Dereck Mulatinho, Miro Guarda e 25 outras pessoas

7 comentários

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Comentários


Leo D. P. Viegas Gostei imenso do texto! Gostei ainda como trouxe este evento do passado especialmente daqui do pais vizinho para nos alertar dos perigos do populismo e a aversão a critica. Não sei qual é o autor que usou mas a forma como ligou o passado e presente é recomendável!
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Leo D. P. Viegas Esta é uma obra recomendável!
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Elisio Macamo Leo D. P. Viegas, usei esta obra, mas também da monica wilson.
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Venancio Malo Muito grato pela oportunidade do texto Dr E. Macamo. Que cada um interprete como o entender. Bem haja.
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Miro Guarda "Nongkawuse terminou em Roben Island". E nunca mais voltou para salvar seu povo.
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Elisio Macamo voltou. como mandela.
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Miro Guarda Elisio Macamo 😂😂😂
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