Pensar sociologicamente
O título é pretenciso, mas típico dum sociólogo (como eu). Por vezes, sinto a falta de algum raciocínio sociológico na abordagem de assuntos da nossa sociedade. Não é nada complicado. Não é preciso conhecer os clássicos da sociologia, nenhuma terminologia sociológica, nada, é só pensar como a gente pensa no dia a dia (quando a gente pensa de verdade). Pensar sociologicamente é aplicar o bom senso. E bom senso consiste em optar pela explicação mais simples que existe para algum fenómeno. É um pouco como o princípio de parcimónia (navalha de Ockam).
Três exemplos. O primeiro é a violência eleitoral em Gaza. Há quem procure encontrar aqui alguma defeito psíquico de gente de Gaza ou a génese da intolerância da Frelimo. A explicação pode ser mais simples. Em Moçambique as eleições não são sobre conteúdos, mas sim sobre demonstração de afiliação. É como ser do Barcelona ou do Real Madrid. Quando é assim, campanha é confrontação de torcidas e isso acarreta consigo o risco de violência. Como no futebol. Em Gaza parece haver maior predisposição para a violência simplesmente porque lá domina uma equipa (quer a gente goste ou não). Todo o desgraçado de outra equipa que lá for será visto como alguém que está a provocar. Curiosamente, nesses ambientes a violência até nem chega a ser rábida. A segurança de saber que se é a maioria ajuda a temperar os ânimos. Isso explica, inversamente, porque nos outros pontos do País a violência é mais fatal. O estrago visível mostra quem é quem. Em Gaza a violência é questão de frequência, noutros pontos do País de gravidade. Portanto, não há segredo aqui.
O segundo exemplo, inspirado pela notícia da detenção do filho dum grande veterano da luta de libertação nacional, é a inclinação aparentemente criminosa dos filhos da nomenclatura. É porque os pais são bandidos e ladrões, pensa-se. Nada disso. É porque pela estrutura de distribuição de oportunidades eles estão muito mais próximos das ocasiões que fazem o ladrão. O seu comportamento é o comportamento do moçambicano médio com a única diferença de que este último não tem as mesmas oportunidades. Em filosofia chama-se a isso de “sorte moral”. Há muitos moralistas aí (nas OSC e na oposição) que não são corruptos porque nunca estiveram expostos a uma situação que os obrigasse a escolher entre serem probos ou corruptos. Isto não quer dizer que não haja gente honesta em Moçambique. Há, muita até. Só que não existe nenhum gene que faz com que os membros da elite sejam mais propensos à má conduta. Portanto, aqui também não há segredo.
O terceiro exemplo é mais complicado. É a propósito da recente decisão dum académico de concorrer pela Renamo. Este pode ser um mau sinal para a Frelimo. A minha impressão é de que a esmagadora maioria do eleitorado moçambicano não vota de forma consciente. Por isso, quem decide as eleições, contrariamente ao que se pensa por aí, não são os números do povo desinformado. São os poucos informados e iluminados que se constituem como uma espécie de fiel da balança. O voto cafreal empata por uma lógica estatística simples e, naquilo que a ciência política chama de “milagre da agregação”, o voto informado desempata. Aqueles comícios todos em que se esbanja dinheiro do fundo eleitoral e, no caso da Frelimo, dinheiro também do estado, são até certo ponto inúteis. A Frelimo vai ganhar ou perder nas cidades, onde se concentra o voto informado. Eu se fosse oposição apostava lá e evitava Gaza (do ponto de vista puramente eleitoral, é um erro táctico fazer campanha onde você não tem chance de ganhar; você vai lá provocar as pessoas e o mais provável é que elas votem contra si...). O caso dum académico que se junta à oposição pode ser sintomático de algo que a Frelimo, completamente embriagada pela “Nyusiforia”, não vê, nem percebe, nomeadamente a alienação do voto informado (que faz a diferença em eleições como as nossas).
Pessoalmente, para terminar numa outra nota, acho preocupante que o voto informado moçambicano veja na Renamo uma alternativa séria e credível. Chegamos ao fundo do poço, mesmo salvaguardando o direito que cada um tem de cultivar as suas preferências. Foi isto que levou Trump e Bolsonaro ao poder. Não foram as massas como se costuma dizer. Foi porque partes importantes do voto informado deram o benefício da dúvida à mediocridade. E antes que me perguntem sobre se haveria opção: claro. A abstenção também é uma opção. Digo isso sem prejuízo da minha preferência por esta Frelimo cada vez mais irreconhecível.
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