Pornografia moral
O pensador francês, Jean Baudrillard, usa um conceito, “simulacro”, que me fascina. Segundo ele, o “simulacro” é a representação fiel do que não existe. Ele, continua Baudrillard, não é o que esconde a verdade. A verdade é que esconde a ausência da verdade. Pornografia, nestes termos, é a exposição e amplificação duma realidade erótica que praticamente não tem nada a ver com a vida real. Sei que a coisa não está clara, mas recorro a ela para dizer que há um certo sentido em que a moral, na nossa terra, virou um “simulacro” que expõe e amplifica uma realidade que não existe. Indignamo-nos mais pelo próprio prazer da indignação do que pelo que poderia ter acontecido para suscitar em nós esse sentimento. Tornou-se mais importante mostrar indignação do que ter realmente razões para tal. A indignação, como aliás muitas outras coisas, tornou-se auto-poética.
Tudo isto vem a propósito dos desdobramentos que o caso das dívidas ocultas está a assumir. Antes de entrar nos detalhes da coisa, queria partilhar algo que li recentemente sobre um grande caso de corrupção na Holanda – nos anos setenta. Envolvia a companhia aeronáutica americana, Lockheed, e o Príncipe Bernhard, inspector geral do exército holandês, representante do mundo holandês de negócios no exterior e, acima de tudo, marido da Raínha Juliana da Holanda. A Lockheed tinha o hábito de subornar figuras públicas em todo o mundo para vender o seu produto. Foi principalmente por causa destas práticas – que afectavam outras companhias americanas – que os EUA introduziram a lei que pune companhias americanas que subornam entidades e personalidades públicas no estrangeiro, medida que só muito recentemente – e com reluctância – foi adoptada pelos membros da União Europeia.
O Príncipe era muito popular – por causa do seu papel heróico durante a ocupação Nazi – e havia o receio de que a Raínha abdicasse e com ela também a Princesa Beatrix que lhe iria suceder. Aliás, elas ameaçaram fazer isso se o Príncipe fosse levado a tribunal. Criou-se uma comissão de inquérito que apurou que, sim, de facto, o Príncipe tinha recebido subornos, mas a classe política, liderada pelo então Primeiro Ministro social democrata, Joop Den Uyl, foi ao parlamento pedir para que não fosse julgado para se evitar uma crise constitucional. O Parlamento aprovou esta moção.
Chang vai ser julgado nos EUA. Anuncia-se com entusiasmo masoquista que mais pessoas se seguirão. Isto é capaz de virar uma sangria. Não seremos poupados a habitual pornografia moral que revela até que ponto nos alheamos do País real e passamos a viver numa bolha moral que ao rebentar vai nos levar consigo, não importa se fazemos parte dos bons ou dos maus. Há três assuntos que vale à pena reflectir, mesmo para quem já decidiu que o importante é que o País seja livrado não só da corrupção como também dos corruptos.
O primeiro assunto tem a ver com a perversão das relações internacionais. Os EUA estão a estender a sua jurisdição além-fronteiras. Tudo bem, eles têm o poderio militar para tal. O problema, contudo, é que isso desestabiliza processos delicados de construção de Estado, o que cria focos de instabilidade que consomem os recursos dos próprios EUA. Na verdade, o que acontece é que eles estão a punir o elo mais fraco – os países em desenvolvimento – por crimes cuja ocasião foi criada por eles próprios. A financeirização da economia que tem como um dos seus lados mais sórdidos a existência de esquemas de circulação de dinheiro fictício é que está na origem de grande parte do esquema em que o empreendimento que resultou nas dívidas se tornou fatídico.
É interessante notar que os principais queixosos são, na verdade, fundos de capitais que fazem verdadeiros estragos por todo o mundo. Até certo ponto estamos perante uma história de dois gatunos numa competição que viu um a perder e outro a ganhar. O gatuno que perdeu foi à polícia queixar. Faria mais sentido resolver este problema na arquictetura financeira internacional do que andar atràs dos Changs deste mundo. É um pouco como a guerra contra o narcotráfico. O problema está nos EUA, não na Colômbia.
O segundo assunto tem a ver com a oportunidade que a Frelimo perdeu de usar o caso das dívidas ocultas para fazer reformas internas sérias. Os seus membros foram ao Congresso e às sessões do Comité Central e contentaram-se em demonstrar hostilidade a Guebas sem, contudo, mudar seja o que fosse. Pensaram que lançando impropérios feios contra os “lesa-pátria” eles iriam resolver o problema. O próprio Presidente, que pela posição que ocupou no governo que contraíu as dívidas, devia ter todo o interesse em abordar o assunto de forma adulta, pareceu mais interessado em ser festejado do que em fazer o trabalho partidário necessário. Foi eleito com uma percentagem aparatosa, mas cada novo detalhe que vem lá de Nova Iorque deve estar a dar um sabor cada vez mais amargo à vitória. E como os americanos são implacáveis, nem há certeza se a Ponta Vermelha é um lugar seguro. O cálculo parece ter sido simples: se nos apanharem que se lixe o País!
O segundo assunto tem a ver com a oportunidade que a Frelimo perdeu de usar o caso das dívidas ocultas para fazer reformas internas sérias. Os seus membros foram ao Congresso e às sessões do Comité Central e contentaram-se em demonstrar hostilidade a Guebas sem, contudo, mudar seja o que fosse. Pensaram que lançando impropérios feios contra os “lesa-pátria” eles iriam resolver o problema. O próprio Presidente, que pela posição que ocupou no governo que contraíu as dívidas, devia ter todo o interesse em abordar o assunto de forma adulta, pareceu mais interessado em ser festejado do que em fazer o trabalho partidário necessário. Foi eleito com uma percentagem aparatosa, mas cada novo detalhe que vem lá de Nova Iorque deve estar a dar um sabor cada vez mais amargo à vitória. E como os americanos são implacáveis, nem há certeza se a Ponta Vermelha é um lugar seguro. O cálculo parece ter sido simples: se nos apanharem que se lixe o País!
O terceiro assunto é a ausência total de sentido crítico na abordagem deste assunto. Insiste-se em reduzir as dívidas ocultas a uma questão de ganância pessoal. É uma posição cômoda porque livra as pessoas da dor de pensar. Não há pior coisa que pode acontecer a uma sociedade que quando a sua classe intelectual abdica do pensamento crítico. Com o debate intelectual a ser dominado cada vez mais por moralistas isto é o que está justamente a acontecer. Mentes aparentemente sãs agarram-se à ideia que a indústria do desenvolvimento transmite de que o nosso problema é a corrupção e insiste em transformar a reflexão crítica num mastigar incessante de lugares-comum. Gente intelectualmente sã insiste que perguntas como, por exemplo, “como eliminar/controlar/prevenir a corrupção” são perguntas úteis para o nosso País. Exercícios analíticos simples como, por exemplo, procurar saber se (a) um determinado comportamento se explica pelo indivíduo ou pela oportunidade, (b) se um determinado diagnóstico descreve o comportamento dum sintoma ou dum problema de fundo e (c) se algum comportamento se manifesta independentemente das circunstâncias não estão a ser feitos. Há uma tirania de conclusões que nos impede de pensar. Ao mesmo tempo dá-nos aquela gratificação de que realmente pensamos.
Eu não me esqueço. Uma vez, nas margens do Rio Limpopo, camponeses perto de Xai-Xai mostraram-me um lugar onde Ngungunyan fez necessidades maiores quando era transportado pelos Portugueses para Maputo para depois ir ao desterro. E riam-se, os camponeses. Eu também. Ríamo-nos porque eles e eu sabíamos que Ngungunyan fora um déspota e que para muitos a sua derrota tinha sido um grande alívio. Só que aqueles que o derrotaram, com a nossa ajuda, também não eram nossos amigos. E provaram-no subsequentemente tornando proféticas as palavras que ele proferiu enquanto embarcava para os Açores. A “liberdade” que os portugueses traziam revelou-se um simulacro...
A gente não aprende.
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