domingo, 6 de outubro de 2019

A ética na pesquisa

Elisio Macamo
18 h ·

Tive a minha primeira experiência séria de desafios éticos na pesquisa quando estudava as experiências de guerra de refugiados em Gaza. Entrevistei uma mulher nova que me falou, entre outras coisas, da fuga da zona de guerra para a cidade de Xai-Xai. Pedi-lhe para me fazer um relato detalhado dessa fuga. Contou que enquanto caminhavam cantavam. Fiquei interessado e pedi-lhe para me dizer o que cantavam. Ela começou a cantar uma dessas canções. Pouco tempo depois, enquanto cantava, quebrou completamente, soluçou e começou a chorar nervosamente. Tinham lhe vindo à cabeça memórias traumáticas dessa experiência. Apercebi-me logo que tinha cometido um erro grave. Senti-me muito mal.

Pesquisa é boa coisa, mas comporta muitos riscos de natureza ética. Ela pode causar danos sérios. É por essa razão que um dos princípios da ética de pesquisa consiste nisso mesmo: não causar dano. O dano não é apenas individual e psicológico. É também colectivo e político, entre outros. Em 2017, quando fazia pesquisa sobre o reassentamento em Tete, apetecia-me dizer aos meus entrevistados que, se calhar, tinham que organizar manifestações para reclamarem os seus direitos. Só que isso teria sido irresponsável e não ético. As poucas manifestações que eles tinham feito tinham chamado a FIR que, como é sabido, não brinca em serviço e comporta-se como uma força de ocupação com total desprezo pela dignidade humana.

A pesquisa em África acontece sempre sob este tipo de riscos. A pesquisa acontece sempre num espaço liminar entre produção de conhecimento e desestabilização num continente onde a etnicidade, o regionalismo, a precariedade, assuntos mal resolvidos, etc. são mechas curtas prontas para a explosão. Em Moz a questão regional é explosiva. No centro e norte do País a ideia de que se vive sob a dominação do sul, independentemente dos seus méritos, faz da questão regional fonte não só de ressentimentos que se fazem sentir através de agressões psicológicas contra gente do sul, mas também de instrumentalização política do nível mais reles e irresponsável possível de imaginar.

O momento eleitoral exacerba o potencial explosivo. Um pesquisador sério, responsável e decente precisa de ser criterioso ao aceitar dar uma palestra sobre um assunto politicamente sensível no auge da campanha eleitoral à convite dum político que claramente joga a cartada regionalista numa atitude que coloca sérias interrogações em torno das suas credenciais académicas. E quando o palestrante é estrangeiro que, em princípio devia observar uma certa imparcialidade neste momento (a não ser que se declare claramente a favor duma das partes e não use a capa académica para atiçar o fogo), a necessidade de ser criterioso é maior ainda.

Agora, como estamos em Moz, haverá sempre quem, por razões ideológicas, de simpatia ou de rancores pessoais, não vai ver mal nenhum nisto e, pior, vai fazer o recurso tradicional ao argumento de que os outros também fazem. Só que não é ético e se não ensinam isto aos seus estudantes estão a prestar um mau serviço à ciência no País. A importância de observar regras éticas não advém de nós sermos impolutos e decentes sempre. Advém do critério objectivo que se estabelece para identificar o que é boa conduta académica e o que é mau serviço à ciência.

E, como sempre tem sido a minha postura, esta não é uma questão que clama por medidas jurídicas ou alarmismo. Questões éticas têm a ver com a decência. Se você é decente, você vê o problema. Se você não vê o problema, talvez você tenha uma ideia curiosa de decência.




40Lyndo A. Mondlane, Dereck Mulatinho e 38 outras pessoas

8 comentários

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Comentários


Salomâo Nicasse A ideia de ética em pesquisas sociais exigem um rigor sigiloso e cauteloso para que não se crie espécie assimetrias, e momentos liminares da sua aplicabilidade. O meu professor Emídio Gune pesquisador e docente do DAA pela UEM, fala de questões éticas, onde o pesquisador cria momentos únicos e que tornam a pesquisa única e objetiva.
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· 18 h


Elisio Macamo Salomâo Nicasse, não tenho a certeza se percebi o seu comentário.
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· 16 h

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Anna Maria Gentili Concordo totalmente.
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Paulo Inglês Estou a viver um destes momentos...esses desafios éticos também decorrem dos dados em si: como evitar cai na tentacao de tomar estes dados como o conhecimento q se busca....
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· 16 h


Elisio Macamo Paulo, sim, essa é também uma questão séria. penso que um caminho é a objectividade na aplicação de métodos. se só se chega à conclusão que tiras quando se tem uma certa inclinação política, bom, boa noite!
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Paulo Inglês Elisio Macamo exactamente. Obrigado. Igualmente,
uma boa noite.

Mablinga Shikhani Pois. Numa cavaqueira com um escriba ele desabafa assim: “em Moçambique mal se distingue onde termina a SC e começa a Oposição”, e eu respondi: “a Oposição recruta na SC”.

Agora que o Elisio Macamo fala de ética reparo que nas duas situações ela anda não só pálida, um toque distante com pó-de-arroz mas ambos SC e Oposição na sua anorexia ética exigem muito do Estado e da Posição.

Não sei se disse alguma coisa mas foi o que na cavaqueira me ocorreu.
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Stelio Simoes Elisio Macamo, gostei da forma como apresentou a sua arguementação sobre este assunto da Palestra pelo facto de ter contextualizado o conceito, Ética, e depois dar seguimento ao seu posicionamento. Ajuda não só a perceber a qiestão de fundo como também dissipa qualquer tentativa de pensar que esteja a tomar partido, trazendo com isso, maior resistência na aceitação do problema, por parte de quem se beneficiará dela.

Elisio Macamo
Ontem às 10:36 ·
Estou a imaginar palestra dum pesquisador estrangeiro em plena campanha eleitoral no Ruanda, em zona Hutu, subordinada ao tema: "as raízes da marginalização histórica dos Hutu". Não me parece só falta de tacto. Parece desprezo pelo País que acolhe o palestrante.

Mablinga Shikhani Nem mais Elisio Macamo. Nem mais. O Cahen acaba de se revelar...
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Pedro Comissario Mablinga Shikhani revelar? Não foi sempre assim?

Mablinga Shikhani Pedro Comissario de longe. Aqui ouve-se o esgar do sorriso dele... Lembro-me da Rádio Quizumba. Essa minha memória ainda me mata.
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Pedro Comissario Voilà, Mablinga Shikhani!

Alvaro Simao Cossa Mablinga Shikhani sim ele parece ser dessa estirpe. Lembra-nos a Rádio Quizumba realmente, mas ele deve não saber como terminou essa Rádio.

Mablinga Shikhani Alvaro Simao Cossa sabe sim.

Raul Chambote Inconveniente. Outras coisas

Daniel Ogwang A lecture on this topic would not be allowed to take place in Rwanda. But it would be allowed in Burundi where Hutu and Tutsi identities are allowed.

Elisio Macamo Daniel, good to see you here. it was just an example. something close to that is happening right now in moz.

Matavele Edy Matavele Tsakane Tanto que estou envergonhado!

Alvaro Simao Cossa Lenha seca e gasolina no fogo

Carlos Nuno Castel-Branco Qual é o tema da palestra, onde foi e em que contexto? Sem analogias, apenas a informação, se for possível?

Elisio Macamo "AS RAIZES HISTÓRICAS DA MARGINALIZAÇÂO DO NORTE DE MOÇAMBIQUE", Salão Nobre do Conselho Autárquico de Quelimane, pelo Professor Doutor Michel Cahen, Professor Emérito da Universidade Bordeaux, França, organizada pelo Centro de Estudos Moçambicanos e Internacionais (CEMO), conforme anuncia no seu mural o candidato a governador da Zambézia, Manuel Araújo.

Constantino Pedro Marrengula Parece-me que esta palestra vem revelar muito sobre nós. Quatro décadas depois, parece-me que perdemos as qualidades que mais precisamos para melhor vivermos em sociedade. As victorias momentâneas atraiem-nos bastante, mesmo entre os mais iluminados. É o vale tudo.

Carlos Nuno Castel-Branco Elisio Macamo obrigado pela informação. Não sabia dessa palestra.
Ele já deu a palestra? O que disse? Ou ainda não deu?
Qual é o problema da palestra? É o palestrante ser estrangeiro? É o tema? É o que foi dito? É ser durante a campanha eleitoral (haverá assuntos para não falar em campanha eleitoral? Quais são?)? É ser organizada pelo município, usando um espaço municipal? É ser o Michael Cahen?

Acabo de ver um post do EV que é pior que qualquer parvoíce que o MC possa dizer. Fala numa zona administrada pela Renamo (hostilização, ostracização e marginalização aberta da "oposição", como se fosse uma zona inimiga, ocupada ilicitamente), e, implicitamente, apela a acção directa (o que poderá ser?) contra um indivíduo sobre o qual implicitamente levanta a suspeita de estar ilegalmente e indesejavelmente no país.

Claro que todos temos o direito às nossas opiniões sobre este e sobre qualquer outro assunto, e esse direito é superior à exigência sobre a qualidade da opinião e deve proteger-nos da agressão e humilhação. Mas, faz sempre bem à discussão explicar o problema e a opinião que temos sobre ele, para que possamos focar o debate no que cada um de nós vê como essência da questão.
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Elisio Macamo Carlos Nuno Castel-Branco, para mim isto é uma questão de ética de pesquisa, não tem nada a ver com o direito que qualquer um de nós tem ou não de emitir opinião. como alguém que pesquisa em áfrica, sabe quão sensíveis alguns assuntos são, sobretudo em época eleitoral. numa outra altura do campeonato não veria a intervenção com indignação. pessoalmente, não aconselharia nenhum pesquisador sério a cometer tamanho disparate, mas há liberdade para isso e cada qual faz o que acha correcto. não é um assunto que para mim mereça discussão. ética de pesquisa e, no fundo, decência. só mais nada.
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Elisio Macamo Constantino Pedro Marrengula, é isso. Um pesquisador estrangeiro que devia ter sensibilidade para a delicadeza destes assuntos deixa-se deixa instrumentalizar para fins eleitorais. é indecente. que um político faça isso, ainda se aceita porque na falta de ideias tudo serve. mas um pesquisador sério?! come on!
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Carlos Nuno Castel-Branco Elisio Macamo obrigado por teres explicado o que é o problema para ti, ética de pesquisa, neste caso associada com o contexto em que a palestra se localiza. Assim fica possível fazer uma discussão em volta desses assuntos, ética de pesquisa e contexto histórico, de forma ética. Obrigado.
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Luis Mucave Michel Cahen é Guru de muitos aqui na pérola do Indico.
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Elisio Macamo tem créditos firmados, esse mérito não lhe pode ser negado. só que eish!
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Luis Mucave Elisio Macamo ,sim tem creditos sem duvida,mas,ultimamente tem se equivocado.
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Carlos Nuno Castel-Branco Luis Mucave quem não tem estado equivocado?
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Jorge Saiete Tendo em conta o momento eleitoral em que nos encontramos, considerando também o tema e a nossa incapacidade de separar as águas, é mesmo inoportuna a palestra
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Carlos Nuno Castel-Branco Jorge Saiete é inoportuna porquê e para quem? Implica, a sua análise, que em campanha eleitoral há temas oportunos e inoportunos?
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Elisio Macamo Jorge Saiete, extremamente inoportuno e indecente.
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Dalfino Hóster Guila Somos País prémio Nobel da Tolerância. Haja paciência...
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Carlos Nuno Castel-Branco Dalfino Hóster Guila se fossemos prémio nobel da tolerância não estaríamos em conflito permanente entre nós, conflito esse que não é possível de parar apenas assinando acordos de paz entre os mesmos dois beligerantes.
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Dalfino Hóster Guila Carlos Nuno Castel-Branco os conflitos domésticos em casa ou lar de cada moçambicano não podem ser trazidos como algo sui generis de Moçambique. Quem diz lar, diz organização ou instituição. A RENAMO está em crise de liderança e é daí que advém o Nyongo e companhia. Ela deve resolver isso. Podemos estar de acordo que ainda não estamos totalmente bem, entre outros, pelos ataques aqui e acolá ainda sem rosto. Mas nesses casos também não os podemos tomar como assunto fratricida porque temos de apurar se são só nacionais envolvidos.
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Carlos Nuno Castel-Branco Dalfino Hóster Guila depende da definição que tem de conflito.
Sabia que, na última década, 85% dos conflitos que envolveram alguma forma de violência não foram entre o governo e a Renamo, mas entre governo, capital e camponeses/trabalhadores, etc., em torno de questões como fraude eleitoral, expropriação de terras, precaridade de emprego, custo de vida, ostracização política, etc.? Reconhece que temos um conflito armado em expansão no norte, que ainda ninguém conseguiu explicar?
Quando trata da palestra do MC como um acto de tolerância exagerada (ele já a deu? O que disse?), reconhece que existe um problema de tolerância?
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Dalfino Hóster Guila Carlos Nuno Castel-Branco o título em si, para um bom entendedor, a palestra está meio dada.
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Carlos Nuno Castel-Branco Dalfino Hóster Guila, de modo algum. Quais são as raízes históricas? Há marginalização? O que é o Norte? Como são problematizadas as questões e como é articulado o argumento? O título não explica nada disto.
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· 20 h

Dalfino Hóster Guila "AS RAIZES HISTÓRICAS DA MARGINALIZAÇÂO DO NORTE DE MOÇAMBIQUE"

Este é o título. Há muita afirmação aqui. Não precisa uma grande elaboração para obvia-las.
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Elisio Macamo Dalfino Hóster Guila, é simplesmente indecente e uma violação grave da ética de pesquisa. a questão não é se somos tolerantes ou não porque todos têm liberdade de se exprimir. a questão é de decência e de você não defender o indefensável porque é politicamente oportuno para si. que nojo!
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Dalfino Hóster Guila Nem mais... nojento! Dixit
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· 13 h

Carlos Edvandro Assis Carlos Nuno Castel-Branco posso concordar consigo. Fica-se com a idéia de que o momento eleitoral ofusca o cotidiano (a vida normal). Ou seja que a sociedade cria uma norma no momento eleitoral em que a vida normal tem seu reflexo nos arranjos de momento, que permitem a ausência do normal no cotidiano.

Eu percebo a dimensão da estética democrática que o Elisio Macamo nos apresenta na sua idéia!!!...
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· 10 h
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Ricardino Dumas Temos esse dilema tb, infelizmente Elisio Macamo.
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· 19 h

José Teixeira Elisio Macamo independentemente de outras considerações deixe-me dizer-lhe, aqui que ninguém nos ouve, que me parece que o Cahen é um bocado a sua "bête blanche" ...
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· 17 h

Messias Mahumane Mercenários existem para tudo, desde que seja pagos.
O problema para é: A quem compete disciplinar esta tendência?
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Elisio Macamo Messias Mahumane, mercenarismo não é. talvez ingenuidade.
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Ernesto Nhanale Achei aquilo uma tamanha irresponsabilidade acadêmica. Não acreditei que fosse verdade!
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Elisio Macamo Ernesto Nhanale, ainda bem que vê a coisa assim. curiosamente, há quem não vê a coisa como nós.
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