terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Mesmo sob o risco de provocar a ira dos nossos historiadores, atrevo-me a dizer que a História de Moçambique começa e termina em 1974.

Há dois anos publiquei o texto que se segue. Divulgo-o de novo para contextualizar o texto de ontem sobre o relógio biológico implacável... Estou a tentar promover uma discussão séria e informada sobre um período muito importante da nossa história, o período em que se deitou a semente da nossa desorientação política. E só para dissipar equívocos: eu sou simpatizante da Frelimo, tenho imenso orgulho pelos jovens que nos deram a independência, mas também penso e tenho consciência cidadã. Ver erro no que a Frelimo fez num momento bem específico da sua história não significa que ela seja má.
1974
Mesmo sob o risco de provocar a ira dos nossos historiadores, atrevo-me a dizer que a História de Moçambique começa e termina em 1974. Este é o ano de referência para o que se passou antes e depois. Foi o ano em que ficou decidido o que a independência seria, isto é se seria mesmo independência ou apenas um compasso de espera. Há motivos sérios para pensar que o que aconteceu em Junho de 1975 não foi realmente a independência, apenas um passo muito importante rumo a ela. Para quem tem o hábito de branquear a história, também não foi 1992 quando a Frelimo vergou à sanha assassina da Renamo. Em 1992 adiou-se a democracia e em 1994 confirmou-se esse adiamento.
Em 1974 cristalizaram-se várias ideias de Moçambique. Parecem-me ter sido importantes quatro delas. Se tivermos que escrever a história de Moçambique melhor do que o fizemos até aqui teremos de reflectir sobre estas quatro ideias de Moçambique. Essa tarefa impõe-se sobretudo num momento em que há muita confusão no seio da juventude que se tornou bastante cínica e, por isso, muito susceptível a versões aventureiras do que o País foi, é e será. A facilidade com que políticos charlatães produzem versões da nossa história recente e são aplaudidos por aí é, para dizer o mínimo, fascinante como documento da credulidade.
Vou tentar uma tipologia dessas ideias de Moçambique aqui sem, contudo, me aventurar a questionar se as pessoas estavam a ser sérias ou não. Parto simplesmente do princípio de que cada uma dessas ideias reflectia o pensamento genuino dos seus portadores. A primeira é a ideia minoritária um pouco ao estilo do que aconteceu na África do Sul e depois na Rodésia do Sul (actual Zimbabué). Colonos de origem portuguesa acalentaram a ideia duma independência unilateral só para si. O acto mais dramático por eles protagonizado foi a tomada do Rádio Clube de Moçambique naquilo que ficou com o nome de “Movimento Moçambique Livre” que resultou em muita violência gratuita. Vivi parte dessa violência no Chamanculo, em Maputo.
A segunda foi a ideia lusotropical principalmente promovida por Jorge Jardim com algum apoio de figuras negras como a de Domingos Arouca e de Miguel Murupa. Não concordo com aqueles que identificam Jorge Jardim com a ideia minoritária. Ele bateu-se (e bateu) por uma ideia fantástica (no sentido de fantasia mesmo) duma independência feita no quadro daquilo que ele chamou de “Comunidade Lusíada” que se inspirava numa interpretação fantasiada do que a experiência colonial tinha sido para os africanos. Essa independência beneficiaria, num primeiro momento, os “assimilados” que juntamente com os colonos portugueses iriam trabalhar na criação de condições para que num futuro não muito distante a maioria de facto assumisse o poder. É interessante notar que ele reservava a Domingos Arouca, mas também à Frelimo, um papel de destaque nesse empreendimento.
A terceira foi a ideia pluralista. Joana Simeão e Máximo Dias, mas também gente como Uria Simango e, até certo ponto, Paulo Gumane, foram os porta-vozes desta ideia algo difusa. Era a ideia de que a independência criava um espaço político plural dentro do qual moçambicanos de várias sensibilidades poderiam concorrer para promover a sua ideia de Moçambique. É uma ideia próxima do ideal democrático como o entendemos hoje, sem que com isso queira dizer que os seus portadores fossem “democratas”. Tratando-se de pessoas que não se identificavam com a Frelimo era natural que se preocupassem em definir a independência nesses moldes. A entrevista de 16 minutos concedida por Joana Simeão à RTP mostra isso com muita clareza. Parece-me lícito especular aqui que algumas pessoas ligadas à Frelimo – por exemplo, os ex-presos políticos – comungavam desta ideia, mas a sua lealdade para com a Frelimo deve ter levado a melhor sobre si.
A quarta ideia era revolucionária e teve, no País, o forte apoio dos chamados “democratas” de Moçambique. Esta ideia corresponde à versão oficial da nossa história que tem como substracto uma convicção assente em dois pressupostos. O primeiro pressuposto é o de que em Moçambique só havia um único representante do povo moçambicano com a prerrogativa histórica de decidir o que seria bom para o País. O segundo presspuposto, de natureza ideológica, é o de que não se tratou propriamente duma mera luta pela autodeterminação, mas sim da luta contra um sistema de exploração que só seria destruído através duma revolução. Esta ideia era ideologicamente dominante dentro da Frelimo, mas não me parece que tenha sido partilhada por todos, mesmo aqueles que mais tarde a repetiram com convicção durante os anos imediatamente a seguir à independência. Esta é a ideia que vingou.
Repito, não quero colocar em questão a genuidade do compromisso que as pessoas tinham com cada uma dessas ideias. O estudo de como elas surgiram e se confrontaram, de quem foi seu portador e que tipo de postura política elas conferiram aos actores do tempo parece-me uma tarefa cada vez mais inadiável. O que está certo para mim é que a ideia revolucionária, própria do tempo, foi um grande equívoco e uma má interpretação do momento histórico. Isto não justifica as respostas que se deram a ela, mas também não desculpabiliza os seus promotores, sobretudo em relação ao que eles se “viram obrigados” a fazer em “defesa” da sua ideia. Cria, a meu ver, condições para a gente abordar com maior frieza a questão da responsabilidade histórica, esse grande elefante na loja de porcelana que a história se tornou para todos nós.
A nossa reconciliação com a história só vai acontecer no dia em que domarmos este elefante.
Yorumlar
  • Ricardo Santos Já há dois anos e, por ventura, há mais tempo que insistes nesse framework analítico que ignora a componente internacional e regional. Em 1974 estávamos em plena guerra fria (conflito este-oeste) , a África do Sul duplicou o seu orçamento militar e em 1975 invadiu Angola. A Rodesia tinha declarada a independência unilateral. Os países de "leste" apoiavam as lutas pela independência e os países ocidentais apoiavam Portugal e o regime do apartheid. Estás variáveis são fundamentais para perceber o papel e as opções dos 4 grupos de autores.
  • Carlos Goncalves Ainda com a minha nacionalidade moçambicana, defendi junto a amigos da Frelimo que Moçambique deveria integrar o grupo dos Países Não Alinhados. Continuo convencido que as 800 mil mortes da guerra civil não teriam porventura tido lugar. A ideia revolucionária da Frelimo de se 'integrar' no eixo soviético em meu entender muito contribuiu para o que sucedeu, em face da hostil vizinhança.Também não é verdade que os países ocidentais apoiassem na altura Portugal e o apartheid.
  • Karin Monteiro gostaria de partilhar.
  • Carlos Goncalves Sobre o apoio dos 'países ocidentais' ao apartheid: em 1960 participei em Durban numa marcha de estudantes contra o apartheid. Nesses anos, a Africa do Sul estava sancionada economicamente pelo ocidente por razão do apartheid. Quando a marcha estudantil se aproximou da praça do município, da qual se avistam muito próximos os cais de acostagem do porto, lá se dava conta de dois cargueiros soviéticos acostados. Generalizar o pensamento não é de muito esclarecimento...

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