Tortura
física, violações sexuais, destruição de casas, pessoas enterradas
vivas, detenções arbitrárias. Os relatos das comunidades residentes em
Namanhumbir, no distrito de Montepuez, em Cabo Delgado, são assustadores
e indiciam violação dos direitos humanos.
Em
Namanhumbir - zona sob os olofotes da comunicação social devido aos
maus tratos a garimpeiros -, a população vive com medo. Medo da empresa
que se instalou no seu seio, medo da polícia de quem esperavam
protecção, medo do futuro desconhecido.
São
ao todo sete as forças que sazonal ou permanentemente garantem a
segurança da mina da empresa Mozambique Ruby Mining, segundo contam
moradores das comunidades.
Fala-se
de actuações da Unidade de Intervenção Rápida, Serviços de Inteligência
e Segurança do Estado, Polícia de Proteção de Altas Individualidades e
Polícia de Protecção dos Recursos Minerais, estas quatro pelo Estado, e
três privadas, nomeadamente, a Arkhe e Chelsea – contratadas – e QRT –
segurança interna da empresa. Os elementos da QRT são chamados
“nacatanas” pela comunidade local, por terem usado catanas quando
reprimiram mineiros artesanais ilegais.
Um
dos moradores disse que, no dia anterior à nossa chegada, agentes da
polícia teriam amarrado e chamboqueado um mineiro artesanal ilegal,
tendo depois o levado à esquadra, onde estão detidos vários garimpeiros.
Através
de testemunhos de quem vive de perto a miséria e o terror de
Namanhumbir, O País conta-lhe o dia-a-dia de uma terra que não tem o
brilho do seu rubi, escoado e vendido nas praças internacionais.
Torturas
Abacar Sumail – Vítima
“Estava
na mina, dentro da concessão da Mozambique Ruby Mining, porque queria
procurar algo para me sustentar. Fui encontrado pelos homens da catana
com cinco sacos de camada. Arrancaram-me a camada - areia que tiramos da
cova para lavar e procurar rubi - e começaram a bater-me
descontroladamente. Nós não somos nada, somos cabritos. Lá tem cães que
servem para atacar as pessoas”.
Zuneide Carimo – Vítima
“Tenho
marcas espalhadas por todo o corpo. Não fui dar queixa à polícia,
porque são eles mesmo que fazem isto. Espero que a lei tome conta disso,
caso não, eu vou reagir à minha maneira”.
Espencer António – Vítima
“Fui
ao mato com os meus seis amigos procurar camada. Fui capturado pela
segurança da empresa, ‘nacatanas’, e Arkhe. Quando estava na cova, dois
amigos conseguiram fugir. Depois levaram-nos de carro para a esquadra e,
a meio do caminho, saltei do carro em marcha e sofri ferimentos graves
na cabeça”.
VIctor Saíde – Vítima
“Fui capturado em Maio passado, no mato, quando estava a cavar, à procura da vida. A UIR (Unidade de Intervenção Rápida), “nacatana”
e outra segurança da empresa furaram-me o abdómen com picareta. Fui ao
hospital, levei pontos na ferida. Até hoje sinto dores. Retornei ao mato
e fui capturado, levado à cadeia e fiquei das 07h00 até as 18h00 sem
alimentação. consegui fugir”.n
Rachide Pedro – Nativo de Namanhumbir
“Nasci
em Namanhumbir e digo que o que acontece aqui é triste. Um jovem de
nome Paiva, proveniente de Nampula, foi baleado aqui mesmo. O agente que
baleou está lá em Montepuez a circular de mota. Aos meus 56 anos, sinto
muito ver jovens maltratados aqui. A minha filha foi encontrada pelos
agentes e exigiram dinheiro. como não entregou, foi violentada. Sou um
antigo combatente dos dez anos da luta armada. Não é para isso que
conquistámos a independência”.
Maria B. (Nome fictício)
“Nós
aqui estamos a passar mal. Polícias chamam-nos nas nossas casas e
ameaçam as mulheres de baleamento, caso não aceitem manter relações
sexuais com eles. Uma vez os polícias encontraram um casal e violentaram
a mulher. O caso chegou ao comando, mas nunca teve fim. O agente que
fez isto está a circular normalmente, não fizeram nada. Ele vinha
trabalhar com o branco e vinha aqui à aldeia. São vários agentes que
fazem isso a muitas mulheres, está a doer-me. ”
Casas queimadas e demolidas
Jaime Saíde – Vítima
“Nós
não somos pessoas, somos animais. Nós não estamos no bairro, estamos na
cadeia. Estamos a sofrer com o branco da mina, com ‘nacatana’ e ‘fauna
bravia’ (Polícia de Protecção de Recursos Naturais). Eles vieram aqui,
queimaram as nossas casas, em 2014, incluindo nossos bens, nossa comida.
nós ficámos assim. O branco veio e disse que iria construir casa, mas
passados cinco anos nada aconteceu. Aqui em Ntorro não tem escola,
hospital, não é permitido chegar o transporte. quando uma motorizada
tenta chegar à aldeia, o branco leva para o comando deles, há cinco anos
estamos isolados. Quando ficamos doentes, usamos medicina tradicional.
De 2014 até hoje, foram rusgas e nos concentravam todos, crianças,
jovens e adultos, nas salas de aula construídas por eles desde as 04h00
até às 17h00. Quando disparam, não têm em conta que temos crianças e
pessoas que não são garimpeiros. temos medo. O branco levou as nossas
machambas e não deu nada. Nenhuma pessoa deste bairro tem emprego.
Dependemos da machamba. Estamos aqui há mais de trinta anos, sem saber
que existia algo aqui em baixo. Um camponês encontrou pedra em 2009 e
foi mostrar ao chefe do posto, desde essa época, nunca tivemos paz.
Quando vamos à machamba, acusam-nos de estar a cavar. A maioria dos
nativos fugiu daqui e nós estamos no sofrimento”.
Rafael Aspirante
Chefe da aldeia de Namujo
“Desde
a queima das casas, em 2014, não conseguimos sair. Estamos com
sofrimento. Carro não passa aqui. Convivemos com armas, que pensamos que
são do branco, que chamou polícias para aqui. Antes, íamos às nossas
machambas capinar com as nossas senhoras, agora ficamos aqui. Quando as
pessoas saem para o mato à procura de algo, são batidas. Outras pessoas
desaparecem, outras fogem. No ano passado, fui levado para Maputo, Tete,
zambézia, par ver o processo de recenseamento. Fomos enviados pelo
branco, mas até agora não temos satisfação. As salas de aula que eles
construíram servem de cadeia para nós, não é uma escola. O comandante
Manhiça conhece os casos de tortura que acontecem aqui. Se são vistos
ali pelo branco, polícia e ‘nacatana’, as pessoas são batidas e morrem
ali mesmo. Cada dia nós ficamos calados.”
Empresa nega ocorrência de violência na sua concessão
Gopal Kumar – director-geral da Mozambique Ruby Mining
“Não
há nenhuma ameaça a ninguém, incluindo os mineiros artesanais ilegais,
aqui na Mozambique Ruby Mining, é o que gostava de deixar claro. Os
nossos trabalhadores nunca agrediram ninguém, mesmo os mineiros
artesanais ilegais. Temos um sistema de segurança estruturado, temos os
nossos próprios colaboradores, trabalhando para a segurança interna. E
contratámos serviços de segurança para apoiar os nossos trabalhadores.
Todas as acções destes homens são monitoradas. Temos trabalhado com o
comandante da Polícia de Pemba, que, junto do nosso departamento de
relações públicas, tem ajudado em treinamentos sobre respeito aos
direitos humanos. A actividade dos mineiros artesanais é muito
arriscada. Mensalmente, estimamos em dez as mortes por acidente,
basicamente. O benefício da exploração desses recursos não vai
directamente para esses mineiros artesanais, mas para comerciantes
artesanais que vendem na Tailândia e Sri-Lanka. E pensando na segurança
dos mineiros artesanais ilegais e no rendimento da nossa empresa, uma
operação da polícia teve lugar nesta área. iniciou em Dezembro e faz
monitoria até hoje. Sobre as estruturas destruídas na vila, não fomos
responsáveis. Comunicámos o Ministério do Interior, Ministério dos
Recursos Minerais e Energia e pedimos que nos ajudassem a investigar
onde teriam acontecido os actos que constam de vídeos postos a circular
nas redes sociais. Nós também, internamente, estamos a investigar. À
primeira vista, não há nenhuma ligação entre os vídeos e a empresa. Mas
esta não é uma posição final, porque as investigações estão em curso.
Eu vou à vila e às escolas livremente
Raúl Gopal – Chefe da segurança
“Nós
não toleramos actos de violência aqui na companhia. Não toleramos abuso
de direitos humanos. O segundo aspecto é que todas as pessoas da
Mozambique Ruby Mining passam por um processo de treinamento sobre o
respeito aos direitos humanos. Temos três forças privadas, a nossa
segurança interna, e temos uma força fornecida pelo governo. São 34
agentes da Polícia de Protecção de Recursos Naturais.
Ruby Mining sem DUAT
A
empresa Mozambique Ruby Mining diz ter feito pesquisa do potencial de
exploração apenas em 10% da sua área de concessão. Maninge Nice é uma
área não habitada, onde se pode encontrar potencialmente o rubi
primário. Entretanto, o mais significativo rubi secundário foi extraído
em Ntorro, aldeia com 92 famílias, situada dentro da concessão da mina. A
relação desta aldeia com a mina é a mais tensa, se comparada com outras
cinco aldeias que também estão espalhadas ao longo dos 33
600 hectares. A empresa afirmou que tinha apenas o DUAT correspondente a
uma área de sete hectares, aguardando até agora pela aprovação, por
parte do Conselho de Ministros, do DUAT da extensão de 25 mil hectares.
Em
Ntorro, boa parte dos camponeses com quem o jornal O País conversou não
está preocupada com os ganhos directos da exploração do rubi ou pedras
preciosas afins. A questão das machambas é o “calcanhar de aquiles.
Arnaldo Santos – Proprietário de machamba
“O
maior número da comunidade de Namanhumbir tinha benefícios na área da
agricultura, onde conseguia fazer as suas machambas para o sustento das
suas famílias. Lá onde está a operar a Ruby Mining é a área em que as
comunidades faziam as suas machambas.”
Albertina C. – Residente em Ntorro
“O rubi não nos interessa, porque sabemos que vai acabar essa riqueza. mas a agricultura não acaba”.
O
depósito de rubi de Montepuez está localizado no nordeste de
Moçambique, na parte sul da província de Cabo Delgado, a 210 quilómetros
da capital provincial, Pemba. Abrangendo cerca de 33 600 hectares,
acredita-se que seja o depósito de rubis recentemente descoberto mais
significativo do mundo.
O
primeiro leilão de rubi proveniente de Moçambique, em que a Gemfields
participou, ocorreu em Singapura, em junho de 2014, e foi considerado um
marco no comércio internacional da gema. Foi a venda de 33,5 milhões de
dólares, gerada pelo leilão inaugural, que revelou o maior depósito de
rubis do mundo, localizado em Montepuez.
A
Montepuez Ruby Mining Limitada (MRM) é uma joint venture que nasceu do
acordo entre a multinacional Gemfields e Mwiriti Limitada, uma empresa
moçambicana privada, em junho de 2011. A Gemfields detém 75% das
participações e a nacional Mwiriti 25%.Oito meses depois da formação da
MRM, o governo concedeu uma licença de concessão mineira de 25 anos para
explorar rubi e corundum.
280 milhões de dólares desde 2014
No
ano fiscal 2014, a empresa rendeu 40 milhões; no ano 2016, foram 73
milhões; e em 2017 aumentou o rendimento para 90 milhões. Não nos foi
apresentado o ano fiscal 2015.
O
relatório anual da Gemfields, a que o jornal O País teve acesso,
classifica 2015 como o ano do progresso e diz que a apreciação do rubi
de Moçambique no mercado continuava a criar valor, que triplicou desde o
envolvimento da Gemfield no negócio, em 2012. Apesar de parecerem
animadores para uma economia do tamanho de Moçambique, estes resultados
são inferiores em relação aos que constam de um relatório para
investidores do sector, em 2015.
O
documento apresenta a viabilidade da exploração de rubi da Gemfield, em
Montepuez, como um caso de sucesso e, se somarmos os resultados dos
quatro trimestres que compõem o ano fiscal, temos 112, 2 milhões de
dólares só em 2014, o que levanta questões em torno do valor apresentado
pelo director-geral da MRM, Gopal Kumar.
Um
relatório geológico independente, de 28 de setembro de 2015, escrito
por Paul Allan, um experiente geólogo de rubis e diamantes que trabalhou
nas actividades de exploração de Gemfields PLC de 2012 a 2014, descreve
o mercado como “muito significativo e crescente...” e que “até mesmo
uma descoberta de rubi primária ou secundária de tamanho modesto tem um
bom potencial para ser economicamente viável no futuro previsível”.
Os
números mostram que a empresa, coincidentemente, nunca mais foi a mesma
desde 2011, altura em que se estabeleceu em Moçambique, saindo dos 19.9
milhões em 2010, para 171.4 milhões em 2015.
Os
titulares mineiros estão sujeitos ao pagamento de tributos e impostos,
como, por exemplo, o imposto sobre o rendimento, imposto sobre o valor
acrescentado, imposto sobre a produção, impostos sobre a superfície, e
declararam ter tido rendimentos de 280 milhões desde o início da
produção e ter pago 55 milhões à Autoridade Tributária em impostos.
Referiram-se a três tipos, a saber, imposto sobre a produção (pago 28
milhões de dólares até FY 2016), o IRPC e uma taxa de dividendos.
Questionado sobre os custos anuais da empresa MRM, o director-geral,
Gopal Kumar, estima em 30 milhões de dólares.
O
director provincial dos Recursos Minerais e Energia, o geólogo Ramiro
Nguiraze, que está a trabalhar em Cabo Delgado há sete anos, disse que a
empresa pode ter atrasado o processo de reassentamento por razões
financeiras, uma vez que “o investimento inicial tem uma margem de 80%
de risco e os primeiros anos servem para a empresa estabelecer-se. Não é
fácil assumir uma despesa alta como a do reassentamento, sem ao menos
ter o dinheiro recuperado do investimento que é financiado pelos
bancos”, disse Nguiraze, que adiantou que o processo de reassentamento
está na mesa do governo, aguardando aprovação final.
Com
este atraso no processo de reassentamento, prolonga-se a violação clara
do estipulado no artigo 10 do Regulamento de Reassentamento Resultante
de Actividades Económicas, segundo o qual as populações directamente
afectadas têm o direito ao restabelecimento do seu nível de renda,
restauração do seu padrão de vida, transporte de seus bens para o novo
local de residência, viver num espaço físico com equipamentos sociais,
ter espaço para a prática de suas actividades de subsistência.
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