Uma coisa que coloca pontos de interrogação em torno da
“cientificidade” das ciências sociais é a questão de saber para que
perguntas as suas respostas são de facto uma resposta. “Roubou por causa
da pobreza” é uma resposta típica das ciências sociais. O problema,
contudo, é que a pobreza como problema coloca várias opções à pessoa:
trabalhar, trabalhar mais, mendigar, morrer de fome, roubar, ser
lambe-botas, ser político, suicidar-se, etc.
Quando dizemos que
alguém roubou como resposta à pobreza estamos a dizer que essa pessoa
fez uma opção entre várias alternativas. Não estamos a dizer que o
“roubo” seja a única opção. Logo, estamos a dizer que sabemos porque as
outras opções não são realmente opções. Os filósofos têm tratado deste
assunto quando discutem aquilo que eles chamam de “facto e folha” (fact
and foil), isto é a explicação de contrastes. Como é típico deles, a
pergunta que colocam é do gênero “porque P e não Q?”.
Vem isto a
propósito do curioso balanço de dois anos e meio feito pelo Presidente
da República e das discussões que ele despoletou. Pareceu-me curioso
porque ele tem o discurso do Estado da Nação para fazer isso. Se escolhe
um momento aleatório para o fazer, então o balanço devia estar ligado a
alguma coisa de vulto (como remodelação governamental, alcance duma
vitória qualquer, etc.) para fazer sentido político. Não entendi a
oportunidade deste “balanço”, mas essa questão é menos importante do que
as implicações sociológicas da própria ideia de “balanço”. Tenho em mim
que a discussão na esfera pública beneficiaria muito da clarificação
desta noção tendo em conta o que referi mais acima em relação à questão
de saber para que pergunta uma resposta é uma resposta. É na reflexão
sobre esta questão que vemos algumas das coisas que estão mal com a
nossa política e com os nossos princípios de governação.
O
“balanço” feito pelo Chefe de Estado faz uma lista invejável de
realizações nas áreas das infraestruturas, do turismo, da energia e da
paz. Aquilo que não pôde ser feito é atribuído a factores externos
(chuvas e seca). A pior coisa que poderíamos fazer depois de ler este
“balanço” seria aplaudir, ou reprovar. Quero dizer, podemos aplaudir ou
reprovar, mas isso só faz sentido depois de termos clarificado para que
pergunta as respostas dadas no balanço constituem uma resposta. E é aqui
onde a porca torce o rabo.
O documento é claro neste aspecto. O
Presidente disse no discurso inaugural: “O povo moçambicano é o meu
patrão”. Logo, a pergunta para a qual o balanço é uma resposta é
simples: prestar contas ao patrão. Só isso. Ou por outra, o “balanço”,
visto nesta perspectiva, não tem como ser criticado. O que ele realmente
fez nestes dois anos e meio não conta assim tanto quanto o cumprimento
da promessa de prestar contas ao povo, seu patrão. A gente pode,
naturalmente, perguntar se o parlamento e, em última consequência, as
eleições não seriam o melhor lugar para prestar contas, mas isso seria
ser pedante.
A partir desta simples constatação dá para ver o
primeiro problema. Elegemos alguém cujo programa político consistia em
ser nosso empregado. Parece-me pouco e redundante, mas é o que fizemos.
Esse programa político é difícil de avaliar, ou melhor, redundante
porque sendo o nosso sistema político democrático com eleições livres é
óbvio que qualquer pessoa que se torna Chefe de Estado é-o sob condição
de nos servir. Teoricamente, se ele não fizer isso, escolhemos outro,
pouco importa o que ele for dizendo ao longo do mandato. Aquando do
discurso inaugural – que foi festejado no Facebook por muita gente –
chamei atenção para isto e aconselhei alguma prudência.
Quem
quiser verificar isso só tem que recuar a Fevereiro e Março de 2015 e
ler um conjunto de 6 textos que se debruçavam sobre este problema. Na
altura, o problema que eu levantava era de saber como é que o novo
governo estava a definir o problema do país (para o qual a sua
composição e as suas políticas seriam uma resposta). A clarificação
dessa questão é que poderia permitir uma melhor discussão deste
“balanço”. Muitos recusaram-se a fazer isso e algumas pessoas próximas
do poder fizeram aquilo que melhor se faz em Moz, nomeadamente começar a
suspeitar que eu estivesse contra o seu chefe ou contra o governo.
Mas aqui vem ao de cima o segundo problema, nomeadamente a
superficialidade das discussões que por vezes fazemos. Depois de
enumerar as suas realizações, no sexto parágrafo ele escreve: “Se na
primeira metade do meu mandato dediquei-me [sic] a trazer Moçambique de
volta aos carris do progresso, na segunda metade deste mandato, em
simultâneo quero empenhar-me [sic] em assegurar que os benefícios do
nosso crescimento tenham impacto directo e sejam sentidos por cada um
dos moçambicanos”. Ora, isto para além de ser má assessoria (nunca
deviam deixar o Chefe de Estado dizer algo tão vazio de conteúdo como
isto), é quase um atestado de perplexidade. Na primeira metade do
“balanço” ele não falou do tipo de políticas que adoptou para enfrentar o
problema de Moçambique (na sua perspectiva, claro). Ele falou do número
de ligações eléctricas e de água (impacto mais directo que esse não
consigo imaginar) e não da política de infra-estruturas que ele adoptou.
Só faria sentido esperar que na segunda metade houvesse mais
impacto na vida das pessoas se na primeira metade o trabalho tivesse
consistido em criar as bases (mas conforme disse, isto é má assessoria).
E só para mostrar a extensão do problema, no sétimo parágrafo ele
continua escrevendo: “Continuaremos a investir na saúde, educação,
infra-estruturas, turismo e agricultura, ao mesmo tempo que combatemos
vigorosamente a corrupçao e todas as suas manifestações...”. Mais uma
vez, não diz que tipo de políticas vai privilegiar como forma de atacar o
problema concreto que ele associa ao país. Diz simplesmente o que
qualquer um de nós diria nas mesmas circunstâncias.
O debate na
esfera pública devia se focar nas seguintes questões: 1. Qual é a
relação entre saúde, educação, infra-estruturas, turismo, agricultura e
corrupção por um lado e o diagnóstico que o governo faz do país por
outro? Ou por outra, como é que o governo define o problema do país? 2.
Tendo em conta essa definição de que maneira o tipo de soluções que ele
propõe se relaciona com o problema definido? Ou por outra, essas
soluções fazem sentido e são viáveis? Só fazendo isso é que estaremos
realmente a discutir o “balanço” e, através disso, contribuir para que o
governo melhore o desempenho e fique mais próximo do seu próprio
desiderato de servir melhor o povo.
Quedar-se na primeira pessoa
do singular, no que ele fez ou não fez levanta questões interessantes
susceptíveis de alimentar discussões empolgantes no Facebook ou na
televisão. Só que discussões empolgantes nem sempre são o que o país
verdadeiramente precisa. O país precisa de discussões com mais
substância. Essas discussões só são possíveis quando os termos são
claros. Os termos são claros quando sabemos para que definição do
problema de Moçambique a multiplicação de ligações eléctricas e de água
constituem uma resposta. Se o problema for o que é sugerido no
“balanço”, nomeadamente o problema de o chefe de estado não ser
empregado do povo, toda a discussão que fizermos será de pouca utilidade
porque esse problema é redundante.
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