Elisio Macamo is with Adelino Branquinho and 2 others.
(Peça em um acto, três movimentos – cômico, tragicômico e subtilmente filosófico)
Personagens
Professor: docente, sereno, paciente; fala com precisão e imagens claras.
Transeunte Eloquente: carismático, rápido de raciocínio aparente, inflamado; domina o gesto e a rima fácil.
Estudantes: um coro mutável: Est.1, Est.2, Est.3… e Coro.
Narrador: voz que comenta de fora; às vezes interrompe a acção, como um coro grego; nomeia as falácias sem estragar a graça.
Cenário
Uma sala de aulas ampla, luz da manhã. Grandes janelas abertas para a rua. Um quadro com a frase: “Pensar é uma forma de cuidado”. Ao fundo, um relógio lento. Cadeiras em semicírculo. Do lado de fora, o ruído da cidade: Chapas, vozes, música alta.
Movimento I – Cómico (o vento entra pela janela)
(Luzes sobem. O Professor escreve no quadro. Estudantes ainda mexem no telemóvel, tiram cadernos. O Narrador avança um passo.)
Narrador: Hoje veremos como o vento entra pela janela e reorganiza a mobília da mente. Observem bem: nada mais sério do que o que começa em riso.
Professor (voltando-se à turma): Comecemos pelo princípio: quando discutimos política, confundimos muito a dor que sentimos com as causas que a produzem. A primeira é honesta e as segundas, complexas. A função da universidade é conservar a complexidade para que não nos enganemos com soluções de bolso.
(Murmúrios. Risos discretos.)
Est.1 (baixo para Est.2): Lá vem o discurso de “complexidade”…
Est.2 (sem tirar os olhos do telemóvel): Diz isso, mas não paga a renda.
(Uma sombra passa na janela. O Transeunte Eloquente ouve a última frase do Professor, pára, recua um passo, encosta-se ao peitoril e ergue a voz.)
Transeunte Eloquente: Ah! Complexidade? Ei, doutor das letras! Enquanto falam, o povo conta as metas. A barriga reclama, a rua protesta. Complexo é comer depois de cinquenta anos de desgoverno!
(A turma ri alto. O professor respira, mantém a calma.
Professor: Boa manhã. Esta é uma aula. Mas já que participa, está a confundir diagnóstico com desabafo. Ambos têm lugar e nenhum substitui o outro.
Transeunte Eloquente (gesticula, teatral): Eis o problema! Palavras polidas, paredes bonitas, janelas abertas… e nada entra! Vocês falam de “estruturas”, “instituições”… mas não conhecem o chão do mercado. Eu, sim, venho da rua. A rua fala claro!
Narrador (à plateia, em confidência): Ad hominem, em rima. A plateia gosta. Também noto um non sequitur: do mercado à inutilidade do conceito, um salto de ginasta.
Est.3 (hipnotizado): Ele tem razão… fala como o pessoal sente.
Professor: Sentir é sagrado; pensar é obrigatório. Sem o segundo, o primeiro vira refém do primeiro que grita.
Transeunte Eloquente: Ora, vejam: “obrigatório”! Aí está o tirano das ideias! Querem mandar até no que a gente sente. Os senhores da razão são polícias do coração!
(Risos e assobios. Estudantes batem nas carteiras como num estádio.)
Narrador: Falácia da falsa dicotomia: razão versus coração. E uma pitada de espantalho: ninguém proibiu sentir; pediu-se método para não nos enganarmos com o que sentimos.
(Buzina de Chapa lá fora. O Transeunte dirige-se directamente à turma.)
Transeunte Eloquente: Aceitam um conselho de graça? Apaguem o quadro, abram a praça! A melhor universidade é a rua, sem prova, sem chata mordaça!
(Aplauso. O Professor sorri de leve, como quem reconhece um verso bem medido.)
Professor: A rua ensina o que a sala não sabe; a sala organiza o que a rua não pode. Uma salva de palmas para a rua, e outra para o quadro. Sem as duas, tropeçamos no mesmo buraco com palavras diferentes.
(Os estudantes olham um para o outro. Riem menos. A luz desloca-se: a tarde avança.)
Movimento II – Tragicômico (a plateia vira torcida)
(A luz muda ligeiramente. O ruído da rua parece entrar mais. O Transeunte ganhou público: dois curiosos juntam-se no passeio. Dentro, a turma pende para a janela.)
Est.1: Professor, e se o senhor estiver a complicar? Se for tudo simples, bom e mau, nós e eles?
Professor: Se tudo for simples, basta trocar os nomes nos crachás e chamar “mudança”. Mas o país continua igual sob bandeiras diferentes. É por isso que a universidade insiste no incómodo da nuance.
Transeunte Eloquente: Nuance? Ah! A nuance é prima da desculpa! Vejam: cinquenta anos de nuance e a mesma sopa! Chegou a hora da coragem, não da vírgula!
Narrador (contando nos dedos): Apelo à emoção. Generalização apressada. E como brilha! O brilho não aquece a comida, mas aquece o aplauso.
Est.2 (para o Transeunte): Fala mais! Professor, deixa que ele continue. É que… nós entendemos melhor assim.
Professor: Compreender melhor não é compreender mais. A clareza pode ser raso; a dificuldade, às vezes, é profundidade. Perguntem a quem mergulha: a luz é linda na superfície, mas a vida mora lá embaixo.
(Silêncio breve. O Transeunte percebe a hesitação e avança.)
Transeunte Eloquente: Mergulhar? Bonito! Enquanto vocês mergulham, o povo afoga. Eu proponho boias, não tratados de natação.
Est.3 (rindo, alto): Genial! Boias! É isso!
Professor: Boias são urgentes; aprender a nadar é indispensável. Se nos contentarmos com boias, o mar fica dono de nós.
(Uma pausa. O Transeunte olha para o relógio do fundo, como se fosse pêndulo.)
Transeunte Eloquente: Tempo é luxo, doutor. Quem passa fome não colecciona diplomas.
Narrador: Eis o truque: opor urgência à estrutura, como se o remendo impedisse a reforma quando, na verdade, uma sem a outra é que nos condena ao ciclo.
(O barulho cresce. Dois estudantes levantam-se, vão à janela, filmam.)
Est.1: Isto sim é aula! Quem diria: a universidade… lá fora.
Professor (baixo, quase para si): E, no entanto, o “lá fora” aponta para “cá dentro” sempre que isto funciona (Ele volta-se à turma.). Tragam a rua para o quadro – não derrubem o quadro na rua.
(Metade da turma não ouve; a outra parte hesita. O riso do começo já é nervoso. O Transeunte percebe a mudança e impõe o golpe.)
Transeunte Eloquente: Doutor, responda então com simplicidade: Está com o povo ou com os livros? Connosco ou contra nós?
(A sala prende a respiração. O Professor olha longamente para o Transeunte. Sorri triste.)
Professor: Estou com o povo quando fico com os livros porque os livros são aquilo que o povo não tem tempo de escrever enquanto trabalha. E estou contra nós quando transformamos a dor em bandeira e a bandeira numa venda de esperança.
(Murmúrios. O riso cessa. Uma tensão doce e amarga ocupa a sala.)
Movimento III – Subtilmente filosófico (o vento leva, a poeira pensa)
(A luz torna-se mais quente; final de tarde. O ruído da rua baixa. Os curiosos vão-se dispersando. O Transeunte ainda quer o aplauso final. Os estudantes estão divididos: metade à janela, metade volta-se para o quadro.)
Transeunte Eloquente: Última palavra, professor: Feche a teoria, abra a vida! Vocês complicam para não sujar as mãos!
Narrador (delicadamente): Falácia por acumulação: como se pensar e agir fossem rivais. Não são. São irmãos que se perderam num mercado barulhento tipo Zimpeto.
Professor (voltando-se ao quadro; apaga “Pensar é uma forma de cuidado” e escreve): “Pensar é organizar o que sentimos para não sermos enganados pelo que desejamos.” (à turma) Se a universidade vos parecer inútil diante da eloquência do passeio, perguntem-se: quem defenderá a complexidade quando ela for impopular? Quem lembrará que, sem regras, os justos também erram? Quem terá paciência de ligar causas a efeitos quando as urgências queimam?
(Silêncio. O Transeunte dá um passo atrás; a plateia da rua rareia. Dentro, um estudante ergue a mão.)
Est.2: Professor… e se – mesmo assim – a universidade tiver falhado? E se estivermos a falar alto de dentro de uma casa que já não ouve o próprio eco?
Professor: Então reconstruímos a casa. Pedra a pedra como diz o nosso hino, com a rua a medir, a sala a desenhar e a janela aberta para que o vento critique. Mas não trocamos a casa por vento. Quem dorme ao relento confunde liberdade com frio.
(Alguns estudantes sorriem às escondidas. O Transeunte, vendo a maré baixar, tenta o golpe final.)
Transeunte Eloquente: Belas palavras, doutor. Mas eu fico com a minha: o povo primeiro!
Professor: Que assim seja. E que “o povo primeiro” não seja só um grito bonito: que isso signifique escolas que não cedem à vaidade do improviso, tribunais que não temem a pressa, hospitais que não esperam heroísmos, e políticas que não confundem aplauso com solução.
(Pausa. O Transeunte ajeita o casaco. Sorri para o seu próprio reflexo no vidro. Faz uma reverência para a turma, como artista ao fim do número.)
Transeunte Eloquente: Boa aula, meus caros (baixinho, para si). E bom vídeo.
(Sai. O ruído da rua volta ao normal. Fica o sussurro da sala.)
Est.3 (olhando o quadro): “Organizar o que sentimos…”. Professor, é mesmo disso que precisamos?
Professor: É o mínimo. Sem isso, a dor manda e a esperança vende. Com isso, talvez a dor negocie e a esperança trabalhe.
(O relógio marca a hora.) A luz declina.
Narrador: E assim foi o dia em que o professor “perdeu” a turma. Perdeu-a do barulho. Ganhou alguns do silêncio. E o vento, esse velho professor sem cátedra, levou o resto das palavras para a rua, onde talvez voltem como perguntas.
(O professor fecha as janelas, mas deixa uma fresta.) Escreve, sob a frase do quadro: “Amanhã: como a urgência e a estrutura dançam sem pisar o pé uma da outra.”)
(Luzes diminuem.) Sobe um breve tema musical de Fanny Mpfumo, interpretado por Ana Girão com Stewart Sukuma ao lado, o tema é calmo, sem nostalgia. Escuridão.)
Fim.
(Autor: IA)
Adelino Branquinho
Interessante esta peça de teatro
Dadivo Jose Litsecuane Combane
Wau! Faltou aquela parte: qualquer semelhança, pura coincidência.
Gostei das metáforas e carga irónica do texto. Vou colocar o Horacio Guiamba a professor e Branquinho a transeunte.
Guilherme Mussane
O seu ecletismo é interessante. Procurar formas profundas e agradáveis, para passar conhecimento não é tarefa fácil.
Gramei do seu mergulho no drama.
Uma salva de palmas!
- Edited
Rogerio Matos
Uma pequena lembranca filma todas tuas aparicoes maravilhoso abr
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