O governo como técnica (3)
A ministra moral
A entrevista de Ivete Alane, ministra do Trabalho, Género e Ação Social, é um exemplar do imaginário paternalista (!) que estrutura o discurso do Estado moçambicano. O tom dela é pedagógico. A ministra fala como quem ensina uma boa conduta. Explica o papel do ministério, detalha as reformas institucionais, descreve programas e campanhas com todo o rigor. Em cada resposta, há ordem. Mas falta política, entendida como o espaço de deliberação e de escolha sobre fins, não apenas sobre meios. O ministério surge como um grande aparelho de correcção moral e administrativa da sociedade, encarregado de “moralizar”, “educar”, “sensibilizar”, “organizar” e “fiscalizar”. A ministra fala mais como gestora e tutora do povo do que como representante duma cidadania plural. A sua linguagem é de serviço num horizonte de tutela.
Para início de conversa, a ministra apresenta o novo ministério como um sistema unificado de protecção social, um espaço em que “a segurança social básica e a obrigatória se articulam”. A ênfase é estrutural e processual. A fusão, diz ela, permite “flexibilizar a planificação”, “melhorar a coordenação” e “evitar sobreposição de tarefas”. O Estado é descrito como uma máquina de eficiência. Não há qualquer reflexão sobre o que essa fusão significa em termos de relação entre o Estado e o cidadão, se aproxima ou afasta, se democratiza ou centraliza e se fortalece o controlo político sobre os sectores sociais. A ministra vê a reforma como uma engenharia institucional. A política desaparece sob o léxico administrativo. E, como nos outros ministérios, a centralização é apresentada como sinónimo de eficácia, nunca como um risco para a democracia.
Não obstante, o verdadeiro núcleo do discurso da ministra reside na moral. Ela projecta o Estado como educador da sociedade, guardião da virtude e árbitro da conduta social. O seu vocabulário é saturado de termos normativos, tipo “honestidade”, “integridade”, “moralização”, “valores”, “deveres”. O trabalhador deve ser produtivo, a família deve proteger, a sociedade deve moralizar-se. O Estado, nesse imaginário, não é um mediador entre interesses, mas um mentor moral. É ele quem ensina ao cidadão o seu lugar e o sentido das suas obrigações. “O trabalhador tem de ser o primeiro fiscalizador”, diz a ministra; “o adulto tem de dar o exemplo”; “as famílias têm de se fortalecer moralmente”; “cada um de nós deve recusar o suborno”. A política é transfigurada em pedagogia. O poder não se apresenta como objecto de escrutínio, mas como fonte de exemplo. A governante fala da corrupção como problema de “fraqueza humana”, da desigualdade como questão de “desconhecimento” ou de “degradação do tecido social”. Assim, o que é estrutural é reinterpretado como uma falha individual. O Estado, absolvido, reaparece como professor.
Esse paternalismo moral permeia toda a entrevista. Quando fala do trabalho infantil, a ministra reconhece que o fenómeno se agravou “com o aumento da pobreza”, mas apressa-se a concluir que “é preciso moralizar as famílias”. O problema deixa de ser a estrutura económica que força as crianças à rua e passa a ser a irresponsabilidade dos adultos. “Cada um de nós”, diz ela, “deve recusar-se a comprar o amendoim às onze da noite”. O argumento é moralmente persuasivo, mas politicamente evasivo. O trabalho infantil é tratado como um desvio de conduta, não como uma expressão de desigualdade. A ministra cita a Constituição, mas não a usa para interpelar o Estado, usa-a para responsabilizar a sociedade. O Estado aparece como juiz de condutas. É como se o poder governasse pela pedagogia moral.
O mesmo padrão se repete quando o jornalista aborda a violação dos direitos laborais e a corrupção na inspeção do trabalho. A ministra reconhece que há casos, mas responde com a serenidade do moralista: “Seres humanos são seres humanos”, “o inspector deve ser exemplo”, “é preciso denunciar e apresentar provas”. A corrupção, aqui, é tratada como um desvio ético de indivíduos, não como consequência duma estrutura de poder e de impunidade. A solução é sempre a mesma: moralizar, educar e sensibilizar. O Estado nunca é parte do problema, pois é sempre o terapeuta da alma social. O discurso desloca a questão da justiça institucional para o terreno da consciência individual. A ministra fala de transparência, mas a transparência que defende é a da boa conduta, não a da “accountability” pública. A sua visão é profundamente republicana na forma, mas autoritária no espírito, pois ela parece acreditar na virtude do Estado sem, contudo, acreditar na virtude do escrutínio.
A tecnocracia reaparece, entretanto, como segundo eixo de justificação. A ministra descreve, com detalhe, os programas de inclusão social, tais como a expansão da inscrição no INSS, a digitalização dos pagamentos, a criação de novos balcões e a informatização do sistema. Tudo é apresentado como prova de modernização. Mas essa modernidade é instrumental. A tecnologia substitui a política, e o problema da confiança é resolvido por via técnica. Quando o jornalista menciona os escândalos do INSS, a ministra assegura que “o sistema está hoje saudável” graças à “informatização” e à “auditoria interna”. A ideia de que a justiça depende de instituições transparentes e de sanções públicas é substituída pela fé no sistema informático e na boa vontade dos auditores. É a mesma lógica do Estado contemporâneo onde a técnica redime tudo, praticamente. A informatização converte-se em símbolo de moral administrativa, e não em instrumento de responsabilização pública.
O mesmo ocorre na discussão sobre a protecção social. A ministra apresenta números e percentagens, reconhece atrasos, fala de pagamentos digitalizados e programas de transferência monetária, mas evita o essencial que seria a dependência do orçamento, o subfinanciamento estrutural e a desigualdade territorial do acesso. A pobreza é tratada como um problema de “disponibilidade orçamental” e não como uma falha política. Quando admite que só conseguiu pagar três meses de subsídios desde que assumiu o cargo, não questiona o modelo de prioridades orçamentais, preferindo se justificar dizendo que “é um processo” e que “a situação financeira do país é difícil”. O Estado aparece sempre como vítima das circunstâncias, nunca como agente da mudança. O discurso é linear, disciplinado, coerente, mas também exonera o poder de responsabilidade. A ministra é tecnicamente capaz, moralmente convicta, mas politicamente ausente.
Ao longo da entrevista, a ministra Ivete Alane fala muito em “educar” e pouco em “deliberar”; muito em “proteger” e pouco em “redistribuir”; muito em “valorizar” e pouco em “transformar”. A política social aparece como um conjunto de mecanismos de contenção, não de emancipação. O Estado não combate a pobreza. Administra-a. Os pobres não são cidadãos a quem se deve justiça, mas são vulneráveis a quem se presta assistência. O programa de protecção à infância, por exemplo, é descrito como um instrumento de combate à desnutrição, mas a ministra sublinha que os cuidadores “são capacitados em gestão de finanças” e “ensinados a cuidar melhor das crianças”. A intervenção estatal transforma-se numa pedagogia moral sobre as mães pobres. A pobreza é moralizada, não politizada. É o casamento perfeito entre a tecnocracia e o paternalismo, pois o governo aparece como professor da sociedade, guiando com benevolência os que precisam de ser corrigidos.
Esta maneira de pensar a governação é particularmente problemática nas actuais circunstâncias, marcadas por violência eleitoral, desigualdade social e desconfiança generalizada em relação ao Estado. A ministra fala em “moralizar a sociedade” e “recuperar o tecido social”, mas o que realmente falta é reconstruir o tecido político, isto é, restaurar a confiança entre Estado e cidadãos, reconhecer os limites do poder e submeter a administração ao escrutínio público. A moral substitui a política porque é menos arriscada. A técnica substitui o debate porque é menos conflituosa. O resultado é um Estado que se apresenta como virtuoso e eficiente, mas que governa por cima da sociedade, não com ela. “Fazer diferente”, no discurso da ministra, é educar melhor, não decidir de outro modo. É corrigir comportamentos, não reformar estruturas.
Em última análise, a ministra encarna o perfil ideal do tecnocrata moral do novo governo, pois transmite a imagem de disciplinada, pedagógica, fiel ao Presidente, convicta de que o país se melhora pela via da correcção individual. E isso denuncia o problema. A governante que fala de virtude e eficiência evita a palavra política. O Estado perde inevitavelmente a condição republicana de responder perante os cidadãos. No lugar de devolver poder à sociedade, o discurso tecnocrático da ministra reforça a distância entre governantes e governados. O resultado é um Estado profundamente antipolítico.
Fazer diferente, nas circunstâncias actuais, não pode significar apenas “educar” ou “informatizar”. Deve significar repensar o poder, devolver a palavra ao cidadão e reconhecer que a dignidade promove-se com justiça. Assim, o Estado vai moralizando a pobreza no lugar de a combater e isso faz com que o país continue a confundir virtude com governação e eficiência com legitimidade. Aí, as pessoas continuam a ser tratadas como alunos aplicados duma licção interminável sobre como merecer a protecção do Estado, mas nunca o seu respeito.
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