quinta-feira, 6 de novembro de 2025

O governo como técnica (4)

 Elisio Macamo

O governo como técnica (4)
O administrador do Estado
A entrevista de Inocêncio Impissa, ministro da Administração Estatal e Função Pública, é um texto fundamental para compreender o novo imaginário da governação moçambicana. O que nela se revela é a tentativa de reconfigurar o sentido do poder num Estado em crise de legitimidade, através da fusão entre técnica e moral. O ministro descreve uma visão total da administração pública que vai desde a organização territorial e a gestão de recursos humanos, passando pela modernização tecnológica e pelas reformas salariais, até ao combate à corrupção. Em tudo o que diz, há clareza e domínio técnico, mas também, como já vimos, uma ausência notável de política. O Estado é apresentado como uma máquina que precisa de ser ordenada, e o cidadão, como um utente que deve aprender a comportar-se de acordo com as normas da eficiência. A governação é reduzida à administração de fluxos e o poder é redefinido como a capacidade de garantir continuidade e disciplina. A entrevista, por isso, é a confissão duma filosofia de Estado que procura substituir a legitimidade pelo desempenho.
O ministro inicia a conversa afirmando que o seu ministério é “transversal” porque “o Presidente governa o território através dele”. A frase é duma clareza estrutural, pois a administração estatal não é um espaço de mediação política, mas o braço operativo da autoridade presidencial. A legitimidade, portanto, não nasce da deliberação pública nem da representação popular, mas do fluxo vertical da decisão executiva. Tudo o que o ministro descreve, desde a criação das autarquias até à reforma da função pública, está subordinado à ideia de que o Estado deve funcionar como um corpo coeso e hierárquico. O cidadão não aparece como protagonista. E, quando aparece, é sempre no papel de quem precisa de ser instruído e até disciplinado. A descentralização é invocada como técnica de melhor controlo do território. A governação é, em última análise, um problema de engenharia institucional. O ministro fala de eficiência, de modernização, de interoperabilidade dos sistemas, de simplificação de processos. Nada disso é em si condenável. O problema é que a racionalidade técnica substitui a reflexão política. A democracia é substituída pela administração. A legitimidade política transforma-se em legitimidade procedimental.
Essa substituição fica evidente quando o ministro aborda o tema da corrupção, talvez o ponto mais revelador da entrevista. Ele reconhece que o problema é grave, mas parece negar-lhe a natureza política. A corrupção, para ele, não é expressão duma estrutura de desigualdade e impunidade, mas uma falha de consciência individual. “Temos de actuar na consciência humana”, diz, “porque, ainda que inventemos tecnologia, a tecnologia vai até um determinado ponto. O cidadão tem de estar claro que merece o que tem direito, e o que não lhe é de direito, não pode exigir.” A formulação é lapidar. O problema do Estado deixa de ser a impunidade dos poderosos e a ausência de transparência institucional para se tornar a ganância do cidadão e a fraqueza moral do funcionário. A corrupção, assim, é moralizada e despolitizada. A crítica estrutural dá lugar à pedagogia. O poder, absolvido, reaparece como mestre moral da sociedade. É ele que educa. O combate à corrupção, que, em qualquer democracia, é instrumento de responsabilização política, converte-se, entre nós, em exercício de engenharia moral.
A solução apresentada, a saber, o portal do cidadão, que digitaliza mais de cem serviços públicos, é o emblema dessa moral tecnocrática. O ministro explica que a plataforma reduzirá o contacto entre o funcionário e o cidadão, diminuindo, assim, as oportunidades de suborno. A ideia revela que o Estado, incapaz de construir confiança, substitui a relação humana pela distância digital. A ética é substituída pelo protocolo informático e o vínculo social pelo automatismo. A corrupção é combatida não por meio de responsabilização política, mas pela eliminação do encontro. O cidadão ideal, nesse modelo, é quem não precisa de falar com ninguém. É a tecnocracia na sua forma mais pura, o governo da desconfiança administrada, por assim dizer. A moral pública é externalizada na arquitectura dos sistemas. A política é reduzida à gestão do risco. E o que parece modernização é, na verdade, uma profunda renúncia à responsabilidade política do Estado.
Mas é quando o ministro desloca a responsabilidade pela corrupção para o próprio cidadão que o seu raciocínio atinge a coerência plena. Ele afirma que muitos dos casos de suborno surgem da “pressa dos cidadãos”, que procuram atalhos para obter passaportes, bilhetes ou licenças. Lembrei-me de mim próprio quando esperei semanas por um passaporte que devia ter saído em sete dias e o Estado nem me devolveu o taco. O problema, diz, não é apenas o funcionário que cobra, mas o utente que quer resolver depressa. É a sociedade que cria o ambiente moral da corrupção. O argumento é inquietante. O Estado, que devia ser o garante do direito, converte-se em juiz do comportamento. A impaciência, diante desses serviços públicos cronicamente ineficientes, transforma-se em culpa moral. O cidadão, cansado de esperar, é acusado de ser cúmplice. O poder inverte a relação para que quem sofre se torne culpado. A política desaparece por completo. No lugar da responsabilidade institucional, instala-se a pedagogia da paciência. A ética pública transforma-se numa doutrina da resignação. O Estado não precisa de se reformar, basta ensinar o cidadão a comportar-se.
Esta visão reaparece na forma como o ministro fala sobre a própria administração pública. Ele descreve o processo de “purgar” os 18 mil funcionários fantasmas que recebiam salários indevidos: “Para nós é bom que tenham aparecido, porque o sistema está a funcionar.” O escândalo é reinterpretado como sucesso. A falha torna-se prova de eficiência. A descoberta duma fraude maciça não é sinal de fragilidade institucional, mas sim a demonstração de que o “sistema está vivo”. É a lógica autoimunizante da tecnocracia, em que o erro não nega o sistema, apenas o confirma. A máquina purifica-se a si mesma, e o poder mantém-se intacto. Não há lugar para indignação, nem para responsabilização política. Há apenas um ritual burocrático de autoverificação que transforma cada falha em evidência de progresso. A ética pública é substituída pela retórica da autossuficiência institucional. E a sociedade, reduzida à espectadora, é convidada a aplaudir a capacidade do Estado de se “autoavaliar”.
A mesma racionalidade formal aparece na forma como o ministro aborda o TSU (Tabela Salarial Única) e as reformas administrativas. Ele reconhece falhas e frustrações, mas insiste que a reforma “é a melhor da história do país” porque “tem lógica e coerência”. O mérito está na estrutura, portanto, não nos resultados. A justiça é definida pela consistência interna do sistema, não pelo impacto sobre os cidadãos. É o triunfo da forma sobre o conteúdo. O Estado já não precisa de se justificar pelo bem público, mas pela elegância da sua arquitectura normativa. A legalidade substitui a legitimidade. Cumprir as normas é mais importante do que compreender o seu sentido. O poder moraliza-se ao formalizar-se, e o debate político dissolve-se na linguagem da boa gestão.
A grande inovação do ministro, portanto, não está em negar a corrupção, mas em redefini-la. Ele desloca o problema do campo da política para o da consciência individual. Não fala de estruturas, fala de comportamentos. Não discute o poder, discute a alma. A corrupção deixa de ser uma falha sistémica e passa a ser uma imperfeição moral. A solução, consequentemente, não é reforma institucional, mas aperfeiçoamento do carácter. É uma estratégia politicamente eficaz, pois, assim, o Estado preserva-se, o cidadão culpa-se e a crítica torna-se ingratidão. A governação assume a forma de catecismo administrativo, uma pedagogia da obediência em nome da eficiência.
Nas circunstâncias actuais, este discurso é politicamente sedutor. Exaustos de escândalos, violência e desordem, a promessa de eficiência soa como redenção aos nossos ouvidos. Mas ao reduzir a corrupção a um problema de consciência e o serviço público a uma questão de fluxo, o Estado desarma a cidadania. O combate à corrupção não é apenas administrativo, é político no sentido republicano do termo, pois exige igualdade perante a lei, transparência e responsabilização. Ao substituí-lo por uma pedagogia de bons costumes e protocolos digitais, o ministro dá ao país uma moral sem política e uma ética sem justiça. E assim, a tecnocracia que se anuncia como inovação torna-se o novo rosto da obediência. “Fazer diferente”, neste contexto, já não significa transformar o poder, mas aperfeiçoar o seu mecanismo.
O ministro é, nesse sentido, o símbolo mais acabado do Estado que governa pela correcção e não pela convicção. O seu discurso é coerente, racional e moralmente confortável, mas, precisamente por isso, é perigoso, pois substitui a responsabilidade pelo comportamento e a política pela técnica. No fundo, o que ele propõe é uma sociedade reconciliada com o poder por meio da eficiência. A corrupção deixa de ser intolerável e passa a ser tolerável, desde que administrável. E o Estado deixa de ser um projecto de justiça para se tornar um sistema de desempenho. É uma forma refinada de apaziguamento político, a transformação da ética em “software” e da democracia em gestão.

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