sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Sociologia involuntária

Sociologia involuntária
Nunca o pessoal falou tanto sobre o país, mas tão pouco sobre o que significa compreendê-lo. Aqui, todos analisam, explicam, diagnosticam, sei lá, tecem seus vaticínios com ar grave. Há explicações sobre a corrupção, a juventude, o Estado e a pobreza. Essa vitalidade discursiva é, por si só, sinal de inteligência social, mas também sintoma de um problema mais profundo que me parece ser o colapso da consciência epistemológica. Confunde-se o facto de ter uma opinião com o de possuir conhecimento. Dessa confusão nasce o fenómeno que chamo de sociologia involuntária, a prática generalizada de pensar sociologicamente sem saber que se está a fazê-lo. O cidadão comum, o jornalista, o engenheiro ou o economista e mesmo o físico nuclear que comenta a vida política, que fala da legitimidade, da moralidade pública ou do comportamento do eleitorado, realiza, ainda que de forma rudimentar, o mesmo trabalho intelectual que funda as ciências sociais. Procura, por assim dizer, um sentido ao modo como vivemos em conjunto. O problema, contudo, não é o impulso de compreender, mas a ausência de ferramentas para transformá-lo em conhecimento.
A sociologia involuntária nasce, assim, lá onde a intuição se substitui à reflexão e a metáfora ocupa o lugar do conceito. Quando alguém diz que “o país não anda porque falta vontade política”, está a formular, sem o saber, uma hipótese sobre a relação entre agência e estrutura. Quando outro afirma que “a juventude perdeu valores”, está a interpretar uma transformação cultural e moral. Ambos fazem sociologia, mas sem método, sem teoria e, quiçá, sem noção da complexidade das variáveis envolvidas. O resultado é um discurso moral que confunde a aparência com a causa e a experiência pessoal com a explicação social. É por isso que muitos acreditam que as ciências sociais são inúteis. Como as suas próprias intuições parecem confirmar o que os cientistas sociais dizem, quem precisa disso? Julgam que saber é sentir que se tem razão. No entanto, o conhecimento começa quando reconhecemos o limite da nossa evidência e percebemos que compreender pode ir além de constatar. A diferença entre o que se sabe e o que se compreende é a diferença entre o instinto e a consciência.
Uma das tarefas centrais da educação, e da sociologia como forma de educação pública, é ensinar as pessoas a aprenderem, isto é, a terem consciência do que não sabem. Disse isto na minha aula inaugural na Universidade Pedagógica em Fevereiro deste ano e recentemente numa mesa redonda sobre a educação no Huambo, no Instituto Superior Politécnico Sol Nascente durante o Festival de Ideias Sol Nascente. O saber intuitivo é importante, mas é o saber reflexivo que o torna fértil. As ciências sociais não servem para substituir o bom senso, mas para torná-lo consciente de si. Elas fazem o que o senso comum não pode fazer, a saber, interrogar as condições que tornam as nossas próprias certezas possíveis. Quando alguém diz que “a corrupção é falta de carácter”, a sociologia pergunta o que faz com que o carácter se corrompa e que instituições sustentam esse comportamento. Quando alguém afirma que “o governo não escuta o povo”, a sociologia pergunta o que é “povo” e como se organiza a escuta no interior do Estado. Essa passagem do quê para o porquê, e do porquê para o como, é o que transforma opinião em conhecimento. Não se trata de arrogância académica, mas sim de rigor moral, porque compreender é a forma mais profunda de respeitar a realidade.
A sociologia involuntária é, por isso, um paradoxo. Ela é, ao mesmo tempo, um sinal de vitalidade intelectual e de fragilidade cultural. Revela que as pessoas pensam, mas não sabem como pensam, e que formulam perguntas importantes, mas sem instrumentos para tratá-las como perguntas de investigação. Em contextos de fraca cultura científica, essa energia cognitiva dispersa transforma-se facilmente em ruído. O discurso público torna-se uma sequência de frases moralmente correctas, mas epistemologicamente ocas. Fala-se muito de tudo, mas pouco se compreende de algo (ao longo desta semana, várias pessoas estão entretidas a confirmar no Facebook que não sei do que falo e sempre a me fazerem um “tag”). E quanto mais essa retórica se instala, mais se reforça a ideia de que as ciências sociais são desnecessárias. O resultado é um círculo vicioso em que a intuição ocupa o lugar da análise e, ao fazê-lo, destrói a própria possibilidade de análise.
O valor das ciências sociais não reside em dizer o que ninguém sabia, mas em dar nome, estrutura e verificabilidade ao que todos pressentem. A sua utilidade é tornar consciente o que a sociedade pensa de si sem o saber. Onde a arrogância intelectual e o anti-intelectualismo se confundem como no nosso país, compreender o que não se sabe é o acto mais revoluccionário de todos. As ciências sociais ensinam-nos que observar é sempre interpretar e que pode não haver neutralidade no olhar. Transformam o óbvio em problema e o costume em questão. Ao fazê-lo, protegem a sociedade da ilusão de evidência, essa forma subtil de ignorância que nos faz acreditar que tudo é simples, que basta ver para entender.
O futuro intelectual e cívico de Moçambique depende dessa tomada de consciência. Enquanto o debate público se limitar à sociologia involuntária, essa mistura de moral, metáfora e ressentimento, continuaremos a confundir falar com compreender e opinião com pensamento. A emancipação começa quando o cidadão percebe que compreender a sociedade passa por descrevê-la, sim, mas vai mais além, pois compreender é interrogar-se sobre o que a torna possível. Saber o que não se sabe não é sinal de fraqueza, é a mais alta forma de inteligência. Sócrates admitiu isso. Hampatê Bá também quando disse “se sabes que não sabes, saberás!”. A tarefa das ciências sociais é, em última instância, ensinar a pensar o pensamento, para que o país aprenda, enfim, a aprender.
O grande desafio, contudo, é conseguir que os muitos sociólogos involuntários que andam por aqui desçam lá da cimeira da sua superioridade moral (porque defendem as causas mais justas) e examinem as suas próprias incongruências antes de se entregarem ao seu passatempo favorito de apontar o dedo acusador aos que exercem a sua cidadania com consciência, mesmo que sem perfeição.
Amélia Russo de Sá
Pertinente. Vou ainda ler o que escreveste umas tantas vexes, pois é muito substantivo . Obrigada
Cal Barroso
Gosto muito do final do texto, Primo. E por isso considero que seja justo que os “detentores” do saber, compreendendo essas facetas todas da humanidade, e no caso em apreço, forma rudimentar como o economista, o engenheiro, “aquele da 3ª classe rudimentar” realizam o mesmo trabalho intelectual que funda as ciências sociais, saibam descer da cimeira da sua superioridade intelectual e encontramo-nos todos no meio do caminho para juntos caminharmos.
É que tenho para mim que este trem não vai parar… e se é assim que “COMBOIEMOS” juntos harmoniosamente.
Nizete Monteiro Cassamo
Sugere que se desencorage o exercício da sociologia involuntária?
Desculpe a ignorância!
Elisio Macamo
Nizete Monteiro Cassamo, não. em nenhum momento.
Nizete Monteiro Cassamo
Elisio Macamo Obrigada! Gosto de ler as suas reflexões. Ajudam-me a perceber a lógica do funcionamento da nossa sociedade. Obrigada por partilhar, e sobretudo por nos ensinar gratuitamente! Enorme sentido de cidadania. Tem o meu respeito!
Carolina Menezes Matos
Mais uma vez, o meu aplauso.
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