O governo como técnica (2)
O engenheiro do Estado
A entrevista do ministro das Obras Públicas, Habitação e Recursos Hídricos, Fernando Rafael, também testemunha a forma como a tecnocracia se instalou no coração do Estado. Ao longo de uma hora de conversa, o ministro fala sobre reformas, estruturas e planos, descrevendo um governo que se imagina uma empresa. A sua missão é organizar, coordenar, racionalizar, fiscalizar, normalizar, padronizar, etc. Tudo passa-se como se o país fosse um vasto organograma à espera de coerência interna, e não uma comunidade política à procura de sentido e legitimidade. A palavra “desenvolvimento” aparece repetidamente, mas nunca como horizonte moral ou projecto nacional. Ela surge como resultado esperado duma boa gestão administrativa. A política, que devia ser o espaço do conflito legítimo e da deliberação pública, é substituída pela convicção de que os problemas nacionais se resolvem com competência técnica, supervisão rigorosa e controlo hierárquico. É uma linguagem limpa e funcional, precisamente o que a torna perigosa.
O ministro apresenta com orgulho a reforma que concentra no seu ministério as funções de construcção e manutenção de escolas, hospitais e edifícios públicos, antes dispersas por outros ministérios. A criação da Administração Nacional de Obras Públicas (ANOP) é o símbolo máximo dessa centralização, apresentada como racionalização, mas que, na verdade, representa uma regressão política. Ao reunir sob um único comando o poder de construir e fiscalizar, o Estado reforça a sua própria autoridade administrativa, esvaziando o princípio da descentralização que a Constituição consagra como base da democracia local. O ministro insiste que a ANOP “não ofusca” as autarquias e que servirá apenas de “parceiro técnico”, mas a retórica da eficiência denuncia a operação inversa que faz com que as autarquias deixem de ser órgãos de decisão para se tornarem extensões dum centro coordenador. Fala-se de descentralização, mas pratica-se tutela como no tempo colonial. A participação de que se fala é padronização. A governabilidade, nesse discurso, é sinónimo de controlo.
O mesmo padrão repete-se quando o ministro aborda o tema da habitação. Sob o tom burocraticamente entusiasmado, emerge a fusão entre tecnocracia e culto presidencial. Cada projecto (Terra Infraestruturada, Cidade Jovem, Cidade Petroquímica) é apresentado como “sonho” ou “iniciativa” do Presidente da República. O ministro fala como executor fiel da visão dum outro, como se a sua função política fosse traduzir a vontade presidencial em programas e metas. A governação torna-se uma cadeia de execução, onde o Presidente sonha, o ministro concretiza e o povo agradece. A dimensão deliberativa da política, portanto, o direito de discutir, questionar, discordar, etc. desaparece. O projecto “Terra Infraestruturada”, apresentado como solução inovadora, é, na verdade, a continuidade duma visão economicista da sociedade. “[T]ransformar a terra em activo”. A terra, ao invés de ser espaço de pertença, torna-se valor de mercado. O cidadão, ao invés de sujeito de direitos, é convertido em investidor individual. A habitação é tratada como uma oportunidade económica, não como uma política social. Mesmo a promessa de inclusão é delimitada. Os beneficiários são professores, médicos, polícias, portanto, funcionários públicos formais, isto é, o grupo que garante estabilidade ao Estado e depende dele. O critério de justiça social é substituído pelo critério da utilidade funcional.
A tecnocracia, porém, só se consolida plenamente quando a política é recoberta por uma retórica de transparência. Quando o jornalista o confronta com a percepção pública de favoritismo nos projectos habitacionais, o ministro responde que “há transparência porque o processo é digitalizado”. A digitalização vira prova da legitimidade, ou seja, o código substitui o juízo moral enquanto o algoritmo substitui a responsabilidade política. A crença ingénua na neutralidade tecnológica encobre o que realmente está em jogo, nomeadamente, a distribuição desigual de poder e oportunidades. É difícil não concluir que o discurso tecnocrático tem a função de despolitizar a desigualdade, tornando-a um problema de gestão. A injustiça é tratada como falha de sistema, e não como falha de Estado.
Na componente dos recursos hídricos, o ministro repete o mesmo padrão discursivo. O país é descrito como conjunto de barragens, sistemas de abastecimento e fundos de investimento. Fala-se de “reestruturar o sector”, “criar um fundo único”, “melhorar a sustentabilidade financeira”. A água, que é um dos problemas políticos mais sensíveis de Moçambique, marcada por secas, cheias, desigualdade territorial e dependência transfronteiriça, é tratada como mera variável técnica. Não há uma só frase sobre o direito humano à água, sobre a justiça ambiental ou sobre a desigualdade regional de acesso. O problema é definido em termos de capacidade de armazenamento e volume de barragens; a solução, em termos de eficiência e coordenação. Mesmo quando se fala de poluição dos rios e de contaminação provocada pela mineração, a resposta é a criação de “equipas conjuntas de monitoria”. Nenhuma palavra sobre responsabilização, nem sobre o papel do Estado na proteção de populações vulneráveis. A técnica absorve o moral, e o poder perde o seu peso ético. O resultado é um Estado que gere bem, mas governa pouco.
Percebe-se que o ministro fala sempre num registo de causa e efeito administrativo. Os objectivos são todos instrumentais (“melhorar eficiência”, “reduzir assimetrias”, “padronizar obras”). As medidas são todas operacionais (criar institutos, fundir fundos, digitalizar processos). As condições são todas técnicas (melhor coordenação, financiamento externo, formação de quadros). Falta uma linguagem de justificação política, do porquê de cada escolha, do sentido moral que a sustenta e das consequências sociais que a legitimam. Mesmo quando aborda a dependência financeira, o ministro o faz sem desconforto. Ele diz “mais de 90% do financiamento vem de parceiros externos”. Não vê isso como vulnerabilidade soberana. Transforma-o em sinal de sucesso, pois, aparentemente, “o bom relacionamento com os parceiros é fundamental”. A subordinação torna-se mérito. A dependência converte-se em prova de maturidade institucional. E, assim, o Estado abdica de pensar a si mesmo, preferindo exibir a sua eficiência como gestor de recursos alheios. Governa-se para convencer doadores, não para responder ao país.
O mais preocupante é que esse modelo de governação encontra aceitação social porque oferece uma aparência de racionalidade num contexto de cansaço político. Depois de eleições violentas e de sucessivas decepções, a sociedade só quer ordem e resultados, o que a tecnocracia promete. O preço é alto, pois substitui-se a política pela administração. Ao apresentar-se como gestor competente, o ministro protege-se do escrutínio político e transforma a autoridade em perícia. Sob o discurso do “fazer diferente”, o governo reitera o velho hábito de concentrar poder e reduzir a cidadania à condição de beneficiária. A diferença, afinal, não está no que se faz, mas na forma como se justifica o que se faz. O tecnocrata não precisa de convencer. Basta-lhe demonstrar.
Governar devia ser dar sentido, decidir sob condições morais e responder pelas consequências das decisões. Um ministro que fala apenas de indicadores e projectos sem discutir prioridades e valores não está a governar, mas, sim, a administrar. E faz da república uma empresa pública. Fazer diferente, nas circunstâncias actuais, tinha de significar repensar o poder, pois repolitizar a governação é restituir ao Estado a consciência de que a legitimidade precede a eficiência.
O discurso do ministro é, portanto, o retrato duma mentalidade política que substituiu o ideal de soberania pelo ideal de performance. Ao esconder o poder atrás da linguagem da gestão, o Estado protege-se do julgamento público e perpetua o seu próprio silêncio. Esse é o paradoxo que vivemos. Quanto mais falamos de eficiência, menos nos entendemos como república. Giramos em círculos cada vez mais bem desenhados e cada vez mais longe das pessoas.
Kasswamy Tivane
Ao longo dos 50 anos tudo de bom que os nossos ouvidos já ouviram, se tudo tivéssemos materializado, mesmo as almas e os Anjos do paraíso trocariam o paraíso e virem morar em Moçambique.
Somos recordistas em discursos e relatório vazios.
Casa jovem foi uma promessa do último mandato do pr. Chissano. Isto é; os primeiros jovens a habitarem nas ditas casas já seriam avós, já que gerar filhos sem planos é um dever obrigatório na nossa sociedade.
Armistício Mulande
Esses acham que podem governar este país a partir dos ministérios em Maputo, com essa linguagem de eficiência, padronização, etc. Estão enganados. Ao fim destes 5 anos, estaremos aqui, na mesma: sem eficiência, sem eficácia, e muitos rios de dinheiro gastos em instituições centralizadas que não respondem a nenhum dos desafios reais do país.
A única vez em que este país deu passos reais claros (2005-2014), foi quando o governo considerou o cidadão o centro da sua actuação governativa, ensaiou uma certa descentralização. É muito provável que os níveis de eficiência tenham sido baixos (duvido que tenha sido assim), mas o país começou a se sentir, o cidadão começou a ter alguma confiança no seu próprio país.
O país é vasto, não é possível administra-lo a partir de Maputo, num ministério ou num instituto público. Essa tecnicidade vai colocar os administradores distritais, presidentes de municípios, governadores e outros governantes locais na prateleira; não serão tidos nem achados nos processos governativos.
E mais, vê-se que há um défice técnico muito grande neste tal governo que se pretende tecnocrata. Então, como é que isto será?
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