O governo como técnica (1)
A fiel de armazém do Estado
Nos textos que se seguem, quero reflectir sobre entrevistas concedidas por membros do governo à TVM. Dão uma boa ideia de como os nossos governantes pensam e porque isso pode não ser bom para os desafios que enfrentamos como país. Vou dar o pontapé de saída com a entrevista concedida pelo ministro dos Transportes e Logística, João Matlombe. Ela documenta muito bem o imaginário tecnocrático que domina a governação moçambicana. Durante quase uma hora de conversa, o ministro fala de portos, estradas, fronteiras, cabotagem marítima, transporte urbano, reestruturação da companhia aérea e programas de mobilidade em tom de competência. Dá números precisos, cronogramas, investimentos, metas de crescimento, percentagens de contribuição ao PIB, redução de tarifas, modernização de infraestruturas. Nada parece escapar à racionalidade da planificação. Interessante nisso tudo, contudo, é a completa substituição da política pela técnica. O ministro fala com o rigor dum engenheiro e não com a consciência dum governante. A cidadania desaparece do quadro conceitual e o Estado surge como uma máquina administrativa que precisa apenas de ser lubrificada com eficiência.
O discurso assenta na crença de que a governação é um exercício de organização racional dos meios, e não uma prática de deliberação pública sobre os fins. Daí que a entrevista pareça um relatório técnico, isto é, uma enumeração de projectos e medidas sem qualquer reflexão sobre prioridades sociais ou contradições políticas. O ministro descreve a “integração de sistemas fronteiriços”, a “duplicação de linhas férreas”, a “redução do tempo de espera na logística”, a “cabotagem como oportunidade estratégica”, mas nunca problematiza como essas políticas se articulam com a experiência vivida dos cidadãos. O poder aparece como a capacidade de executar, não como a responsabilidade de decidir entre alternativas legítimas. No fundo, é aquela nossa crença de que a boa governação é um problema de competência técnica.
A tecnocracia em Moçambique vem dum deslocamento que concebe o país como um estaleiro de obras. O lema “fazer diferente para ter resultados diferentes” promete uma ruptura com o passado, só que no nosso contexto é antes a confirmação da tendência de fazer o mesmo, apenas mais depressa. O ministro fala de “celeridade”, “modernização”, “decisões disruptivas”, “soluções ousadas”. Todas essas palavras ocultam a ausência de reflexão sobre o que significa, afinal, fazer diferente. A diferença é definida apenas pelo ritmo e não pela orientação política da governação.
Acabamos de sair de eleições violentas. A legitimidade política encontra-se fragilizada e a confiança entre Estado e sociedade está no ponto mais baixo desde o fim da guerra civil. Nessas circunstâncias, a promessa tecnocrática de eficiência pode se tornar numa forma de fuga. A pressa converte-se em virtude porque evita a exigência de explicação. Fala-se de obras, contratos e indicadores, mas não se fala de justiça, de equilíbrio regional, ou mesmo de prioridades distributivas. Em vez de se discutir o sentido do desenvolvimento, prefere-se discutir o cronograma da sua execução. A política transforma-se em resultados.
Essa transformação não é neutra porque a linguagem técnica, ao pretender ser objectiva e eficiente, torna-se um instrumento subtil de legitimação do poder. Ao falar de governação como se fosse gestão, o ministro insinua que os problemas do país se resolvem com boas práticas administrativas e não com decisões políticas. Essa deslocação é crucial, pois a técnica substitui a deliberação. O governante deixa de ter de justificar as suas escolhas, bastando-lhe demonstrar que elas são racionais e eficazes. Sob o disfarce da neutralidade técnica, o poder torna-se imune à crítica, porque toda contestação passa a parecer irracional, ideológica ou mal informada.
Esta forma de racionalidade é particularmente problemática porque o poder político já vive de uma legitimidade frágil. A tecnocracia oferece ao Estado uma espécie de escudo moral ao permitir que a governação se apresente como competência e não como dominação. Ao substituir a linguagem da política pela da gestão, o governo protege-se do conflito democrático e reforça a sua autoridade administrativa. A promessa de “fazer bem” torna-se, assim, o substituto do dever de prestar contas. É uma operação sofisticada, pois a aparência de modernização serve para conservar as hierarquias tradicionais do poder.
No discurso do ministro, o cidadão surge apenas como destinatário dos resultados, é aquele que “vai beneficiar de estradas”, “vai pagar menos portagens”, “vai ter transporte mais acessível”. Nunca é sujeito das decisões, nunca é consultado, nunca aparece como coproprietário da governação. A sua presença é instrumental, não política. Esta maneira de conceber a cidadania é sintoma duma longa história de paternalismo estatal, que persiste mesmo quando o vocabulário muda. O Estado continua a tratar o povo como um público a ser servido e não como uma comunidade a ser representada.
Essa redução da cidadania a consumo de serviços tem consequências graves. Primeiro, porque priva o governo da confiança, que é o seu maior recurso. Um cidadão que apenas recebe, mas não participa, torna-se inevitavelmente desconfiado. Segundo, porque elimina o espaço de aprendizagem política que toda a democracia precisa para amadurecer. E, por fim, porque converte a governação num exercício unilateral de poder. O Estado faz, o povo assiste. A tecnocracia, nesse sentido, não é apenas um estilo de gestão, mas sim um modo de domesticação do político, isto é, uma forma de neutralizar o conflito social pela retórica da eficiência.
Governar, contudo, é um acto político. Governar é escolher, e toda escolha tem implicações éticas e simbólicas. Decidir investir num porto ou numa estrada, numa fronteira ou num hospital, é decidir que tipo de sociedade se quer construir. Cada acto de governo é como se houvesse uma interpretação moral do país. Reduzir essas decisões a equações de custo-benefício é esvaziar o sentido da própria governação. Ou por outra, inovação política está em pensar o poder como responsabilidade partilhada. Fazer diferente, no contexto moçambicano, devia significar devolver à governação o seu carácter deliberativo, portanto, submeter as decisões técnicas a critérios de justiça, envolver o Parlamento, fortalecer a fiscalização pública e restaurar a confiança através da transparência. Devia significar reconhecer que o problema de Moçambique não é técnico, mas político, e que nenhum engenheiro, por mais competente que seja, pode substituir o trabalho moral da reconstrução da legitimidade.
O discurso tecnocrático de João Matlombe é exemplar porque mostra como a promessa de eficiência pode ser, paradoxalmente, uma forma de imobilismo. Ao apresentar o governo como empresa e o cidadão como cliente, a tecnocracia elimina a dimensão crítica da política e substitui o ideal republicano de governação pelo ideal empresarial de desempenho. No curto prazo, essa retórica oferece conforto por dar a impressão de que o país está a ser “gerido”. Mas, a longo prazo, mina a própria ideia de Estado como espaço de pertença comum.
“Fazer diferente”, nas actuais circunstâncias, não é fazer mais rápido nem falar com mais números. É repolitizar o Estado, restituir à governação o direito e o dever de discutir o que é justo, o que é possível e o que é moralmente aceitável. É admitir que eficiência sem legitimidade é apenas outra forma de autoritarismo, um autoritarismo com planilhas, relatórios e discursos bem redigidos. Enquanto os nossos ministros continuarem a falar como técnicos e não como responsáveis por um destino colectivo, o país vai estar condenado a confundir progresso com movimento. Precisamos duma mudança de consciência política, do que significa, verdadeiramente, governar um país.
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