quinta-feira, 13 de novembro de 2025

A racionalidade do irracional

 Elisio Macamo

A racionalidade do irracional
Faz tempo que não sou criticado por escrever “tomos” (ou “lençois”) nem por desvalorizar a minha formação. Masoquista intelectual que sou, fiquei com vontade de voltar a ser objecto de análises profundas da desgraça que sou como académico. Nada melhor do que me ocupar de falácias, carisma e do que considero ser a pedagogia invertida da cidadania de alguém que tem um potencial enorme para ser um grande líder político, mas que cada vez mais se perde por falta de projecto político. A intervenção de VM no World Liberty Congress, em Berlim (por acaso estive também lá neste último fim de semana, mas numa conferência menos importante), revela muito sobre o futuro da democracia e confirma o estado actual do nosso debate público.
É uma peça de retórica em estado puro, em que as falácias substituem os factos e a emoção suplanta a análise. Nele, VM reivindica ter “iniciado a Geração Z”, “mobilizado 34 milhões de pessoas”, “impactado 11 países africanos” e “ganho as eleições de 2024”, antes de acrescentar, com um toque quase bíblico, que “preferiu não tomar o poder pela força”. O texto é breve, mas com uma sucessão impressionante de erros lógicos e de distorções factuais. E, no entanto, continua a fascinar milhares de seguidores, muitos deles formados e instruídos. O que explica essa adesão? Que tipo de racionalidade se esconde na crença no irracional?
O primeiro elemento que saltou à vista foi a densidade das falácias. VM constrói a sua intervenção sobre uma sequência de falsas causalidades (“o que aconteceu em Moçambique inspirou 11 países”), hipérboles heroicas (“mobilizei 34 milhões de pessoas”), auto-referências messiânicas (“iniciei a Geração Z”) e uma falsa modéstia performativa (“podia ter tomado o poder, mas não quis”). Todas elas transformam a impotência em virtude e a derrota em redenção. Ao afirmar que ganhou as eleições, liderou uma geração e renunciou à violência, VM cria uma narrativa total em que ele é o ponto de origem, a medida e o limite de tudo. O raciocínio lógico desaparece, sendo substituído por uma dramaturgia moral. O que o ouvinte aplaude não é a coerência, mas o enredo de um homem puro num mundo corrupto.
Esta manipulação da lógica é magistral porque trabalha com o material de que vive o populismo: o ressentimento. O populista moderno não precisa de convencer. A sua relação com a verdade é estética. Ao dizer que “iniciou a Geração Z”, Mondlane reescreve a história recente com um narcisismo quase inocente. A designação “Geração Z” é uma categoria sociológica global e os movimentos juvenis africanos que inspiraram rebeldia cívica (do “On en a marre” no Senegal – “estamos fartos” – ao Geração Z do Quénia) existiam muito antes de ele entrar na cena política nacional. O mesmo vale para as suas alegações de vitória eleitoral ou de mobilização de “34 milhões de pessoas durante três meses”. Ele não ganhou as eleições, por mais vezes que o repita, e a população total de Moçambique ronda precisamente esse número, o que tornaria tal mobilização simplesmente impossível. O governo não abandonou o país, como afirma, e seria absurdo imaginar que o pudesse fazer enquanto as principais estradas estavam bloqueadas. Se 34 milhões de moçambicanos o tivessem apoiado, ele teria chegado ao poder sem resistência. A retórica da unanimidade é, aqui, o substituto da verdade, uma espécie de ficção emocional que oferece aos desiludidos a ilusão de terem participado num feito histórico.
Há ainda um ponto curioso, e talvez o mais preocupante em relação ao sentido político de VM. Quando ele se vangloria de ter “paralisado o país”, reivindica, sem perceber, a própria conduta que fundamenta o processo judicial movido pela Procuradoria-Geral da República, o mesmo que ele classifica de perseguição política. Ao dramatizar os acontecimentos como um sacrifício pessoal pela liberdade, acaba por reconhecer, inadvertidamente, a factualidade das acusações que o incomodam. Esta inversão é típica do populismo. O acto que seria na lei responsabilidade transforma-se, na narrativa, em virtude moral. O erro é transfigurado em prova de coragem, e a contradição, em sinal de autenticidade. O que é inquietante, contudo, é que público não o aplaude apesar dessas incoerências, mas por causa delas. Nelas vê a pureza de quem “diz o que pensa”, ainda que o que pensa contrarie a evidência. A falácia, neste caso, não é um desvio da verdade, é o próprio método da política. Não sei, sinceramente, que ideia de futuro político pode estar na base deste imaginário, pois cultivar a inverdade desta maneira mina qualquer possibilidade de se fazer política racional no futuro.
Só que a questão não é nova. Política como narrativa moral não combina com coerência porque o verdadeiro e o falso importam menos do que o puro e o impuro. Essa inversão é o que chamo de pedagogia invertida da cidadania. Trata-se dum processo através do qual o espaço público deixa de ensinar as pessoas a pensar e passa a ensiná-las a reagir. O populismo funciona como uma escola de pernas para o ar. Ao invés de fomentar a dúvida metódica, cultiva a convicção emocional, substitui o argumento pela indignação e simplifica tudo para o agrado dos que confundem fortes opiniões com maturidade intelectual. Daí a pessoas deixarem de procurar compreender e só quererem pertencer, a distância não é grande. A adesão torna-se sinal de virtude, e a discordância, de traição.
Esse é o ambiente em que as falácias encontram terreno fértil. O público não aplaude VM apesar das suas incoerências, mas por causa delas. Elas funcionam como marcadores de autenticidade, pois quanto menos técnico e mais improvisado o discurso, mais próximo ele parece do “povo verdadeiro”. A ausência de rigor transforma-se em sinal de pureza moral. Trata-se duma forma de anti-intelectualismo emocional, típica das sociedades onde o saber perdeu prestígio e a razão foi associada à arrogância das elites. O conhecimento passou a ser visto como um instrumento de dominação. O resultado é uma estranha inversão em que o erro torna-se virtude, a ignorância, coragem e a crítica, arrogância (que é o que a gente vê com todas as acusações de “tomos” e “lençóis”). Nessa lógica, o académico que critica é visto como inimigo do povo, e o político que raciocina de forma problemática é visto como seu intérprete natural.
O fenómeno é mais amplo do que VM. Ele apenas o encarna de forma mais nítida. Quando pessoas formadas, com acesso à informação e à capacidade analítica, escolhem acreditar em discursos como o dele, não é porque desconhecem os factos, mas porque desconfiam do valor dos factos. A factualidade perdeu a sua autoridade simbólica. As instituições, a imprensa, a academia, enfim, tudo o que devia ser fonte de validação tornou-se suspeito. E como Estado se apropriou da racionalidade legal e a transformou em instrumento de poder, o discurso irracional surge como libertação. Só que é a racionalidade do irracional. Quanto menos plausível, mais autêntico parece. A mentira é lida como resistência, e a confusão, como sinceridade.
Há ainda uma dimensão mais profunda, de natureza quase pedagógica. O populismo de VM é eficaz porque oferece um sentimento de protagonismo. Ele ensina que cada um pode ser “geração Z”, “líder moral”, “vítima nobre”, basta acreditar. A retórica falaciosa cria pertença. O problema é que essa pertença se constrói em desacordo com a própria ideia de democracia. A democracia é o regime da verificação e do argumento. O populismo é o regime da convicção e da emoção juntamente com a personificação do poder. Quando a falácia se torna instrumento de cidadania, o pensamento crítico converte-se em heresia, daí não só os ataques violentos a quem critica, mas também o aplauso ruidoso à “irreverência” ou à “iconoclastia”.
O caso VM é, pois, menos sobre ele do que sobre nós. Ele revela a facilidade com que um discurso moralmente sedutor pode colonizar um espaço público intelectualmente enfraquecido. Mostra que o problema não é apenas político, mas epistemológico dum país que não distingue entre raciocínio e ressentimento. A sua popularidade é o sintoma visível duma doença mais antiga, a da substituição da razão pública pela moral privada. Esse é o terreno ideal da pedagogia invertida que faz do erro convicção. O tal World Liberty Congress pretendia celebrar a liberdade, suponho. VM usou-o, nesta intervenção, para celebrar a si mesmo. A sua intervenção é uma alegoria perfeita dum tempo em que o discurso triunfa sobre o conteúdo. A racionalidade do irracional é, afinal, o nome elegante do nosso próprio desconforto, enfim, a prova de que, onde a democracia é frágil, o aplauso substitui o argumento.
Lyndo A. Mondlane
o mau disto é ele acresitar nas suas mentiras e falacias
nao hanhou nehumas eleiçoes e ele sabe disso mas de tabto repetir/se acaba acredita do nasua prooria automentira
Luis Baptista
Sabes que não ganhou?
Boa tarde
Lyndo A. Mondlane
Os tribunais, quando ha uma setença é a que prevalece.. tu pòdes ver alguem matar o outro mas se o juiz disser que nao viste bem e lhe declarar inocente., a tua opiniao fica irrelevante.... alias quem esta governar é outro e esta sendo recebido em todo sitio.... por tanto todos lhe consideram legitimo.. a tua opiniao ou a minha nao importa
Moises Celestino Matavele Matavele
Uma análise profunda e incisiva. Infelizmente estamos assim. Precisamos muito de aprender e mudar de atitude.
Ser - Huo
Acredito que tudo é uma questão de lentes e posicionamentos. O professor escreve uma passagem muito interessante, que transcrevo ipsis verbis:
“Quando pessoas formadas, com acesso à informação e à capacidade analítica, escolhem acreditar em discursos como o dele [VM], não é porque desconhecem os factos, mas porque desconfiam do valor dos factos. A factualidade perdeu a sua autoridade simbólica. As instituições, a imprensa, a academia — enfim, tudo o que deveria ser fonte de validação — tornou-se suspeito.”
Esse trecho deveria, em um contexto de análise honesta e descomprometida, ser escrito em letras garrafais. Mas por que uma frase dessas carrega o peso da nossa falência? Simples: já a ouvimos e lemos inúmeras vezes.
Há pouco tempo, durante o processo eleitoral, foi tão usada. Havia quem questionasse, ou afirmasse, que não era razoável, nem intelectualmente honesto, que pessoas formadas e informadas acreditassem que a FRELIMO havia vencido as eleições. Para essas pessoas, os factos estavam ali, à vista de todos; mas, em relação a esses factos, a percepção era de que tinham uma validade encomendada, uma validade depois endossada pela força das instituições e amplificada pela voz da academia.
É justamente isso que vai fazer com que o entendimento do que digo aqui vai depender das lentes de cada um. O que quero afirmar é que, enquanto as nossas análises se orientarem por “este” ou “aquele”, sempre carregarão esse perfume de parcialidade.
Dias atrás, acompanhava um seminário interessante em que uma das mesas discutia o agigantar da extrema-direita. Debatiam-se culpas e possíveis saídas. O que se sublinhou foi simples: em vez de empregar todos os meios para combater o movimento, que hoje cresce em todos os continentes, seria mais sensato identificar as razões da sua emergência e consolidação. E todos convergiam num ponto: GOVERNAÇÃO.
Os “emocionalistas” perguntavam se valeria a pena afastar a esquerda, que, segundo eles, faz pouco além de muitos discursos polidos, para abrir espaço à extrema-direita, com tudo o que já se sabe sobre ela. O debate permanece em aberto.
Concluindo Professor, diria que o seu exercício de trazer rigor ao entendimentos dos discursos e atitudes de VM é útil, mas me parece forçar posicionamentos: ou se aceita que VM é falho, ou que são falhos os que compram seus discursos (traduzi de forma matemática o seu texto). Não creio que seja por aí. Quando a esperança se corrói num ponto, a natureza humana tende a se inclinar para outro. Isso acontece até nas relações humanas mais íntimas. VM é apenas um escape para o que som hoje.
Tony Domingos Bulacho Bulacho
Uma análise profunda e digna de ser escrita Em letras garafiais pra o consumo do Venâncio Mondlane. Mas pra a sociedade Moçambicana, isto pode não ser útil, ou prioritário. Pois, apesar de VM de ter erros ilógicos, falácias, é visto pior que os discursos dos ministros e do chefe do estado Moçambicano vem fazendo dia pois dia? Roubos, corrupção? Aqui a questão é escolha entre um falacioso e outro.
Nem mesmo se eu for analisar algo urgente e actual entre quem acredita quem que FRELIMO ganhou (professor Macamo), e quem acredita que a mesma perdeu e o que eu vivencie naquelas eleições. Claramente que o que diz que a FRELIMO ganhou, estaria a proferir falácias. Pelo menos de acordo com as incidências das eleições em Moçambique. Não estou a falar da Europa.

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