sexta-feira, 14 de novembro de 2025

A racionalidade do irracional

A racionalidade do irracional
Faz tempo que não sou criticado por escrever “tomos” (ou “lençois”) nem por desvalorizar a minha formação. Masoquista intelectual que sou, fiquei com vontade de voltar a ser objecto de análises profundas da desgraça que sou como académico. Nada melhor do que me ocupar de falácias, carisma e do que considero ser a pedagogia invertida da cidadania de alguém que tem um potencial enorme para ser um grande líder político, mas que cada vez mais se perde por falta de projecto político. A intervenção de VM no World Liberty Congress, em Berlim (por acaso estive também lá neste último fim de semana, mas numa conferência menos importante), revela muito sobre o futuro da democracia e confirma o estado actual do nosso debate público.
É uma peça de retórica em estado puro, em que as falácias substituem os factos e a emoção suplanta a análise. Nele, VM reivindica ter “iniciado a Geração Z”, “mobilizado 34 milhões de pessoas”, “impactado 11 países africanos” e “ganho as eleições de 2024”, antes de acrescentar, com um toque quase bíblico, que “preferiu não tomar o poder pela força”. O texto é breve, mas com uma sucessão impressionante de erros lógicos e de distorções factuais. E, no entanto, continua a fascinar milhares de seguidores, muitos deles formados e instruídos. O que explica essa adesão? Que tipo de racionalidade se esconde na crença no irracional?
O primeiro elemento que saltou à vista foi a densidade das falácias. VM constrói a sua intervenção sobre uma sequência de falsas causalidades (“o que aconteceu em Moçambique inspirou 11 países”), hipérboles heroicas (“mobilizei 34 milhões de pessoas”), auto-referências messiânicas (“iniciei a Geração Z”) e uma falsa modéstia performativa (“podia ter tomado o poder, mas não quis”). Todas elas transformam a impotência em virtude e a derrota em redenção. Ao afirmar que ganhou as eleições, liderou uma geração e renunciou à violência, VM cria uma narrativa total em que ele é o ponto de origem, a medida e o limite de tudo. O raciocínio lógico desaparece, sendo substituído por uma dramaturgia moral. O que o ouvinte aplaude não é a coerência, mas o enredo de um homem puro num mundo corrupto.
Esta manipulação da lógica é magistral porque trabalha com o material de que vive o populismo: o ressentimento. O populista moderno não precisa de convencer. A sua relação com a verdade é estética. Ao dizer que “iniciou a Geração Z”, Mondlane reescreve a história recente com um narcisismo quase inocente. A designação “Geração Z” é uma categoria sociológica global e os movimentos juvenis africanos que inspiraram rebeldia cívica (do “On en a marre” no Senegal – “estamos fartos” – ao Geração Z do Quénia) existiam muito antes de ele entrar na cena política nacional. O mesmo vale para as suas alegações de vitória eleitoral ou de mobilização de “34 milhões de pessoas durante três meses”. Ele não ganhou as eleições, por mais vezes que o repita, e a população total de Moçambique ronda precisamente esse número, o que tornaria tal mobilização simplesmente impossível. O governo não abandonou o país, como afirma, e seria absurdo imaginar que o pudesse fazer enquanto as principais estradas estavam bloqueadas. Se 34 milhões de moçambicanos o tivessem apoiado, ele teria chegado ao poder sem resistência. A retórica da unanimidade é, aqui, o substituto da verdade, uma espécie de ficção emocional que oferece aos desiludidos a ilusão de terem participado num feito histórico.
Há ainda um ponto curioso, e talvez o mais preocupante em relação ao sentido político de VM. Quando ele se vangloria de ter “paralisado o país”, reivindica, sem perceber, a própria conduta que fundamenta o processo judicial movido pela Procuradoria-Geral da República, o mesmo que ele classifica de perseguição política. Ao dramatizar os acontecimentos como um sacrifício pessoal pela liberdade, acaba por reconhecer, inadvertidamente, a factualidade das acusações que o incomodam. Esta inversão é típica do populismo. O acto que seria na lei responsabilidade transforma-se, na narrativa, em virtude moral. O erro é transfigurado em prova de coragem, e a contradição, em sinal de autenticidade. O que é inquietante, contudo, é que público não o aplaude apesar dessas incoerências, mas por causa delas. Nelas vê a pureza de quem “diz o que pensa”, ainda que o que pensa contrarie a evidência. A falácia, neste caso, não é um desvio da verdade, é o próprio método da política. Não sei, sinceramente, que ideia de futuro político pode estar na base deste imaginário, pois cultivar a inverdade desta maneira mina qualquer possibilidade de se fazer política racional no futuro.
Só que a questão não é nova. Política como narrativa moral não combina com coerência porque o verdadeiro e o falso importam menos do que o puro e o impuro. Essa inversão é o que chamo de pedagogia invertida da cidadania. Trata-se dum processo através do qual o espaço público deixa de ensinar as pessoas a pensar e passa a ensiná-las a reagir. O populismo funciona como uma escola de pernas para o ar. Ao invés de fomentar a dúvida metódica, cultiva a convicção emocional, substitui o argumento pela indignação e simplifica tudo para o agrado dos que confundem fortes opiniões com maturidade intelectual. Daí a pessoas deixarem de procurar compreender e só quererem pertencer, a distância não é grande. A adesão torna-se sinal de virtude, e a discordância, de traição.
Esse é o ambiente em que as falácias encontram terreno fértil. O público não aplaude VM apesar das suas incoerências, mas por causa delas. Elas funcionam como marcadores de autenticidade, pois quanto menos técnico e mais improvisado o discurso, mais próximo ele parece do “povo verdadeiro”. A ausência de rigor transforma-se em sinal de pureza moral. Trata-se duma forma de anti-intelectualismo emocional, típica das sociedades onde o saber perdeu prestígio e a razão foi associada à arrogância das elites. O conhecimento passou a ser visto como um instrumento de dominação. O resultado é uma estranha inversão em que o erro torna-se virtude, a ignorância, coragem e a crítica, arrogância (que é o que a gente vê com todas as acusações de “tomos” e “lençóis”). Nessa lógica, o académico que critica é visto como inimigo do povo, e o político que raciocina de forma problemática é visto como seu intérprete natural.
O fenómeno é mais amplo do que VM. Ele apenas o encarna de forma mais nítida. Quando pessoas formadas, com acesso à informação e à capacidade analítica, escolhem acreditar em discursos como o dele, não é porque desconhecem os factos, mas porque desconfiam do valor dos factos. A factualidade perdeu a sua autoridade simbólica. As instituições, a imprensa, a academia, enfim, tudo o que devia ser fonte de validação tornou-se suspeito. E como Estado se apropriou da racionalidade legal e a transformou em instrumento de poder, o discurso irracional surge como libertação. Só que é a racionalidade do irracional. Quanto menos plausível, mais autêntico parece. A mentira é lida como resistência, e a confusão, como sinceridade.
Há ainda uma dimensão mais profunda, de natureza quase pedagógica. O populismo de VM é eficaz porque oferece um sentimento de protagonismo. Ele ensina que cada um pode ser “geração Z”, “líder moral”, “vítima nobre”, basta acreditar. A retórica falaciosa cria pertença. O problema é que essa pertença se constrói em desacordo com a própria ideia de democracia. A democracia é o regime da verificação e do argumento. O populismo é o regime da convicção e da emoção juntamente com a personificação do poder. Quando a falácia se torna instrumento de cidadania, o pensamento crítico converte-se em heresia, daí não só os ataques violentos a quem critica, mas também o aplauso ruidoso à “irreverência” ou à “iconoclastia”.
O caso VM é, pois, menos sobre ele do que sobre nós. Ele revela a facilidade com que um discurso moralmente sedutor pode colonizar um espaço público intelectualmente enfraquecido. Mostra que o problema não é apenas político, mas epistemológico dum país que não distingue entre raciocínio e ressentimento. A sua popularidade é o sintoma visível duma doença mais antiga, a da substituição da razão pública pela moral privada. Esse é o terreno ideal da pedagogia invertida que faz do erro convicção. O tal World Liberty Congress pretendia celebrar a liberdade, suponho. VM usou-o, nesta intervenção, para celebrar a si mesmo. A sua intervenção é uma alegoria perfeita dum tempo em que o discurso triunfa sobre o conteúdo. A racionalidade do irracional é, afinal, o nome elegante do nosso próprio desconforto, enfim, a prova de que, onde a democracia é frágil, o aplauso substitui o argumento.
Lyndo A. Mondlane
o mau disto é ele acreditar nas suas mentiras e falacias
nao hanhou nehumas eleiçoes e ele sabe disso mas de tabto repetir/se acaba acredita do nasua prooria automentira
Luis Baptista
Sabes que não ganhou?
Boa tarde
Lyndo A. Mondlane
Os tribunais, quando ha uma setença é a que prevalece.. tu pòdes ver alguem matar o outro mas se o juiz disser que nao viste bem e lhe declarar inocente., a tua opiniao fica irrelevante.... alias quem esta governar é outro e esta sendo recebido em todo sitio.... por tanto todos lhe consideram legitimo.. a tua opiniao ou a minha nao importa
Moises Celestino Matavele Matavele
Uma análise profunda e incisiva. Infelizmente estamos assim. Precisamos muito de aprender e mudar de atitude.
Ser - Huo
Acredito que tudo é uma questão de lentes e posicionamentos. O professor escreve uma passagem muito interessante, que transcrevo ipsis verbis:
“Quando pessoas formadas, com acesso à informação e à capacidade analítica, escolhem acreditar em discursos como o dele [VM], não é porque desconhecem os factos, mas porque desconfiam do valor dos factos. A factualidade perdeu a sua autoridade simbólica. As instituições, a imprensa, a academia — enfim, tudo o que deveria ser fonte de validação — tornou-se suspeito.”
Esse trecho deveria, em um contexto de análise honesta e descomprometida, ser escrito em letras garrafais. Mas por que uma frase dessas carrega o peso da nossa falência? Simples: já a ouvimos e lemos inúmeras vezes.
Há pouco tempo, durante o processo eleitoral, foi tão usada. Havia quem questionasse, ou afirmasse, que não era razoável, nem intelectualmente honesto, que pessoas formadas e informadas acreditassem que a FRELIMO havia vencido as eleições. Para essas pessoas, os factos estavam ali, à vista de todos; mas, em relação a esses factos, a percepção era de que tinham uma validade encomendada, uma validade depois endossada pela força das instituições e amplificada pela voz da academia.
É justamente isso que vai fazer com que o entendimento do que digo aqui vai depender das lentes de cada um. O que quero afirmar é que, enquanto as nossas análises se orientarem por “este” ou “aquele”, sempre carregarão esse perfume de parcialidade.
Dias atrás, acompanhava um seminário interessante em que uma das mesas discutia o agigantar da extrema-direita. Debatiam-se culpas e possíveis saídas. O que se sublinhou foi simples: em vez de empregar todos os meios para combater o movimento, que hoje cresce em todos os continentes, seria mais sensato identificar as razões da sua emergência e consolidação. E todos convergiam num ponto: GOVERNAÇÃO.
Os “emocionalistas” perguntavam se valeria a pena afastar a esquerda, que, segundo eles, faz pouco além de muitos discursos polidos, para abrir espaço à extrema-direita, com tudo o que já se sabe sobre ela. O debate permanece em aberto.
Concluindo Professor, diria que o seu exercício de trazer rigor ao entendimentos dos discursos e atitudes de VM é útil, mas me parece forçar posicionamentos: ou se aceita que VM é falho, ou que são falhos os que compram seus discursos (traduzi de forma matemática o seu texto). Não creio que seja por aí. Quando a esperança se corrói num ponto, a natureza humana tende a se inclinar para outro. Isso acontece até nas relações humanas mais íntimas. VM é apenas um escape para o que som hoje.
Tony Domingos Bulacho Bulacho
Uma análise profunda e digna de ser escrita Em letras garafiais pra o consumo do Venâncio Mondlane. Mas pra a sociedade Moçambicana, isto pode não ser útil, ou prioritário. Pois, apesar de VM de ter erros ilógicos, falácias, é visto pior que os discursos dos ministros e do chefe do estado Moçambicano vem fazendo dia pois dia? Roubos, corrupção? Aqui a questão é escolha entre um falacioso e outro.
Nem mesmo se eu for analisar algo urgente e actual entre quem acredita quem que FRELIMO ganhou (professor Macamo), e quem acredita que a mesma perdeu e o que eu vivencie naquelas eleições. Claramente que o que diz que a FRELIMO ganhou, estaria a proferir falácias. Pelo menos de acordo com as incidências das eleições em Moçambique. Não estou a falar da Europa.
David Banze
Já é. É só ver na FPF
Armistício Mulande
A questão do populismo ultrapassa em muito VM. Ele é apenas a ponta deste grande iceberg que tem o potencial de "destruir o mundo" como o conhecemos. Grandes países já estão a passar por isto tudo que o Professor Elisio Macamo descreve aqui. Os EUA são o epítome desse fenomeno. Donald Trump, talvez o mentiroso e anti-intelectual mais espalhafatoso do mundo, ganhou eleições duas vezes num dos países mais educados e "democráticos" do mundo. Por que será? A Europa está a resvalar para esse fenómeno: a Hungria tem há quase 15 anos um governo populista, que começa a "infectar" seus vizinhos República Checa, Eslováquia, Áustria e não tardará que a Polónia também siga pelo mesmo caminho. Na Alemnaha, o AfD é, hoje, de acordo com as sondagens, o partido que mais cresce, principalmente no leste (mas há grandes franjas da alemanha ocidental que começam a se rever no populismo). França, Portugal e mais alguns países europeus engraçam-se cada vez mais pelo populismo.
A questão de fundo é: por que será? Como é que sociedades altamente alfabetizadas e com um hsitórico democrático secular parecem se encantar pelo populismo? Claramente que cada país tem a sua história. No nosso caso, muita gente, mesmo os mais estudados, concluiu que nada parece fazer sentido em tudo o que temos feito nos últimos anos. O partido dominante, o governo e (quase) todas as instituições da República, caíram num descrétito tal que torna tudo o que acontece um grande circo. E isso não é culpa do VM. A tragédia, no entanto, é ver como VM parece estar a seguir os mesmos passos de mediocridade que todos nós almejamos ultrapassar. Ele que é, para muitos, a esperança de alguma mudança.
Para mim o mais triste não são essas mentiras que o VM anda a proferir por aí, mas sim a manifesta falta de foco do partido que dirige e dele próprio em abordar os reais problemas do país, a falta de um projecto político claro. É triste ver que decidiu, sem reservas, enveredar pelo populismo. E ainda bem que Moçambique não é um país normal. Num país normal, VM seria eleito PR e todos nós iríamos experiementar o "pão que o diabo amassou".
Tony Domingos Bulacho Bulacho
A crítica é necessária mas preocupa me bastante, o facto de exigir se tanto de um partido que tem 6 meses de existência. O partido perdeu foco? Onde? como? Que matéria, qual tempo que vós deu premissas e conclusão de análises?
E os outros antigos estão dentro do foco?
Armistício Mulande
Tony Domingos Bulacho Bulacho não é desculpa ter menos de 6 meses de existência. Um partido político não aparece no vácuo. Os seus mentores tiveram bastante tempo para reflectir sobre que ideologia, políticas, estratégias, etc. que o partido irá seguir. E VM não é um actor novo no cenário político nacional. É um "macaco velho" nestas coisas. A minha perspectiva é que VM e seus correligionários estudaram com minúcia todos os nossos problemas antes de criar o partido. O que me parece é que tomaram, depois, a decisão consciente de que o "populismo barato" é a via mais simples de ascender ao poder. Não os culpo, mas não deixa de ser uma tragédia para o país. Como disse, o país espera(va) muito deste novo partido.
Tony Domingos Bulacho Bulacho
Somos Moçambicanos, resultados do mesmo processo de construção. Exigir o VM foco é uma crítica necessária principalmente pra sua imagem pode ser uma assessoria gratuita. Mas é demais. Pode se mentira afirmar que estes tiveram tempo pra estudar minuciosamente os facto antes de se criar este partido. Qual tempo atendendo e considerando que desde 2023 a até hoje ele teve mais de 10 batalhas em curto espaço de tempo. E a de criar partido foi a última
Gervasioa Absolone Chambo
Ainda que as falácias de VM7 sejam o que são, o mais importante para mim é ver como o país está sendo governado passados 12 meses depois das eleições. Não me vou embrulhar em escândalos que todos ouvimos. Vou apenas dizer que os funcionários públicos não têm seus ordenados em dia e ninguém avisa e ou explica as razões dos atrasos. Isso sim importa. As falácias de VM não matam a ninguém e quando proferidas voam com o vento e desfazem-se no ar.
Tony Domingos Bulacho Bulacho
Isto é real, actual e facto. Enquanto as análises científica do professor Macamo. Apesar de ser boas de ler. Estão muito longe da realidade Moçambicana.

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