segunda-feira, 3 de novembro de 2025

A questão do regime

 Facebook


Este é o título dum livro fascinante de Amel Ahmed. Ela propõe a ideia de que toda a democracia nasce de uma luta sobre as regras do jogo. Antes de discutirem políticas, as sociedades tiveram de definir como e por quem se decidem as regras que todos aceitam como legítimas. Essa disputa, entre o parlamento e o executivo e entre os que mandam e os que obedecem, foi o verdadeiro coração da democratização europeia. O que Ahmed mostra é que a sequência dessas reformas institucionais foi decisiva. Nos países onde o poder legislativo se fortaleceu antes da expansão do sufrágio, a democracia pôde assentar sobre instituições de deliberação e controlo. Onde o voto universal chegou antes de haver um parlamento sólido, o legislativo acabou por reforçar o poder executivo, e não por limitá-lo como vimos no nosso país. O segredo, portanto, esteve na sequência. Primeiro, construir regras e depois ampliar a participação.
No nosso continente, essa sequência nunca ocorreu. As independências trouxeram o voto e a soberania formal antes de haver uma verdadeira separação de poderes. O executivo nasceu primeiro, herdeiro da estrutura colonial e do movimento de libertação, e o legislativo veio depois, como apêndice do Estado-partido. A sociedade civil chegou por último, fragmentada e dependente, e nunca preocupada em alianças com o legislativo. A democracia africana começou, assim, com eleições, mas sem um regime no sentido de Ahmed, ou seja, com representação simbólica, mas sem instituições capazes de tornar o poder explicável e limitado.
Portanto, no nosso continente, a democratização universalizou a representação antes de institucionalizar a partilha do poder. O argumento de Amel Ahmed sobre a sequência explica parte desse fracasso, mas a questão mais profunda é sociológica, pois os órgãos legislativos carecem dos eleitores sociais que outrora os tornaram indispensáveis na Europa e nos Estados Unidos. A questão do regime em África não é, portanto, simplesmente “Quem governa?”, mas “Quem precisa de governar por meio de regras?”. Até que os actores políticos tenham incentivos materiais e morais para legislar em vez de comandar, o órgão legislativo continuará a ser o ramo mais fraco do governo.
Acho que a onda de violência juvenil que atravessa o continente, dos protestos urbanos pós-eleitorais na Tanzânia às revoltas camaroneses, das crises cíclicas em Madagáscar às frustrações acumuladas em Moçambique, encontra parte da sua explicação aqui. Em todos esses casos, a juventude aparece como uma maioria sem voz. Ela participa do sufrágio, mas não das regras. A sua exclusão da representação parlamentar é estrutural, e a violência surge como o grito desesperado de quem perdeu o direito à razão, isto é, o direito de ser ouvido como sujeito político. Mas esta violência, por mais compreensível que seja como sintoma, não resolve o problema. Ela não altera a sequência institucional que falta. Derruba governos, mas não vai necessariamente criar instituições. Faz ouvir a dor sem estabelecer o lugar da palavra. No limite, repete o padrão que a gerou, a saber, substitui um executivo por outro igualmente incontestado.
O erro mais comum da oposição em África – e o nosso país não é excepção – é responder à moralização do poder com uma moralização inversa que consiste em denunciar a corrupção, exigir integridade e proclamar virtudes pessoais, tudo isso terreno fértil para o populismo. Agora, tudo isso é necessário, mas não é suficiente. A corrupção, afinal, é apenas o sintoma visível de um sistema em que o poder não tem de se explicar como tenho vindo a dizer. O essencial não é trocar pessoas, mas reformar as regras do jogo que permitem a qualquer pessoa governar sem controlo. Uma oposição madura devia, portanto, investir no fortalecimento do legislativo e na criação de mecanismos de fiscalização e deliberação reais. O parlamento é o espaço onde o poder deve ser obrigado a justificar-se, para que a política deixe de ser comando e passe a ser diálogo. Por isso, reforçar o Legislativo não seria uma questão técnica, mas sim algo que contribuiria para a reconstrucção institucional da república. É nele que o cidadão reencontraria a sua voz e que o governante seria obrigado a argumentar no lugar de mandar.
Sem esta aposta institucional, a oposição corre o risco de se limitar a repetir o ciclo que critica, nomeadamente, contestar o poder sem alterar a sua lógica. O desafio democrático consiste em mudar a maneira como se governa, não quem governa, pois é isso que transforma a autoridade em explicação, e o protesto em representação. Charles Tilly lembrava que a democracia europeia foi um subproduto de lutas que, na sua origem, nada tinham de democráticas. Guerras fiscais, revoltas camponesas e conflitos coloniais. Foi no esforço de controlar a violência que as elites acabaram por institucionalizar regras de representação. A democracia, dizia Tilly, foi um resultado contingente da procura de sobrevivência política, não de um ideal moral previamente dado.
Essa é a dimensão que falta à história africana recente. Os conflitos existem, mas raramente se transformam em arranjos institucionais duradouros. A violência não se converte em regra, apenas em medo. E sem essa passagem do conflito para a instituição, isto é, do confronto para a deliberação, o “jogo” político nunca se estabiliza. O risco, portanto, é duplo. Por um lado, persistir na ingenuidade de esperar que eleições periódicas bastem para criar cidadania. Por outro lado, cair na ilusão de que a violência possa refazer, pela força, o que não foi construído pela negociação. Em ambos os casos, a questão do regime permanece em aberto: quem define as regras e com que legitimidade?
A licção de Ahmed e Tilly é que a democracia não nasce pronta. É um produto histórico de interesses organizados, instituições enraizadas e lutas canalizadas por dentro das regras. A África vive ainda o seu longo processo de formação desse regime e o desafio não é esperar, mas transformar o conflito em norma, a raiva em regra e o protesto em representação. Uma oposição verdadeiramente republicana será aquela que compreender que a tarefa da geração actual não é punir o passado, mas instituir o futuro fazendo do parlamento o centro moral da política e da cidadania o antídoto da violência.
Só quando as regras se tornarem mais fortes do que os governantes é que a democracia vai ser real.
Isabel Maria Casimiro
Gostei de ler Elísio! As revoltas acontecem, mudam governos por vezes mas nada de novo acontece.
E até a oposicão pode reproduzir as antigas regras do jogo em vez de as alterar, ouvindo as pessoas qur elegem
Pergunto-me a razão para tal continuar a acontecer.
A forma como a educação vomita informação e reproduz regras, ao invés de questionar, argumentar, proporcionar a produção de conhecimentos, pode ser uma das razões
A vontade se governos se manterem no poder - veja-se o que acontece no Zimbabwe com a pretensão de um 3o mandato para o PR - pode ser outra
Mantém-se no poder e a situação normalmente piora!
Novas regras não convêm a quem quer continuar a ficar com o controlo dos recursos e dinheiro ...
E não é por falta de as pessoas se pronunciarem - individual ou colectivamente.
Veja-se novamente o que aconteceu em Harare. Incendiatam a sala de reuniões do SAPES Trust onde pessoas de diversas organizações se íam pronunciar contra o 3o mandato
Que fazer então?
Joaquim Huo
Se a juventude é a maioria sem voz, ela precisa desativar o modo de voo.
Alcídes André de Amaral
Muito bom texto e muito esclarecedor, Elisio Macamo . Uma pergunta, e lhe apelando para uma reflexão de redirecionamento histórico, professor acha que as condições atuais através das quais nós africanos lidamos com a transformação social, pode levar ao estabelecimento de uma democracia mais consolidada no futuro? Ou tem que haver uma ruptura deliberada e instauração de novas regras ou mesmo de regras? Pergunto porque penso que a Europa não curvou para o processo democrático porque quiseram que assim fosse, mas porque a história ou, melhor, uma dada condição histórica empurrou-lhes para isso. Sabemos que em África um processo histórico foi interrompido, no caso, pelo contato colonial. Se assim for, como intelectualmente podemos nos redirecionar para uma forma de relações políticas (democráticas) que, hoje, nos encontramos com sérias dificuldades dificuldades de estabelecermos?
Elisio Macamo
Alcídes André de Amaral, boa questão. acho que muito tem a ver com o facto de que a nossa história não se faz em condições completamente autónomas. o mundo tem uma estrutura e isso condiciona o que podemos fazer. nesse sentido, o desafio para mim não seria uma ruptura, mas uma compreensão melhor do que viabiliza sistemas políticos que queiram respeitar direitos fundamentais. a nossa pergunta não pode ser: como podemos nos democratizar, mas sim, que arquitectura institucional precisamos de ter para garantir maior controlo do poder executivo, protecção de valores e direitos fundamentais. é por isso que tenho dito que a governação não é resolver os problemas do povo, mas sim melhorar as condições que fazem com que seja possível resolver esses problemas. essas condições são políticas.
Alcídes André de Amaral
Elisio Macamo, interessante. "Before we begin", não é ? Como você refletiu num outro contexto. Mas me preocupa também a ideia de que não fazemos a nossa história em condições completamente autônomas: penso que é isso mesmo que faz com muitos morram de amores por um Traoré. Parte-se de que tudo vale para garantir que façamos a nossa história por nós mesmos.
Tony Domingos Bulacho Bulacho
Vale a pena mil Traore, Mil Kadafi no lugar de todos suposto democratas africanos
Alcídes André de Amaral
Tony Domingos Bulacho Bulacho mas o problema é exatamente esse, o de "valer a pena". As vezes basta só querer pensar melhor antes de "valer a pena".
Guilherme Mussane
Como é possível fazer e lograr isso numa situação em que reina à aversão ao conflito, à crítica, à alternância do poder e à transparência?
Tony Domingos Bulacho Bulacho
Pensar o que ? Sabe as democracias africanas são tornam a África uma casa sem porta. Todos europeus entram e fazem o que lhes apetece. Pelo contrário, os Traore, Kadafi foram erradamente considerados de ditadores. Mas pra o seu próprio povo são heróis pena que a opinião do ocidente soa mais alto. Aliás, perguntaria eu, se de facto precisamos pensar, entre uma ditadura que luta pra condicionar serviços básicos pra o seu povo. E numa democracia que os seus líderes em toda sua história são tido como os maiores desviadores de fundos públicos, configuram se como ladrões de votos. O que é que trás mais liberdade ao povo? Acho que os conceitos ditadura, democracia deveriam ser reconsiderados, e definidos de acordo com os resultados.
Tony Domingos Bulacho Bulacho
“Vimos alguns países atirando em manifestantes inocentes, matando jovens, e ainda assim se autodenominam democracias. Se isso é democracia, nós não a queremos.”
— Ibrahim Traoré, Presidente do Burkina Faso
Alcídes André de Amaral
Tony Domingos Bulacho Bulacho só que Democracia nunca é, está a ser frequentemente. É preciso ter cuidado com esses panfletos.
Miro Guarda
Mais uma aula grátis.
Mande a factura Professor.
🙏🏿
Marcelo Tavares
Khumalo Macaussane está seria de debates está animar e só contribuem para o nosso fortalecimento epistemológico como jovens decidires do futuro.
Repito: como jovens decisores do futuro.
É preciso ler vírgula por vírgula.
Tenho saudades do futuro.
João Delgado
As democracias, como as conhecemos hoje na Europa, demoraram séculos a serem percebidas como o melhor sistema, com as suas intpervenções.
Seria possível no continente africano isso acontecer em meio século pós colonial?
Joaquim Sérgio Inácio Manhique
João Delgado Sim, aprendendo da história! Ser civilizado é isso: aprender dos (erros) outros, para encurtar/contornar o indesejável e maximizar/potenciar o que é bom/correcto.
Temos Botswana 🇧🇼 e Cabo Verde, como amostras de que é possivel valorizar as eleições.
Elisio Macamo
João Delgado, meio século é pouco tempo. contudo, como escreve o Joaquimm Sérgio Inácio Manhique, é importante aprender da história. e mesmo assim, pode demorar...
Cal Barroso
Gosto do facto de termos em África democracias dignas desse nome como são os casos de Cabo Verde e Botswana. Dois países colonizados por potências distintas (Portugal e Inglaterra) em que o executivo conseguiu “criar” e hoje coabita com o legislativo de maneira “civilizada”. Do jeito que deve ser… e com tendências a melhoras a cada dia. Podemos ir buscar um exemplo francófono para fechar o puzzle: As Maurícias (colónia francesa).
Se temos 3 exemplos de países Africanos caminhando para o “paraíso” por que é que negamos isso aos outros povos do mesmo continente? A Europa pode ter levado séculos a consolidar as democracias que lá existem, mas isso não quer dizer que nós não possamos ter o melhor em pouco tempo. Os exemplos que aqui apresentei são a prova de que é realmente possível. Mas nós preferimos ir de propósito na contramão. Procuramos SAMIAR nossos países com eleições de fachada parabenizadas pela União Africana.
Falta-nos vontade…
Elisio Macamo
Cal Barroso, não é (só) falta de vontade. por vezes as condições não estão reunidas. não foi por vontade que os europeus se democratizaram. há, para mim, três casos interessantes de democracias mais ou menos estáveis em áfrica, mas o melhor exemplo, é o do senegal. lá, existem as chamadas confrarias muçulmanas que têm sido o garante da estabilidade. elas dão força ao parlamento para defender os seus interesses económicos e, por via disso, controlam o executivo. várias eleições foram decididas porque as confrarias deram apoio a este ou aquele. o caso do botswana não é perfeito, mas ilustra um bocado a tese de ahmad. o país era um procterado (pobre). praticamente, a riqueza (os diamantes) foi descoberta depois da "independencia". as chefaturas tradicionais ocuparam o lugar no parlamento de forma directa ou por mandatários. isso deu ao parlamento muita força em relação ao executivo (ao presidente). creio ter sido isso que garantiu a estabilidade. cabo verde ainda não consegui entender bem, mas o meu palpite é que tem a ver com a influência da igreja católica e da igreja adventista do sétimo dia que me parecem exercer alguma influência sobre os actores políticos de tal forma que o parlamento reflecte interesses sociais distintos na sociedade. pode ser que as ilhas também se constituam como interesses sociais fortes e capazes de controlar o executivo. finalmente, as maurícias, aqui também apenas um palpite, pode ter muito a ver com a existência de clivagens essencialmente económicas. existem grupos étnicos com interesses comerciais que querem ser protegidos do poder arbitrário do executivo. nós precisamos de estudar estas coisas.
Cal Barroso
Elisio Macamo é que tal o Botswana aqui ao lado que creio ter muitas similaridades connosco, Prof?
Elisio Macamo
Cal Barroso, tem poucas. para já, é muito mais homogêneo do ponto de vista étnico. praticamente, só tem minorias san que são efectivamente discriminadas e até oprimidas. sei isso muito bem porque trabalho com essas comunidades. o botswana tem uma longa tradição de poder centralizado, mas controlado pelos vários chefes tradicionais. nós não temos isso. o botswana é um caso à parte, infelizmente, mas podemos aprender, sim.
Rildo Rafael
Elisio Macamo : Parabéns pelo texto! 'O texto faz um diagnóstico da situação dos países africanos e com excepção de um e outro país! Como criar "novas" regras de jogo num contexto em que os detenteores do poder optam em manter as regras antigas com recurso a repressão, intimidação, violência e mortes para se perpetuarem no poder, alegando ter "legitimidade histórica " pelo facto de ter alcançado a independência?
Como fundar os alicerces institucionais com quem nunca se vê fora do poder?
Elisio Macamo
Rildo Rafael, sim, a questão de partida é essa. não é o ponto de chegada. pelo que li no livro que citei no texto, esse também foi o ponto de partida dos casos europeus. quem tem poder, não importa se africano ou europeu, quer sempre manter esse poder, mesmo com recurso à força. estamos a ver isso a acontecer nos eua de trump.

Sem comentários: