Sobre o estranho ofício de pensar em público
Há duas semanas, escrevi uma pequena série de artigos (na verdade, “tomos” e “lençóis” se fossem sobre a oposição) a analisar as primeiras intervenções dos novos ministros moçambicanos. Expliquei porque certas políticas não vão funcionar, porque certos diagnósticos estão errados e porque a retórica de “fazer diferente para ter resultados diferentes” pode não dar certo. Pouca gente comentou. Parece que a função do académico é “criticar” o governo e apontar as suas falhas. É um clássico, quase uma tradição no debate público. Já escrevi e disse em entrevistas à televisão e a jornais que o principal obstáculo ao desenvolvimento do país é a Frelimo, sobretudo porque ela me parece incapaz de mudar. Debalde.
Bastou um único artigo (mais um, dirão!) em que expressei inquietação perante a relação dum político da oposição com a verdade (e a tentar mostrar porque isso é mau para ele próprio e para o seu projecto político) para que três tipos de reacções surgissem. Se eu acreditasse na astrologia, diria que foi Marte em quadratura com a racionalidade. Mas vamos por partes.
A primeira reacção veio da ala dos que defendem o político em questão. Para eles, o meu texto só pode ter sido “um serviço ao regime”. Nada mais lógico, né! Quando critico ministros, sou um académico responsável. Quando torço o nariz perante as falácias da oposição, sou um mercenário. É como dizer que, se criticar Vladimir Putin, devo criticar também o Dalai Lama (ou Nelson Mandela) para equilibrar a energia espiritual do planeta. A lógica parece ser que pensar é permitido, desde que confirme as convicções do ouvinte.
A segunda reacção exigiu “equilíbrio”. Ignorou completamente que, há quinze dias, dediquei cinco dias inteiros a desmontar o discurso de ministros. Segundo esta escola de pensamento, a crítica política é um ritual de distribuição equitativa de culpas. Se critico A, devo criticar B; se critico B, devo criticar C… até regressarmos ao início do universo. É uma espécie de “teoria moçambicana da física moral”. Para cada crítica, há outra igual e oposta, mesmo quando o assunto é outro. Por este raciocínio, não se pode criticar Bolsonaro sem acrescentar uma nota de rodapé sobre os erros de Kant, nem apontar falhas em Churchill sem mencionar o vegetarianismo de Hitler. Equilíbrio acima de tudo, mesmo que mate o argumento.
A terceira reacção foi a de genuína perplexidade. “Como é possível”, perguntam, “que alguém com quem concordei antes escreva agora algo com que não concordo?” Confesso que invejo esta estabilidade emocional e intelectual. Eu próprio raramente concordo comigo mesmo por dois dias seguidos. O que este espanto revela é a ideia de que o intelectual existe para confirmar as convicções do leitor, e não para pensar. Quando concordam comigo, sou sábio. Quando discordam, tornei-me suspeito. É uma espécie de contracto tácito. Eu penso, desde que pense como eles.
Tudo isto pode estar a mostrar que é muito difícil discutir num espaço onde o debate não é um exercício de raciocínio, mas de pertença. A crítica não é lida como uma tentativa de clarificar, incluindo a de esclarecer o meu próprio pensamento, mas como alinhamento ou mesmo traição. E sem distinção entre análise e lealdade, o pensamento não pode circular. Faz tudo, menos isso. Ajoelha-se, talvez. Ou pula!
Eu tento compreender. Pensar em público é uma profissão de risco. Exige dizer, de vez em quando, a frase mais impopular da língua portuguesa a alguém: “É possível que estejas enganado”. Pior: exige admitir que nós próprios podemo-nos enganar, o que, aliás, acontece regularmente; comigo, pelo menos, acontece muito, ainda que não o diga ruidosamente. Só não muda de opinião, e é constante, quem não pensa. Mas a diferença entre crítica e ressentimento está na consciência de que não sabemos tudo e que o debate existe para ampliar, não para estreitar, o nosso entendimento.
Por isso escrevo isto sem heroísmo, ainda que os aplausos, quando aparecem, esfreguem bem o meu ego. Mas não me levo tão a sério quanto às vezes parece. Levo muito a sério, sim, a necessidade de cultivar, onde há certezas morais em demasia, alguma modéstia intelectual (que nem sempre é fácil, reconheço). Por isso, distingo a crítica do aplauso tribal. A primeira ajuda-nos a pensar. O aplauso tribal serve apenas para confirmar pertenças. Saber que não sabemos é o primeiro passo para aprender. E aprender é condição mínima para discutir sem destruir. Política, como concurso de certezas inflamadas, convoca sempre a dúvida e isso, para mim, é revoluccionário. Eu deixaria de escrever se toda a gente sempre concordasse comigo (bom, não sei...). Felizmente, nunca foi assim. E ainda bem, escusado será dizer.
Agora, se isto desagradar aos defensores, decepcionar os equilibrados e confundir os perplexos, paciência. Há coisas piores na vida do que pensar. Uma delas é desistir de o tentar.
E, já agora, deixo uma última lamentação. Muitas vezes descubro que, quando me criticam, não estão a criticar o que escrevi, mas aquilo que pensam que escrevi. Alguém reage indignado a um texto que, na verdade, nunca saiu da minha cabeça para o papel. Torna-se, então, quase meu dever explicar que não escrevi aquilo, que aquilo é outra obra, escrita pelo leitor, talvez no calor da convicção.
Não tenho qualquer objecção a ser criticado, só que prefiro ser criticado por aquilo que realmente disse. Se já é difícil discutir quando há debate, torna-se quase impossível quando há, além disso, dois textos diferentes na mesa, o meu e o que o outro inventou ao lê-lo. Mas, pronto, esse é o preço de pensar em público, de descobrir que, entre o que escrevemos e o que os outros entendem, há sempre um pequeno abismo. E que, mesmo assim, continuamos a escrever.
Lyndo A. Mondlane
prof excelente artigo aquele
Alvaro Simao Cossa
Boa reflexão Elisio Macamo bem dito, nem eu sempre concordo comigo dois dias seguidos.
Isso é sinal de que psicológicamente está bem de saúde.
Sim, é perfeitamente possível não concordar comigo próprio e acontece quando um "eu" (quem pensa e decide) não concorda com o outro "eu" (quem sente ou age).
Isso é conhecido como conflito interno e é uma experiência comum para muitas pessoas. As razões podem variar desde um estado de auto-julgamento severo, em que uma parte de si critica a outra, até a existência de desejos e vontades contraditórias, como por exemplo, querer descansar enquanto outra parte de si precisa terminar de ler um livro.
Dentro de cada indivíduo existem diferentes partes do "eu" que podem ter vontades ou opiniões conflitantes. Um exemplo é o "eu" que quer comer de forma saudável e o "eu" que prefere relaxar, comer e beber à vontade sem tantas restrições.
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