sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Do heroísmo virtuoso

 Elisio Macamo


Sou duplamente suspeito para escrever este texto por ser colaborador da MBC TV e por ser visto como alguém que inveja (ou odeia) Venâncio Mondlane. A TV está de parabéns, contudo, por o entrevistar, algo que acaba mostrando muito do que está errado com a política em Moçambique, pois uma entrevista destas já devia ter sido feita pela TVM. A MBC TV proporcionou ao engenheiro Venâncio Mondlane um espaço generoso para expor o que pensa. Numa cultura política dominada por slogans e suspeitas, ouvir longamente um político a falar de si, da sua visão e das suas convicções é, por si só, um exercício cívico raro. Para quem estuda a política como eu o faço, foi uma oportunidade preciosa de compreender não apenas o homem, mas a natureza do seu projecto. A compreensão que julgo ter ganho motiva as reservas que aqui partilho sobre a qualidade da nossa política.
A entrevista revela uma figura dominada pela certeza moral do justo e pela convicção de estar em missão. VM fala pouco de políticas públicas, instituições ou programas. Ele fala de fé, integridade, sofrimento, e da própria história como via de legitimação. Apresenta-se como “ativista social emprestado à política”, “justiceiro desde criança”, “servo de Deus”, portanto, recorre a imagens que constroem uma figura messiânica, não um líder político. Chamo a isto de heroísmo virtuoso. VM constrói-se menos como líder político e mais como figura messiânica, no sentido clássico de alguém que se apresenta como instrumento da providência e não como produto de instituições. A sua autoridade não vem de um programa, mas de uma vocação. Ele fala como quem foi “chamado” e não como quem foi eleito, e a sua legitimidade assenta na pureza da intenção e não na eficácia da acção.
O líder político define-se por uma relação horizontal com os outros, isto é pelo debate, e convence, negocia e compromete-se. O messias, pelo contrário, fala de cima, em nome de um desígnio que o transcende. O primeiro precisa de aliados e instituições; o segundo precisa de fiéis. A consequência é que o espaço público, que deveria ser lugar de deliberação, transforma-se num púlpito. A narrativa messiânica é reconhecível na forma como ele se coloca sempre como sofredor redentor, aquele que foi traído, injustiçado, ameaçado, mas que persiste “pela graça de Deus” em nome do povo. A sua dor é apresentada como mediação da dor colectiva; o seu sacrifício, como promessa de regeneração nacional. É a lógica do salvador que sofre para que o povo desperte.
Essa retórica mobiliza emoções legítimas num país exausto, mas tem um custo político enorme, pois substitui a acção colectiva pela esperança individualizada. O cidadão não é chamado a deliberar, mas a acreditar. A fé substitui o programa, o testemunho substitui o plano, e o poder torna-se uma extensão da missão pessoal do líder. A política, assim, deixa de ser um exercício de governo e passa a ser um drama moral de redenção. É compreensível que, num país levado ao desespero por décadas de desilusão, esta retórica encontre eco. O problema não é o heroísmo em si, obviamente, mas o que Max Weber chamaria de confusão entre carisma e responsabilidade. O carisma funda, inspira, desperta; mas a política governa, decide, regula. E enquanto o herói procura coerência consigo mesmo, o político devia procurar coerência com o mundo, isto é, com as suas contradições, os seus limites e a pluralidade dos seus cidadãos.
Durante a entrevista, ele faz referência a quatro princípios que ele espera que o partido Anamola adopte após deliberação. São eles a crença num único Deus, a família como unidade base do Estado, liberalismo democrático e filosofia Ubuntu. Configuram a inovação ideológica que ele diz querer operar na política, mas, na prática, revelam mais ecletismo do que coerência. A crença num único Deus introduz um princípio teológico num Estado que a Constituição define como laico. Em vez de ampliar a esfera moral, arrisca restringi-la a um credo. A família como base do Estado parece uma afirmação inofensiva, mas pode servir de pretexto para excluir quem vive outras formas de pertença social, portanto, mães solteiras, jovens sem emprego, famílias recompostas, etc. O liberalismo democrático, por sua vez, é afirmado num discurso que simultaneamente desconfia das instituições e dos partidos, o que o esvazia de substância, a não ser que ele se refira ao tipo de liberalismo que hoje é reclamado pelas forças da extrema-direita no mundo. E a filosofia Ubuntu, que deveria ancorar uma ética de interdependência, surge diluída num sentimentalismo vago, reduzido à empatia pessoal do líder.
O discurso do engenheiro revela, contudo, a ausência de uma teoria do Estado, entendida não como exercício académico, mas como a espinha dorsal de qualquer projecto político. Ele fala de fé, integridade e amor ao povo, mas não define o que é o Estado, qual o seu papel, nem como deve equilibrar autoridade e liberdade, iniciativa e regulação. No lugar duma arquitectura institucional, encontro apenas uma ética pessoal, isto é a convicção de que a virtude individual pode, por si só, regenerar o país. Essa crença, embora moralmente louvável, confunde a transformação das consciências com a reforma das estruturas. O Estado, porém, não pode ser uma extensão do carácter dos seus dirigentes, ainda que o nosso discurso moral sempre insista nisso. É um conjunto de regras que precisamente existem para limitar o poder dos virtuosos e dos medíocres por igual.
Essa lacuna conceitual torna-se evidente no ecletismo dos quatro princípios que o líder enuncia, Deus, família, liberalismo democrático e filosofia ubuntu. Cada um provém de uma tradição diferente (religiosa, moral, económica e comunitária), mas nenhum é articulado num modelo coerente de governação. Não sabemos se se trata de um Estado confessional ou laico, liberal ou comunitário, centralizado ou participativo. Tudo se mantém na esfera do sentimento. O problema é que, sem um diagnóstico político preciso, portanto, sem nomear a ferida histórica a que se quer responder, o projecto não passa dum gesto de purificação moral. O resultado é inspirador, mas não me parece operativo. Assemelha-se a um catecismo de virtudes sem teoria de poder.
Para mim, todavia, o mais perturbador é o contraste entre o esgotamento do partido no poder e a imaturidade das alternativas. É legítimo reconhecer que a Frelimo perdeu há muito a capacidade de se renovar moral e politicamente. A multiplicação de “marchas de saudação” e a insistência numa mensagem política que coloca o Presidente no centro de tudo me parecem indícios claros da incapacidade da Frelimo de se renovar. O país precisa desesperadamente de novos horizontes, mas é precisamente por isso que se esperava mais da oposição emergente, portanto, mais pensamento, mais substância e mais política.
O mais preocupante, contudo, é que esta fragilidade conceitual não é apenas individual. Ela é o espelho da pobreza intelectual da nossa política. A Frelimo perdeu há muito a capacidade de pensar a si mesmo, e a oposição ainda não aprendeu a pensar o país. Dum lado, a inércia institucional, do outro, o moralismo carismático. Ambos substituem o pensamento pela convicção e a estratégia pela emoção. Confundimos a energia da denúncia com visão de governo, e o carisma com programa político. O resultado é um debate público onde se compete por pureza, não por ideias e onde o Estado continua sem ser repensado como instrumento republicano de justiça, e não apenas como palco de redenção.
A verdadeira tragédia não é que faltem líderes, mas que faltem teorias do poder capazes de transformar virtude em instituição, indignação em política, e esperança em projecto. O país precisa de uma oposição que raciocine, mas só tem uma que inspira; de dirigentes que aceitem o fardo da responsabilidade, não apenas o brilho da coerência moral. Weber tinha razão quando escreveu que o carisma funda, mas só a responsabilidade governa. Enquanto não entendermos isso, continuaremos a oscilar entre os que governam sem dar ouvidos a ninguém e os que querem governar sem compreender. O resultado disto só pode ser uma democracia que, ao invés de amadurecer, continuará a viver à mercê dos seus salvadores.
Moçambique continua longe. Muito longe!
Tony Domingos Bulacho Bulacho
O contrário dele temos muitos líderes políticos como Nyunsi e os demais. Ele de facto é chamado porque o que falta em Moçambique não são políticos são mais Messias.
Carlos Jonasse
Venâncio Mondlane é produto dos 50 anos da independência nacional. Neste momento, o país atravessa um vazio de ADN de líderes. Com todos os defeitos, VM pode ser uma das raras maçã razoável dentro de um caixote que provavelmente só resta cheiro...
O que o professor escreve é o ideal. Mas, nunca tivemos nem em sonho...
Telma Isac
É possível que VM tenha como fonte de inspiração Martin Luther King e Mahat Maghandi, que difundiram uma mensagem de amor ao próximo e igualdade de direitos. Talvez esteja a tentar conquistar a simpatia do público, usando essa estratégia. Todos sabemos que é difícil a oposição governar em Moçambique. Mesmo nas autarquias quando a oposição ganha as eleições, só é permitida governar depois de muita luta. Pode ser que VM, não considere o momento actual, para falar dos seus projectos políticos para o desenvolvimento do país.
Tony Domingos Bulacho Bulacho
É uma grande falácia dizer que ele não fala dos projetos políticos da gestão ou administração. Sendo ele o único que faz em Moçambique.
Armistício Mulande
Telma Isac este é o momento para falar de projectos políticos. Qual seria o outro momento?
Chacate Samuel
Kkkk só espero que não se descontrole e expulse os vendedores por terem tomado o espaço sagrado em local de vendas kkkkk, apesar da moralidade o extremismo é característico.
Valdo da Costa
 
Publicação coerente, comentários lúcidos.
Baltazar Egidio 
Li o texto e aprendi imenso. Penso que é um excelente texto para quem, como eu, deseja aprender.
Carla Maria
Concordo com muito do que aqui foi dito. Aliás fiquei a saber que eu não posso fazer parte por inteiro neste partido. Primeiro eu não sou crente de um só Deus e essa parece ser a primeira condição. Segundo achei u
A falácia esta coisa de achar que um partido de extrema direita em Portugal, eu estou em Portugal agora para o engenheiro, não é . São racistas, xenófobos e atacam os muçulmanos em Portugal. Não posso aceitar isto. Revolta-me. Por fim achei que o Mondlane não deixou falar o jornalista. Foi um espalhafato, eu sou o maior. Mas apesar de tudo isto acredito que este partido nos está a trazer a mudança, a crítica do regime e pôs o dedo nas feridas. Nas próximas eleições vou votar Anamola. Temos que o ver governar porque a simples mudança de regime é fundamental
Rui Pinto Martins
O que acrescento à leitura do Professor Elísio é direto: Moçambique não precisa de mais convicção; precisa de transformar convicção em instituições.
Dito de modo simples: ou há programa, ou há púlpito. Programa é dizer como se financia o Estado sem endividamento predatório, como se reforma a administração sem caça às bruxas, como se descentraliza com orçamento real, como se liga agricultura a transformação e mercados, e como se protege quem denuncia corrupção com regras e consequências. Isto não hostiliza a fé de ninguém; apenas reafirma que, num Estado laico, a legitimidade vem de políticas verificáveis.
Outro ponto: responsabilização não é virtude declarada, é regra aplicada. A confiança volta quando qualquer liderança — virtuosa ou falível — se submete a metas públicas, avaliação independente e dados abertos. Quando o discurso moral substitui procedimentos, a cidadania deixa de deliberar e passa a acreditar.
Em suma, a utilidade cívica desta entrevista está em revelar a nossa carência central: falta teoria do poder que transforme esperança em instituições. Se a oposição quer ser alternativa e não apenas catarse, tem de mostrar como governa conflitos distributivos, como prioriza gastos, como regula interesses e como mede resultados. Carisma é ponto de partida; governo é ponto de chegada. O caminho entre ambos chama-se programa submetido a regras.
Egidio Matsinhe
Os sinais de ignorar a laicidade do Estado Moçambicano foram claros quando o VM chegou ao aeroporto com a Bíblia ajoelhou e rezou. Em relação a outros pilares são falácias que nem o próprio as cumpre. Estamos a confundir gerir igreja com a gestão de um país onde existem instituições. Boa sorte aos seus membros e seguidores
Carolina Menezes Matos
Nada como o tempo para colocar cada pedra no seu lugar.
Armistício Mulande
Com o tempo, as águas começam a clarear e é possível espreitar o fundo. Sempre me incomodou esta coisa de misturar Deus e política. Infelizmente, hoje temos duas pessoas que acreditam mais em Deus e muito pouco na política no topo da nossa política, um como presidente do partido do governo e da república, e outro como líder da oposição. Isso não augura nada de bom.
Espero que o partido ANAMOLA se reveja e, muito mais cedo, se concentre em fazer política a sério e se distancie desta tendência de ser uma seita religiosa que o seu líder apresenta. Este partido parece ser esperança para muitos moçambicanos que se sentem frustrados com a inércia e incapacidade de regeneração da Frelimo.
Lino Simbine
Uma escola os seus artigos professor Elisio Macamo, fazem-nos pensar fora da caixa. Este, em particular, mostra que um país em desenvolvimento como Moçambique enfrenta o desafio de transformar a emoção política em pensamento estruturado e ação concreta. A dependência de líderes carismáticos, vistos como salvadores, revela a fragilidade das instituições e a falta de uma cultura democrática sólida. O maior desafio, portanto, é construir uma política baseada em ideias, responsabilidade e visão de Estado, onde o poder sirva ao bem comum e não à vaidade pessoal para que o desenvolvimento deixe de ser promessa e se torne um projeto coletivo. Mas, afinal, de quem é a culpa?
Agnaldo Bata
"A sua legitimidade assenta na pureza da intenção e não na eficácia da acção" Este trecho do argumento do professor Elísio faz-me recordar a forma como Samora Machel, enquanto presidente do País, é recordado. Os áudios e vídeos dos seus discursos inspiradores são partilhados como prova do quão bom governante ele era, pois percebe-se neles a paixão por Moçambique e "pureza" das suas intenções de querer ver um Moçambique Independente e Desenvolvido. No entanto, poucas vezes fala-se dos programas ou das políticas por ele desenhadas enquanto governante, os pontos de sucesso e de retrocesso, as soluções desenhadas diante de políticas que não estavam a surtir o resultado desejado e sobre como isso deixou lições parao futuro do País. E aqui, mais uma vez, surge-nos um líder político que mais inspira a sua base pelos discursos "proféticos" e messianicos... mas ainda sem uma proposta de acção concreta diante da complexidade dos problemas que uma nação Africana como Moçambique vive. Parece que é difícil compreender que os Problemas que Moçambique tem precisam de muito mais do que boas intenções...
Hélio Mudjecky
Prof, é uma análise interessante e bastante coerente, até porque não se dirige apenas ao Venâncio, creio que os demais actores políticos devem aproveitar-se dessa aula.
Entretanto, parece-me haver aqui um erro metodológico, a entrevista tinha como foco a apresentação de algum projecto político? Seria razoável o Professor apresentar, pelo menos, algumas questões que exigiam que o Venâncio Mondlane falasse do seu projecto político, mas abstraiu-se e falou de questões pessoais, qual messianismo que sempre se anuncia. Professor só faz a referência da entrevista, sem mostrar, objectivamente, a pergunta feita (pelo entrevistador) e a resposta (do entrevistado). Como disse, não me parece que Venâncio Mondlane fosse discutir o seu projecto político. Ia gostar se o professor tivesse feito ess exercício durante a campanha, onde foi convidado na Apolitécnica para apresentar o seu projecto político, o professor não fez isso. Aceitaria, também, se fizesse a análise baseada no seu pré-manifesto e o manifesto nas eleições passadas.
Mas, basear-se apenas numa breve entrevista para, depois, tirar essas conclusões, é questionável. De todas as maneiras, é de se respeitar a posição do Professor.

Sem comentários: