segunda-feira, 17 de julho de 2017

Carta aberta ao Presidente e a Portugal assinada em nome de uma vítima de Pedrógão

16.07.2017 às 11h00


d.r.

Quando uma irmã precisa, a outra estende a mão. Quando a mão falta, pede-se ajuda. A quem? Ao Presidente da República, ao país. A todos nós. A dias de completar um mês da tragédia de Pedrógão Grande, continuam a surgir histórias difíceis de enfrentar


Nesta carta não há apontar de dedo, não há estabelecimento de culpas, não há rancor. Não se perde tempo com nada disso: afinal, quem tem de ajudar uma criança a crescer não tem tempo a perder. Esta carta é simplesmente a dor discreta de quem já aprendeu que a vida não é fácil. E, por isso, o que está ali é o sentido prático de resolver o que tem de ser resolvido. E se para atingir este objetivo for preciso bater a portas, bate-se às que forem necessárias. Mesmo que seja a de Belém, casa oficial do Presidente de Portugal.
Nesta carta não há poesia, não há paragens para respirar. Porque Sara morreu. Tinha 35 anos e foi apanhada pelo fogo que faz segunda-feira um mês matou mais 63 pessoas além da própria Sara. Sarita, como era conhecida na aldeia de Vila Facaia, deixou um filho de sete anos. E Ana Catarina, a Cati, a irmã mais velha, sabe bem a responsabilidade que lhe foi entregue, não tivesse ela um sério problema cardíaco a limitar-lhe o quotidiano. E, por isso, partilha agora um pedido de ajuda.
Ana Catarina conversou com o Expresso esta semana. Sem muitas palavras, contou o que se passou com a irmã e remeteu os detalhes para o que escreveu e que pode ler mais em baixo. Nada nos foi poupado, apenas, a pedido dela, foi retirado o nome do filho de Sara, “para o proteger”, e os nomes de pessoas amigas, para preservar a privacidade de todos.

Sara Costa, uma das 64 vítimas do fogo de Pedrógão
Sara Costa, uma das 64 vítimas do fogo de Pedrógão
No Facebook, Ana Catarina foi deixando pistas da relação com Sarita e com o fogo que a matou. Às 10h39 do domingo de 18 de junho, Ana deixa um primeiro alerta, intuição do que se viria a passar: “Era bom que a Santa Casa da Misericórdia de Pedrógão Grande tivesse mais linhas. Não consigo saber de nada concreto em Vila Facaia, só suspeitas, e as piores possíveis... Não consigo falar com ninguém de lá. Alguém que tenha notícias certas me ligue, por favor.”
Nos comentários, às 17h02, um amigo tenta ajudar: “236488060. É este o número disponibilizado pela Santa Casa da Misericórdia do Pedrógão Grande para os familiares e amigos de potenciais vítimas da tragédia nos concelhos de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos conseguirem informação”. Ao que Cati responde: “Esse número está sempre ocupado, estou a tentar há horas!”. Mas às 00h04 já não há dúvidas: “Oi, amigos e família. A minha irmã morreu. Falei com o familiar que identificou o corpo e há muitas poucas dúvidas. Agradeço o apoio dado por todos neste dia e noite. Não consigo imaginar o sofrimento dela e de todos os outros na hora da sua morte, pois pelo relato o cenário era para lá de dantesco... Um grande abraço aos familiares e amigos das restantes vítimas”.
E, no dia 20, a seguir ao funeral, Cati fez, também no Facebook, o primeiro desabafo: “A minha irmã não se chamava esperança, mas podia ter-se chamado assim”. Já esta semana, pressionada pela responsabilidade de educar o sobrinho, Cati pensou em pedir ajuda ao Presidente da República e mandou-lhe um email. Esta é a carta.

CARTA NA ÍNTEGRA

Ao Excelentíssimo Presidente da República Portuguesa, Professor Marcelo Rebelo De Sousa;
Ao Excelentíssimo Senhor Primeiro Ministro da República Portuguesa, Dr. António Costa;
Ao Excelentíssimo Provedor da Justiça, Professor José de Faria Costa;
Aos Excelentíssimos Ministra da Administração Interna, Doutora Constança Urbano de Sousa, e Ministro do Trabalho e Solidariedade Social, Dr. José António Vieira da Silva.
Aos Exmos. Senhores Presidentes / Demais cargos dirigentes da União das Misericórdias:
- Manuel Augusto Lopes de Lemos
- José Albino da Silva Peneda
- Francisco Rodrigues de Araújo
- Licínio Pina
- Paulo Gravato
- Rui Filipe Rato
- Carla Nunes Pereira
- Joaquim dos Santos Guardado

Venho, por este meio, na qualidade de irmã da Sara Elisa Dinis Costa (mãe do menor de 7 anos, X), falecida no incêndio de Pedrógão Grande, questionar onde é que estão as ajudas tão apregoadas.
Agradou-me o facto de ter recebido uma mensagem do Excelentíssimo Presidente da República, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, no funeral, mas por outro lado choca-me não ter sido contactada por ninguém com responsabilidades mandatado para o auxílio das vítimas. Também gostaria de saber qual o destino das doações recentemente efetuadas à ‘causa’ das vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande.
Uma vida não tem preço e associado a esse facto há imensos custos inerentes a uma vida que se perde, bem como às vidas que ficam (não me estou somente a referir ao trauma com que o meu sobrinho, filho da minha falecida irmã, ficou, desde o conhecimento da morte da sua mãe mas também o trauma com que quer eu quer o meu marido ficámos).
Fui eu que tive de me mexer para que ele tivesse tido apoio — fui eu que fui ao meu médico nos HUC, na cirurgia Cardiotorácica de Coimbra, pedir apoio psicológico, fui eu que arranjei um psicólogo para o meu sobrinho, ligando para o 112, e sou eu que estou ainda a gerir o seu trauma, uma vez que as consultas do psicólogo são caras. Temos uma maneira de não pagar tanto, mas que nos sobrecarrega a nível emocional... E entretanto, daqui a uns dias, faz precisamente um mês desde que a tragédia aconteceu e temos de nos levantar todos os dias.
Também não entendo como ainda ninguém se propôs a pagar os funerais das vítimas, que foi o primeiro custo direto que se teve desta fatídica tragédia, uma vez que as doações em género efetuadas (graças à extrema solidariedade do povo português) serviram (e acredito que continuam a servir) perfeitamente para cobrir os custos mais urgentes.
Vou contar um pouco acerca da situação da minha família:
O filho da minha irmã, está connosco há cerca de 2 anos e meio, uma vez que a minha irmã não tinha condições psicológicas para tomar conta dele, tal como acontece com o seu pai. A minha irmã era estudante e nunca trabalhou ‘en continuum’ (sem descontos para a Segurança Social) e o seu pai, divorciado da sua mãe, tem problemas de dependências e possui trabalhos ocasionais
Desde o acordo de promoção e proteção que temos arcado com todas as custas da subsistência, educação, saúde e lazer, e aquando da solicitação do apadrinhamento civil do menor por mim e pelo meu marido estava, nesse contrato, o acordo de ambos os pais procederem ao pagamento de 75€/mês, para despesas dele. O apadrinhamento civil ainda não se encontra homologado pelo tribunal.
Já nos foi apresentada a conta do funeral e, sendo um gasto extraordinário e não expectável, não temos como o pagar e a única ajuda seriam os 200 e poucos euros da Segurança Social.
Não sou uma pessoa rica, apesar de os meus pais nos terem deixado bens, bens esses que não conseguimos vender ou tirar rendimento deles (alguns destruídos e danificados pelo fogo) e que são dispendiosos de manter.
Encontro-me atualmente desempregada, sendo que os únicos rendimentos da minha família são os do trabalho do meu marido e do meu subsídio de desemprego desde junho do presente ano (embora ainda não tenha recebido qualquer prestação de desemprego). Possuo uma incapacidade devido a problemas cardíacos e de AVC (de 61%), que não comprometem um normal ritmo de trabalho, desde que não haja trabalhos extraordinários ou em que se necessite de fazer deslocamentos que acresçam ao horário de trabalho (o que não acontece nas obras, trabalho que efetuei durante cerca de 10 anos).
Todos os que nos conhecem (nomeadamente todos os da aldeia de Vila Facaia, da Vila de Castanheira de Pera e bancos) sabem que gostamos de cumprir com as nossas obrigações e felizmente conseguimos pagar praticamente todas as dívidas que o meu pai deixou aquando da sua morte (em 2013), e pretendemos também fazê-lo com as dívidas da minha irmã, pelo que não gostamos de ficar a dever nada a ninguém — estamos a dever o nosso apartamento ao banco, sendo essa a nossa única dívida. Possuímos somente uma pequena poupança, fruto do nosso árduo trabalho, e que já está destinada.
Felizmente o meu marido aufere mais que 1,5xIAS, mas, devido a tal facto, o X não irá ter direito ao subsídio de orfandade e muito menos ao subsídio de morte (uma vez que a mãe não fez descontos).
Por fim, pretendo dizer que as dívidas que as Santas Casas da Misericórdia espalhadas pelo país têm é real e o seu conhecimento é de âmbito nacional, pelo que solicito uma descrição pormenorizada da canalização dos fundos que está a ser executada, bem como de todos os orçamentos escolhidos, face aos solicitados.
Como cidadã inconformada por esta morte, e como vítima desta tragédia, tenho direito em saber pormenores da canalização destas verbas, uma vez que tenho a cargo um menor que sofre todos os dias a perda da sua mãe.
E que estuda (e gasta inúmeros bens escolares);
E que lê imenso (porque já sabe ler desde os seus 4 anos);
E toma banho todos os dias;
E que pertence a um clube de xadrez (do qual é campeão do 1º e 2º anos do ensino básico), pago (e cujo valor não entra no IRS);
E que gasta luz e aquecimento, quando necessário, e cuja roupa é lavada todos os dias;
E que tem AECS (pagas, e cujo valor não entra no IRS);
E que come (ainda que gostássemos que comesse mais);
E que vai à piscina 2 vezes por semana, porque é importante para o seu desenvolvimento global e harmonioso, bem como para a sua destreza física;
E que usa roupas (muitas, porque os seus 7 anos não são estáticos e, como se trata de uma criança extremamente saudável, rasga umas calças a cada 15 dias);
E que rompe em média umas sapatilhas por mês (em meses bons, pois ainda prefere a trotinete — em que pode travar com os pés - à bicicleta de rodinhas);
E que vai a festas de anos (por ser um miúdo popular, vai ‘a todas’ e deve contribuir com um presente);
E que precisa de ter atividades lúdicas e educacionais — muitas, porque se trata de uma criança deveras inteligente que necessita de resposta às suas perguntas e precisa que a sua inteligência seja estimulada;
E que usa óculos (possui 8 graus de hipermetropia num olho e 7 graus da mesma incapacidade no outro, o que constitui óculos muito grossos - tentamos diminuir ao máximo o seu peso, tornando-se extremamente caros) que têm de ser mudados uma vez por ano (e tem de ter dois, porque dada a sua atividade e extrema ‘reguilice’ tem uns para brincar e outros para estudar);
E que precisa ser deslocado, de carro, de autocarro, de comboio;
E que rasga os joelhos (quando as calças estão rasgadas ou se usa calções) ou parte a cabeça ou apanha gastroenterites (e espero que se fique por aqui...).
Agradeço uma resposta célere a este e-mail, pois possuo uma dívida de mais de €1300 para pagar, pelo funeral, fora gastos com psicólogos, transportes e burocracia para tratar de diversos assuntos que este fatídico incêndio provocou.
Agradeço igualmente que me seja informado quem irá pagar a mensalidade que a minha irmã, mãe do X, iria ficar responsável de fazer, após a homologação do apadrinhamento civil, pois a lei não prevê tal pagamento.
Não pretendo que o X sofra mais ou que seja estigmatizado pela morte da mãe. Ele está ainda a processar esta morte terrível, ainda dorme comigo e com o meu marido e chora todas as manhãs e todas as noites, quer antes de dormir, quer com pesadelos.
Mais informo que criámos uma conta para o meu sobrinho, para que nós tenhamos possibilidade de o dotar de todas as ferramentas para que ele possa crescer. Almejamos que tenha, no futuro, a possibilidade de desenvolver a sua inteligência num curso superior, ou algo mais, pois acreditamos que ele tem todo o potencial para desenvolver a sua genialidade.
Esta sua conta foi aberta com 175,50€ que o X tinha num porquinho mealheiro, de algumas ofertas que lhe foram dando entretanto (aniversários, ofertas de familiares e de um casal muito sensato e com bastantes conhecimentos, que o X gosta muito, e a quem faz muitas perguntas) e que, com esforço, conseguimos não mexer.
A consulta dos movimentos desta conta (com as devidas justificações de levantamentos ) estará à disposição para os beneméritos que aqui depositem o seu contributo.
Grata pela atenção dispensada ao presente e-mail,
Atenciosamente,
Ana Costa
Nota: Dois dias após o envio por mail desta carta ao Presidente da República, Ana Catarina recebeu o telefonema de uma técnica da Segurança Social de Leiria informando-a de que se a seguradora não a ressarcir do custo do funeral de Sara, o Estado vai encarregar-se da despesa. No sábado, o telefone de Cati voltou a tocar. Do outro lado da linha estava o Presidente da República. Quis saber como ela estava e prontificou-se a resolver as despesas do funeral de Sarita, se a Segurança Social não o fizesse

O Presidente incrível de uma República inacreditável

Foto Rui Duarte Silva

Marcelo chegou primeiro a Pedrógão no dia dos incêndios. Marcelo ainda é o primeiro a chegar um mês depois. E se isto diz muito sobre quem é o Presidente, também diz muito sobre como está a República: servida por um Estado voluntarioso mas desorganizado, mobilizado mas incompetente. O protagonismo de Marcelo não se sobrepõe, ocupa um vazio. Desde o início. Desde a primeira hora. E já lá vão mais de 700. Já lá vai um mês

Sabemos ainda pouco sobre aquele primeiro dia, mas sabemos já que baste para observar o descontrolo de comando no incêndio que matou vidas, árvores, terra, casas, carros e tudo o que apanhou pela frente e não deixou atrás em Pedrógão, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos. O Presidente da República foi o primeiro chefe político a chegar ao local, logo depois do secretário de Estado da Administração Interna, que encontrou desesperado. Isso podia nem ser relevante, não fosse Marcelo Rebelo de Sousa aperceber-se imediatamente do caos das forças envolvidas e ter-se envolvido diretamente nas operações. Foi o primeiro bombeiro político. Continuou a sê-lo nos dias seguintes. Ainda hoje está a receber mensagens, a responder, a interceder. “O presidente é incrível”, dizia Dina Duarte, de Nodeirinho, ontem no Jornal de Notícias, “nunca tivemos um assim”. Mas há mais.
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