Luís
de Brito Sérgio Chichava Jonas Pohlmann 1. Nota Introdutória A estrutura do
relatório de auto-avaliação inclui análises e planos de acção nas seguintes
áreas: a) democracia e governação política, b) governação e gestão económica, e
c) governação corporativa e desenvolvimento sócio-económico. Em princípio, o relatório
deve ser fruto de uma metodologia participativa, que busca colocar o governo e
os cidadãos em diálogo, permitindo, a avaliação do grau de empenho daquele na
efectiva implementação de práticas e padrões considerados ideais pelos
países-membros da União Africana. As directrizes gerais que orientam o
exercício de auto-avaliação previsto no MARP foram definidas pelo NEPAD, mas
podem ser adaptadas pelos países em avaliação de acordo com o contexto
nacional, o que poderia ter sido útil no caso moçambicano. No presente
comentário, procuramos analisar até que ponto o relatório, na área referente à
democracia e governação política, apresenta uma análise fazendo jus ao espírito
crítico que se encontra na raiz do MARP, reflecte a pluralidade de opiniões
existentes no país e as contextualiza, discutindo as suas implicações e
procurando identificar áreas e desafios de um futuro plano de ação para
melhorar a democracia moçambicana. O comentário baseia-se numa versão do
Relatório circulada em Fevereiro de 2008.1 Esperava-se que uma versão revista
do mesmo fosse preparada e submetida à consideração dos interessados, depois de
terem sido resolvidos alguns dos mais evidentes problemas de forma e de
conteúdo que foram imediatamente apontados por várias vozes. Isso teria aberto
o caminho para um debate mais claro sobre questões de fundo, mas não foi o que
aconteceu e aparentemente uma nova versão que desconhecemos foi submetida
recentemente ao Fórum 1 Não nos foi possível ter acesso à versão final,
recentemente submetida ao Fórum do MARP. As páginas indicados no texto remetem,
pois, a essa versão do relatório. Note-se que se tratava de uma versão
electrónica e que, dependendo, dos parâmetros definidos na aplicação usada para
a sua leitura, pode haver uma ligeira não-correspondência entre as passagens
referenciadas e os respectivos números de página. 1 do MARP, que a aprovou.
Nestas condições, decidimos dar a nossa contribuição referindonos à versão a
que tínhamos tido acesso, mesmo correndo o risco de eventualmente estarmos a
questionar alguns problemas entretanto resolvidos. Considerando a extensão do
documento em análise, centraremos a análise na parte analítica do documento,
sem entrar na análise das recomendações, cuja qualidade, hierarquização e
oportunidade dependem essencialmente da qualidade e correcção da análise. O
presente comentário começa com algumas considerações gerais, logo seguidas de
uma análise sobre algumas questões relativas à linguagem e à metodologia do
relatório. As restantes secções abordam assuntos relativos ao conteúdo de cada
um dos capítulos que constituem o relatório, pela ordem em que aparecem no
mesmo e usando os seus títulos. 2. Algumas considerações gerais Em primeiro
lugar, cabe destacar que o relatório possui inúmeros méritos, não só pelo esforço
dos pesquisadores em realizá-lo, como também, e principalmente, pela sua
coragem em enfrentar certas questões abertamente, como os casos, por exemplo,
de corrupção pública e privada e a questão da partidarização das instituições
públicas. Existem no entanto algumas partes que comprometem a qualidade do
mesmo e, por acreditarmos no papel essencial que a crítica pode desempenhar no
desenvolvimento de melhores idéias, o presente comentário centrar-se-á nas
omissões, contradições e problemas que identificámos no trabalho. Não se trata
de uma análise exaustiva, mas somente de apontar o tipo de problemas que
comprometem o rigor e a qualidade que seriam desejáveis neste tipo de
empreendimento. 3. A linguagem Antes de entrar na discussão dos temas realmente
pertinentes, uma nota é necessária acerca da linguagem usada no relatório. Há
longas passagens do texto que são repetitivas e estão pessimamente escritas,
seja em termos de estilo e clareza, seja em termos de correção ortográfica e
gramatical. Em comparação com questões metodológicas e de conteúdo, este
aspecto é obviamente menos 2 importante, mas ele denota falta de cuidado na
produção do documento, o que é motivo de preocupação. A linguagem utilizada é
por vezes simplista e aproximativa, como se pode constatar logo no início do
relatório: “A democracia revela-se ser, simultaneamente, discurso ideológico e
técnica por que os governados legitimam a estruturação do poder político e se
definem os princípios, valores que regulam o funcionamento do sistema de governação”
(p. 1). Algumas vezes tende a ser tecnicista e obscura: “As entidades do
Estado, entrevistadas no âmbito deste estudo, apoiam-se no modo
institucionalista e legalista de pensar e de interpretar a estruturação e a
articulação dos poderes do Estado” (p. 126), e “(...) há uma série de
constrangimentos de ordem filosófica que fazem com que os processos sejam
anormais (...)” (p. 44). A confusão entre “direitos das mulheres” e igualdade
de género (p. 223) parece-nos indicar, mais que um problema de linguagem, um
tratamento superficial e formal do assunto. Não se compreende também a razão de
gastar várias linhas a discutir o significado de termos como “infância” (p.
231) e “prostituição” (p. 236), que são razoavelmente entendidos por qualquer
pessoa, enquanto, por exemplo, uma categoria mais complexa como é o caso de
“sociedade civil” é usada com muita frequência no relatório sem que mereça
nenhuma clarificação conceptual. 4. A metodologia Moçambique é um país bastante
diverso em termos de tradições, hábitos e opiniões políticas e produzir um
trabalho que dê expressão a esta diversidade não é tarefa fácil. Cabe ao
pesquisador identificar e tratar assuntos e problemáticas que reflictam a
opinião de grupos sociais específicos e os seus problemas principais (por
exemplo, a questão da violência doméstica, do acesso à terra, ou os problemas
enfrentados pelos refugiados e exilados), bem como analisar áreas em torno das
quais a diversidade das opiniões pode ser sistematizada com sentido em forma de
dados agregados (por exemplo, questões relativas a emprego, direitos humanos,
corrupção ou criminalidade). Se é verdade que se deve dar atenção particular à
posição daqueles que são mais directamente envolvidos nos assuntos (mulheres,
camponeses, refugiados), isso não nos parece suficiente. Por essenciais que
sejam as opiniões, é dever do pesquisador, em busca de um real 3 entendimento
da realidade, articular inquéritos de opinião com dados estatísticos, análises
contextuais e outros estudos e materiais disponíveis, comparando e
sistematizando a variedade de dados existentes. No caso do MARP, que tem entre
os seus objectivos o de capturar a diversidade de posições sem, contudo, perder
o foco necessário à ação política, tal tarefa mostra-se ainda mais necessária.
O relatório aqui em discussão, infelizmente, não respeita este princípio. Ao
longo do texto, dezenas de opiniões e entrevistas são citadas nos diversos
tópicos, geralmente divididas em três categorias: “sociedade civil”, “entidades
do Estado” e “partidos políticos”. Outras categorias emergem de vez em quando,
como o “poder judiciário” ou a “polícia”. Os critérios adoptados para a escolha
destas categorias não são claros. Como foi dito acima, a categoria “sociedade
civil”sequer é explicada. Apresentarão os membros da sociedade civil opiniões
homogéneas e congruentes que façam deles uma categoria uniforme com uma linha
de pensamento comum, como se de um partido se tratasse? Frases como: “(...)
Para a sociedade civil (...)” (p. 44) ou “(...) A oposição problematiza a questão
da participação (...)” (p. 56) fazem tábua rasa da diversidade de opiniões que
certamente foi apresentada aos investigadores. Ficamos sem saber quem foram as
partes contactadas, quem foi incluído na sociedade civil, quem representa as
entidades do Estado e a oposição. Principalmente, ficamos sem saber das
divisões e tensões existentes dentro da sociedade civil, do Estado e dos
partidos. No referente a assuntos específicos, em áreas em que há organizações
da sociedade civil especializadas, não somos informados se estas foram
consultadas e se suas posições foram consideradas e analisadas. Muitas dessas
organizações produzem estudos, relatórios e outros documentos com informação e
com os seus posicionamentos e opiniões, que deveriam ter sido usados na elaboração
do relatório, o que parece ter acontecido apenas esporadicamente. Por exemplo,
o Fórum Mulher é citado na secção referente aos “direitos das mulheres”, mas
não se sabe se o mesmo foi consultado quando da formulação das recomendações.
por exemplo, sobre a violência doméstica, um tema há muito debatido e em
relação ao qual existe muita pesquisa feita e publicada por organizações
ligadas ao Fórum Mulher, há somente uma referência (p. 223), sem qualquer
menção a essas pesquisas. O Centro de Integridade Pública (CIP), uma das poucas
organizações moçambicanas dedicadas à promoção da transparência e combate à
corrupção, é 4 citado três vezes ao longo de todo o relatório, mas, a
considerar-se seu recente pronunciamento2 , as suas opiniões parecem não ter
sido devidamente consideradas. Extratos de entrevistas e opiniões pontuam todo
o texto, sendo muitas vezes comparadas a um inquérito de opinião aparentemente
realizado pelos pesquisadores. Dado que não existe nenhuma indicação sobre o
inquérito em causa (questionário, metodologia de amostragem, etc.) é impossível
avaliar a sua validade. No entanto, a forma como os dados são apresentados
deixa dúvidas sobre o respeito das regras que orientam a realização de
inquéritos deste tipo e sobre a representatividade da amostra usada. Ainda em
relação ao inquérito de opinião, mesmo supondo que os dados tenham sido obtidos
adequadamente, estes são utilizados de maneira inconsistente, levando, por
vezes, a conclusões não permitidas pela sua natureza. Na discussão sobre acesso
à justiça, um dos mais delicados e importantes assuntos do relatório, o texto
afirma (p. 98): “(...) Segundo os resultados apurados no inquérito realizado, o
acesso à justiça é relativamente fácil. Constata-se a existência de Tribunais
Judiciais nos Distritos e o seu funcionamento é relativamente bom. No que
concerne a existência de Tribunais Comunitários, nota-se à existência de um
grande número dos mesmos e o seu funcionamento é considerado bom pela maioria
dos inquiridos (...).” Neste caso, curiosamente, os dados do inquérito não são
apresentados. Ora, é conhecido que numerosos trabalhos anteriores apontam
exactamente na direcção oposta, ou seja, têm mostrado graves problemas no
funcionamento do sistema judiciário. Para além disso, é bem conhecido que sucessivos
Procuradores-Gerais da República e outras autoridades judiciais têm referido
como uma das dificuldades do sistema o número exíguo de juízes e de tribunais
no país. Parece-nos, pois, que este é outro indício de que o inquérito não foi
bem desenhado e aplicado ou que seus resultados não foram devidamente
interpretados. Em termos gerais, é crítico o facto do relatório ser
extremamente pobre no uso do numeroso material bibliográfico, dados
estatísticos e outros resultados de pesquisa que está disponível sobre uma boa
parte dos assuntos nele tratados, para complementar e aprofundar as suas
abordagens. Ao longo do texto, não há revisão bibliográfica séria acerca de
nenhum dos assuntos abordados; os poucos trabalhos citados são, em geral, para
clarificações conceptuais, e, nos poucos casos em que se usa o seu material
analítico são citados extensamente e 2Centro de Integridade Pública, ‘Relatório
do MARP não deve ser aprovado sem uma revisão profunda’, transcrito
integralmente em http://oficinadesociologia.blogspot.com/2008/03/relatrio-domarp-no-deve-ser-aprovado.html
acedido em 29 de Abril de 2008. 5 literalmente, sem qualquer discussão. Os
diversos trabalhos produzidos por investigadores, moçambicanos e estrangeiros,
organizações internacionais e pelo governo acerca dos assuntos abordados no
relatório são raramente mencionados, com um claro desperdício do esforço
intelectual que todos têm feito para entender o país. Com a excepção de
inquéritos realizados pela UTRESP e USAID acerca da corrupção no país, os inquéritos
já numerosos inquéritos de opinião realizados no país ao longos dos últimos dez
anos, como por exemplo o Afrobarometer, estão ausentes. Estatísticas, sejam
elas governamentais ou de organizações internacionais, também não são
sistematicamente utilizadas. 5. Questões de conteúdo 5.1. Questões Gerais A
falta de equilíbrio na abordagem das diferentes temáticas é notória, sem que
para isso se percebam a justificação. Por mais que entendamos que o tema da
prevenção e redução de conflitos seja extremamente relevante, os autores do
relatório consideram que as possibilidades de conflito violento são poucas “(...)
a paz tornou-se numa realidade irreversível (...)”, (p. 5), ou“(...) A paz
alcançada em 1992 continua a apresentar sinais seguros de durabilidade (paz
duradoira), embora se reconheça que não é ainda a que seria de desejar. Com
efeito, o país se ressente de espectros de violência física e estrutural que
impedem que todos moçambicanos consigam desfrutar a paz da mesma maneira do
Rovuma ao Maputo (...)”, (p. 37), e por isso seria mais razoável dedicar maior
espaço a outras questões, em relação às quais parece haver menos certeza sobre
as suas dimensões e contornos, como, por exemplo, a “promoção e defesa dos
direitos das mulheres” ou a “corrupção”. 5.2. Questões específicas Abordaremos
agora, para cada um dos capítulos do relatório, algumas das principais
omissões, contradições e problemas que vemos no documento. 6 5.2.1. Introdução
O cartão de visitas do relatório é pouco convidativo. Para introduzir as
restantes 267 páginas, o relatório dispõe de apenas duas páginas, as quais tem
como pórtico uma definição de democracia deveras peculiar (ver acima). A
preferência por aquela a outras definições mais precisas, claras e acessíveis,
é um indício da fraqueza da análise que o relatório desenvolve sobre o processo
político moçambicano. Na sequência, para apresentar os princípios-chave da
(nova) democracia moçambicana, os autores preferiram citar a Agenda 2025, um
documento importante mas não vinculativo do Estado, ao exposto na Constituição
da República de 2004, que é o elemento fundamental do sistema jurídico-político
moçambicano. A questão da democracia em Moçambique é uma dos pontos mais
salientes de debate e divisão no seio da sociedade moçambicana. Os autores
evitam enfrentar o problema advogando uma interpretação linear que evacua o
problema e segundo a qual a democratização moçambicana começou com a
independência do país, representando a Constituição de 1990 apenas o marco da
instituição duma nova forma de democracia, a “democracia liberal”. 5.2.2.
Prevenção e redução de conflitos intra- e inter-estatais Guerras e conflitos
têm estado entre os maiores travões ao desenvolvimento dos países africanos.
Desde o início da luta pela independência (1962) até 1992, a maioria dos
moçambicanos viveu os efeitos da guerra no seu quotidiano. Centenas de milhar
de pessoas morreram, as actividades produtivas e infra-estruturas foram
seriamente comprometidas. Nesta perspectiva, o relatório faz bem em destacar a
importância e esperança que os moçambicanos depositam na manutenção da paz.
Contudo, as guerras e conflitos raramente se iniciam por plebiscito, mas sim
porque determinados grupos se mobilizam através de formas violentas, por
exemplo, em torno de desigualdades estruturais (riqueza, renda, acesso a
recursos naturais) ou de questões identitárias. O capítulo é bastante
contraditório, oscilando entre o tom celebratório da paz (p. 5) e a cautela
sobre o futuro (pp. 12 e 15). Assim, pode-se ler que “Privilegia-se o diálogo na
busca de soluções das diferenças, divergências de opinião e tensões políticas
(...)” (p. 5), para 7 algumas páginas depois se apontar como um dos factores
podendo pôr em causa a paz a “(...) ausência de diálogo permanente entre vários
actores políticos (...)” (p. 12). O relatório enumera quinze possíveis factores
de ameaça à paz no país (pp. 12-13), dentre os quais questões como
desigualdades regionais e de riqueza, pobreza, desemprego, corrupção,
expropriação das terras e acesso a recursos naturais. A exclusão social, o
acesso à água, o modelo de desenvolvimento, os “homens armados” da RENAMO, o
desemprego e os desequilíbrios regionais foram escolhidos para debate. Porém,
este mostra-se curto e fraco. Diz o texto que todos, elites (quais foram as
elites entrevistadas?) e entrevistados (comuns, supõe-se), consideram a
exclusão social um problema que deve ser seriamente tratado. Não há nenhuma
análise, nem dados, sobre a exclusão social, as suas especificidades e
contornos. No caso do acesso à água (p. 14), diz-se que a água é fonte primária
da vida, que tem sido uma das causas primárias de conflitos intra e
inter-estatais (exemplos não são citados), o mesmo ocorrendo em Moçambique
(afinal, está o país em paz ou há conflitos frequentes?). Quando se espera um
aprofundamento da análise, o relatório passa para o problema seguinte, o modelo
de desenvolvimento. Não obstante a grande quantidade de literatura disponível
sobre o assunto, o texto é superficial, com afirmações simplistas (“tudo está
mercantilizado”) e frases pouco claras como, por exemplo, “uma tendência
crescente de liberalização da maioria das actividades públicas” (p. 14). Teria
sido talvez intenção dos autores reclamar da privatização de empresas estatais
ou algo parecido, mas é de sublinhar aqui a frequente falta de rigor na
apresentação das ideias ao longo do relatório. As demais ameaças à paz são
também tratadas sumariamente e no final do capítulo o tom celebratório e
profético retorna: nos próximos 50 anos não há espaço para a guerra no país, a
não ser que tal se dê por motivações de forças externas e na África Austral não
há espaço para conflitos armados (p. 16). 8 5.2.3. Democracia constitucional,
incluindo competição política periódica e oportunidade de escolha, Estado de
Direito, direitos dos cidadãos e supremacia da Constituição A segunda temática
do relatório avança uma discussão sobre as instituições formais da democracia
moçambicana, o texto constitucional, os processos eleitorais e o Estado de
Direito. O capítulo apresenta o quadro legal do país, ou melhor, lista alguns
direitos fundamentais assegurados na Constituição, assim como enumera as
instituições responsáveis pela sua proteção (tribunais, Ministério Público). No
entanto, não há referência aos vários acordos internacionais assinados por
Moçambique.3 No tópico referente às expectativas dos cidadãos em relação à
governação democrática, listam-se, novamente, opiniões sobre o assunto (quadros
do Estado ligados ao sector da justiça e um representante do Estado). Mencionam
alguns as dificuldades de se gerir um sistema político importado (a
democracia), ao que os autores do texto respondem (supomos, pois não é claro
quem está opinando), de maneira um tanto peculiar: “(...) Numa reflexão
comparativa, e por outro lado, o cidadão sente que os princípios da vida
individual e colectiva do modo de ser e estar do Africano são mais inclusivos
que do mundo Ocidental, pois pressupõem um direito que pode ser mais abrangente
num sistema onde existe o espaço para “eu, ele e nós”, onde os recursos naturais,
como a terra e as águas, constituem um bem comum que não pode ser privatizado
para uso de poucos; enquanto que os princípios do sistema Ocidental são
exclusivos, “ou eu ou ele”(...)” (p. 43). Sendo embora este um terreno sobre o
qual seria interessante aprofundar a discussão, a abordagem veícula numa versão
elementar e esterotipada sobre uma natureza essencial (e essencialmente
distinta) das sociedades “africana” e “ocidental”, abolindo toda a sua
realidade histórica e social. É neste contexto que a Constituição de 2004 é
apontada como seguindo um modelo mais africano, pois nalguns dos seus artigos
reconhece as autoridades tradicionais. Ora, a inclusão das autoridades
tradicionais na governação do país é assunto há anos debatido e há muitas vozes
discordantes acerca de quão “africano” é tal processo. A oposição entre o
tradicional e o externo-importado desde há muito cedeu espaço a considerações
acerca de como os dois elementos têm interagido ao longo dos anos e como
determinados grupos se têm aproveitado da situação para benefício próprio. O
relatório 3 Para detalhes, ver o relatório da AfriMAP, Democracia e
Participação Política em Moçambique, Maputo, CEDE/OSISA, (no prelo). 9 assume
uma posição de princípio, evitando a análise das dinâmicas históricas, da confrontação
de conflitos e interesses de diferentes grupos sociais. O texto segue citando
uma série de opiniões onde se refere a existência de instituições democráticas
no país (leis, tribunais, partidos, etc.), mas ao mesmo tempo se aponta para o
seu funcionamento precário. Neste contexto, pouca atenção é prestada aos
aspectos institucionais, uma vez que o problema não seria institucional, mas
prático: “(...) Do ponto de vista normativo, o sistema político corresponde ao
que se espera do sistema democrático”(...) (p. 45). No entanto, é sabido que as
próprias instituições formais que articulam a prática democrática em Moçambique
não são perfeitas e que haveria necessidade de uma série de reformas legais
necessárias.4 O tom do relatório pode induzir a pensar que as instituições
formais não importam, o que seria um equívoco, não só normativo como técnico,
uma vez que se conhece o importante papel que as instituições, formais e
informais, têm no processo de desenvolvimento e de democratização. O relatório
aborda um aspecto muito importante, o sistema eleitoral vigente no país,
baseado em representação proporcional e listas partidárias, e avança que este
estaria por detrás de uma parte da abstenção observada nas últimas eleições.
Contudo, a discussão que se segue é nula. Não há referência à necessidade de
eventuais mudanças (representação proporcional em listas vs. representação
uninominal, ou vs. sistema misto), mas somente uma explicação do sistema. Não é
discutida a possibilidade de se mudar o sistema e, mais importante ainda, não é
abordado o que pensam os partidos políticos e os cidadãos sobre o assunto?
Ainda discutindo a abstenção, um dos mais preocupantes problemas que afectam a
democracia moçambicana, os autores listam vinte e uma hipóteses para explicá-la,
todas extraídas de um trabalho da antropóloga Iraê Lundin.5 De facto, a
extensão da citação chega a ser constrangedora, uma vez que, no livro
publicado, o trecho ocupa quase sete páginas. Embora seja digno de elogio o
facto dos autores terem feito uso de literatura especializada, o que não é
frequente no relatório, seria no entanto de esperar uma maneira mais adequada
de fazer a utilização da referência, para não dar a ideia de uma simples e
preguiçosa colagem. 4Ver o relatório da AfriMAP, Democracia e Participação
Política em Moçambique, Maputo, CEDE/OSISA, (no prelo). 5 Iraê Baptista Lundin,
“Eleições Gerais 2004 – Um Eleitorado Ausente”, in Brazão Mazula (dir). 2006.
Moçambique: Eleições Gerais 2004, Um Olhar do Observatório Eleitoral, Maputo,
Imprensa Universitária, pp. 91-97. 10 O texto está errado ao dizer que a
necessidade de os partidos obterem, no mínimo, 5% dos votos expressos a nível
nacional para terem direito a assento na Assembleia da República foi
substituída por uma cláusula de barreira de 2% (p. 48), quando o que se
verificou foi a total abolição da cláusula de barreira (arts. 161-165, Lei n.º
7/2007, de 26 de Fevereiro). Quando se refere ao Observatório do
Desenvolvimento (antigo Observatório da Pobreza), o relatório diz que o mesmo,
criado pelo Governo, foi uma conquista da sociedade civil, o que nos parece um
tanto ilógico. Depois, o texto fala do G-20 sem o relacionar com o
Observatório, quando resta patente que seu nome deste grupo de organizações da
sociedade civil deriva dos 20 lugares atribuídos à sociedade civil no
Observatório (onde esta é acompanhada por 20 membros do Governo e 20 membros
dos parceiros de cooperação). Por importante que o Observatório seja para a
monitoria da governação, o mesmo tem sido criticado6 , mas estas críticas não
foram tomadas em consideração no texto, que nada diz acerca do potencial e
limites desta organização. No tópico referente à garantia do Estado de Direito
e supremacia da Constituição há uma lista de artigos das duas últimas
constituições do país e assegura-se que a supremacia da Constituição é clara no
país. Porém, a relevância dos tratados internacionais no quadro jurídico do
país é ignorada. Ora, o art. 18, no 1, da Constituição afirma que “(...) Os
tratados e acordos internacionais, validamente aprovados e ratificados, vigoram
na ordem jurídica moçambicana após a sua publicação oficial e enquanto
vincularem internacionalmente o Estado de Moçambique (...)”, enquanto que o no
2 do mesmo refere que “(...) As normas de direito internacional têm na ordem
jurídica interna o mesmo valor que assumem os actos normativos
infra-constitucionais emanados da Assembléia da República e do Governo,
consoante a sua respectiva forma de recepção”. A omissão torna-se mais grave
quando vemos que o próprio texto constitucional estipulou excepção a essa
hierarquia, nomeadamente em relação à Declaração Universal dos Direitos Humanos
e à Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, às quais foi consagrado
status de normas fundamentais do ordenamento jurídico moçambicano, verdadeiras
pedras de toque da ordem jurídica do país. Assim, o art. 43 da Constituição
estabelece que “(...) os preceitos constitucionais relativos aos direitos
fundamentais são interpretados e integrados de harmonia com a Declaração
Universal dos Direitos do Homem e a Carta Africana dos Direitos do Homem e 6
Antonio Francisco e Konrad Matter, Poverty Observatory in Mozambique,
http://www.iese.ac.mz/lib/af/POMOZ_Phase3_Finalreport_30April2007.pdf, acedido
em 5 de Maio de 2008. 11 dos Povos”, ao passo que o no 2 do art. 17 fixa que
“(...) A República de Moçambique aceita, observa e aplica os princípios da
Carta da Organização das Nações Unidas e da Carta da União Africana”.7 Na
discussão sobre a descentralização, em suas vertentes desconcentradora e de devolução
política, a discussão comete alguns erros. De início, o texto informa de forma
algo confusa que “(...) o que é comumente chamado de descentralização em
Moçambique é avaliado pelo cidadão pelas duas vertentes (descentralização e
desconcentração), que se interligam, no âmbito da definição de conceitos,
criando alguma confusão para uma análise mais científica (...)” (p. 73) e
propõe-se a trazer alguma luz ao assunto. No entanto, tal não é o caso.
Primeiro, os autores afirmam que as autarquias são tuteladas politicamente, o
que nos parece ser incorrecto. Depois, dizem que a “(…) a descentralização,
como devolução de poderes, criou em Moçambique os órgãos locais (...)” (p. 74),
o que é igualmente incorreto, pois os órgãos locais do Estado existem desde a Independência.
O que o processo de devolução em curso no país criou foi o poder local, as
autarquias, politicamente autónomas do centro do poder político nacional, e não
a representação do poder central nas esferas locais. Ao longo do texto, por
várias vezes há confusão entre o poder local (uma noção que deveria ser
reservada ao poder localmente eleito) e os órgãos locais do Estado (p. 76 e
ss.). Os autores referem que o princípio da legitimidade ao nível do poder
local está “(...) assente no facto de todos os cidadãos dentro dos limites da
municipalidade terem o direito de participar no processo de eleger e ser
eleito.” (p. 76) e continuam afirmando que “O direito é universal, directo,
igual e pessoal, através do voto secreto (...)” (sublinhado nosso) (p. 76).
Ora, um direito universal nos limites da municipalidade parece estranho... Pelo
contrário, o que tem acontecido em Moçambique – e isso é que deveria ser
salientado pelo relatório - é que alguns são “mais cidadãos” que outros, ou
seja, possuem direitos políticos mais amplos. Na verdade, alguns (os que vivem
nas poucas áreas definidas como municípios), dispõem do direito de voto nas
eleições nacionais, provinciais e locais, ao passo que um grande número de
cidadãos moçambicanos está privado do direito de eleger os seus representantes
locais. Tal é, de imediato, a consequência lógica da adopção do princípio do
gradualismo na formação dos municípios, que implica uma extensão gradual e não
imediata de direitos políticos. 7 De notar que o art. 17, nº 2, da Constituição
de 2004 reproduz um artigo constante já da Constituição de 1975, que assim
afirmava em seu art. 23 “A República Popular de Moçambique aceita, observa e
aplica os princípios da Carta da Organização das Nações Unidas e da Organização
da Unidade Africana”. 12 Porém, o problema é mais grave – e aqui se colocaria
mesmo uma questão de constitucionalidade – pois, com as actuais disposições
legais sobre a formação das autarquias, uma parte dos cidadãos ficaria sempre
privada do acesso a esta forma de poder local e aos direitos que lhe estão
associados. 5.2.4. Promoção e defesa dos direitos económicos, sociais e
culturais, e dos direitos civis e políticos, conforme estipulado nos
instrumentos africanos e internacionais de direitos humanos Este capítulo começa
com uma lista (um tanto confusa) de várias possíveis definições de direito, a
qual, contudo, a ser incluída no relatório, deveria sê-lo no capítulo anterior,
onde a discussão do sistema jurídico moçambicano se iniciou. Depois, passa-se a
discutir os vários direitos humanos constantes da ordem jurídica moçambicana,
verificando-se se os moçambicanos, afinal, conhecem seus direitos. Os
instrumentos africanos e internacionais de direitos humanos, supostos objetos
do capítulo, são discutidos somente marginalmente. A discussão também é breve
em relação aos vários direitos civis, políticos, económicos, sociais e
culturais, e pouco acrescenta ao que já é de conhecimento geral. Por exemplo,
se o relatório regista a questão da superlotação das cadeias, não presta nenhuma
atenção as péssimas condições de higiene e salubridade, que caracterizam o
sector prisional em Moçambique e que têm graves implicações na área da saúde e
nomeadamente do HIV-SIDA. Igualmente, se o relatório fala da corrupção da
polícia, já não foca os inúmeros casos de prisão e detenção arbitrária de
cidadãos por elementos da polícia que têm sido reportados na imprensa, assim
como pelas organizações dos direitos humanos. Aqui, o relatório da Liga
Moçambicana dos Direitos Humanos (LDH) de 2007 teria sido de grande utilidade8
. 8 Ver
http://portuguese.maputo.usembassy.gov/uploads/images/I2Kjl9RF856VL2SzEp7-
iQ/mdireitosh2007.pdf, acedido em 5 de Maio de 2008. Para detalhes sobre a
Liga, consultar a sua página na internet http://www.ldh.org.mz. 13 5.2.5. Manter
a separação de poderes, incluindo a defesa da independência do poder judicial e
do poder legislativo eficaz O capítulo, depois de um introdução algo
problemática sobre alguns aspectos do direito internacional e da sua relação
com a ordem jurídica interna, avança para a discussão desta última. Novamente,
há uma extensa lista de artigos de lei, detalhando as definições, competências
e composição das diversas instituições democráticas do país. No final da lista
(de quase 10 páginas), há meia página de comentários onde pouco é dito. Faltou,
por exemplo, um debate mais aprofundado acerca do que alguns consideram o
excesso de poderes concedidos ao Presidente da República, com grandes
implicações nas relações entre o poder executivo e o legislativo. Na sequência,
contudo, há um aprofundamento do debate, e digno de nota positiva é o espaço
dedicado à discussão acerca da interferência do poder executivo nas actividades
do poder judiciário (pp. 128-140). De facto, o sector da justiça recebe um
tratamento condizente com sua importância nas páginas que se seguem (pp.
140-145). Finalmente, no final do capítulo, a Assembleia da República recebe
atenção, e várias críticas são tecidas aos deputados, seu potencial e empenho.
Infelizmente, não há no capítulo referência a entrevistas com deputados, mas
somente às usuais “entidades de Estado” e “entidades da sociedade civil”. Aqui,
recupera-se a discussão acerca do sistema eleitoral vigente, principalmente no
tocante às listas partidárias, que afastariam os deputados de seus eleitores e
os prenderiam aos aparelhos dos partidos. Novamente, no entanto, não se debatem
as alternativas ao presente modelo. 5.2.6. Assegurar entidades e funcionários
públicos responsáveis, eficientes e eficazes Afastando-se da discussão
propriamente política, o presente capítulo discute aspectos relacionados com o
funcionamento da máquina estatal, da administração pública e da provisão de
serviços públicos. Há, de início, um debate um tanto estéril acerca de várias
teorias que discutem a administração pública, pois é pouco importante e de
pouco uso na discussão que se segue. Esperava-se que os padrões e práticas à
luz dos quais a administração pública moçambicana deveria ser julgada, pelo
menos no caso do Mecanismo Africano de Revisão de Pares, seriam encontrados não
em teorias, mas nos tratados e documentos regionais e internacionais assinados
pelo país, assim como na legislação nacional. Nesta 14 perspectiva, a
introdução de teorias sobre a administração pública parece pouco adequada e
produtiva. Felizmente, no correr do texto, são as normas e padrões
internacionais e nacionais que dominam o relatório, com o quase total
esquecimento das teorias anteriormente referidas. O texto cita os Objetivos do
Desenvolvimento do Milénio e o NEPAD, assim como a Convenção das Nações contra
o Crime Organizado Internacional. Inútil repisar que discussão não houve, mas
citação de alguns dos artigos presentes na Convenção (pp. 159-163). Como se
carecesse o texto de listas, seguem-se mais enumerações, a saber: a) dispositivos
que constam da estratégia de reforma do sector público; b) princípios
constantes do Decreto nº 30/2001, de 15 de Outubro, que estabelece as normas e
princípios de funcionamento da administração pública; c) estruturação
(definição, competências, composição) dos órgãos locais de Estado (no caso,
província, distrito, posto administrativo e localidade); d)normas que regulam o
processo de desconcentração. No final do capítulo, há referência às
dificuldades enfrentadas nos processos de desconcentração e descentralização e
comentam-se alguns problemas, como a falta de recursos humanos e materiais nos
municípios e distritos, assim como a falta de capacitação adequada. Mais
adiante, fala-se também das dificuldades e melhorias observadas nos serviços
públicos, discussão esta que é de considerável abrangência e qualidade em
comparação com o restante do documento. 5.2.7. Corrupção Este é um dos mais
importantes tópicos do relatório, pois há muito se discute quais seriam as
características, o impacto e a extensão de práticas corruptas no país, com
debates sempre acalorados sobre o assunto. De início, o relatório afasta-se de
discursos negacionistas, que afirmam não haver corrupção no país (argumento que
se funda na ausência de casos de corrupção julgados...), observando que “(...)
Em Moçambique, a pequena corrupção observase mais naqueles sectores que lidam
directamente com o público, com destaque para os sectores da educação, saúde,
polícia de trânsito e justiça. (...) Por seu turno, a grande corrupção envolve
pessoas influentes que lidam com ‘dossiers’” (p. 197). Corrupção há, portanto,
e cabia ao relatório discuti-la. E o texto é parcialmente bem-sucedido neste
tópico, principalmente se comparado ao restante do relatório. Primeiramente,
diferentemente de 15 outros tópicos, o texto menciona duas das mais conhecidas
pesquisas sobre o assunto, um inquérito de opinião pública conduzido pela
UTRESP, e outro estudo semelhante conduzido pela USAID. Em nota de rodapé,
mostra que sabe da existência e dos estudos publicados pelo Centro de
Integridade Pública (CIP). Em segundo lugar, os autores mencionam e listam, de
maneira organizada e sistemática, a legislação nacional e os tratados
internacionais que fazem parte do ordenamento jurídico moçambicano sobre
corrupção, assim como discutem se tal legislação tem sido aplicada. Também,
debatem as instituições de combate à corrupção existentes, seus limites e
potenciais. O texto sublinha que existem poucos estudos sobre o fenómeno e
destaca a falta de rigor científico de muitas pesquisas. Infelizmente, apesar
de haver uma nota de rodapé bastante elogiosa sobre o CIP, as suas várias
pesquisas não são usadas, nomeadamente vários estudos recentes sobre corrupção
sectorial (nas alfândegas, no sector da Justiça, no sector da Educação, no sector
da Saúde9 ) e a análise crítica feita à Estratégia do Governo de Combate à
Corrupção10. Em todos estes estudos, há dados bastante relevantes, assim como
recomendações e propostas, que poderiam ter sido aproveitados pelos autores do
relatório, principalmente porque o texto aborda explicitamente a corrupção em
várias destas áreas já pesquisadas pelo CIP. 5.2.8. Promoção e defesa dos
direitos das mulheres Como destacado anteriormente, a questão da igualdade de
gênero recebeu um tratamento muito precário no relatório. A equipa reconheceu a
importância do assunto, mas demonstrou desconhecimento sobre os debates que se
desenvolvem em torno dele. Em termos legais, o texto cita os dispositivos
constantes na Constituição da República, mas esquece-se de debater as normas
ainda válidas que discriminam as mulheres, principalmente aquelas constantes no
Código Penal e na Lei das Sucessões. Em termos de direito internacional, há
total ausência de informação, e o relatório não cita que o governo ratificou a
Convenção para a Erradicação de 9 Marcelo Mosse e Edson Cortez, 2007. Corrupção
e Integridade nas Alfândegas de Moçambique, Uma avaliação das boas práticas,
Documento de Discussão nº 5, CIP; Adriano Nuvunga, Marcelo Mosse e César
Varela, Relatório do Estudo sobre Transparência, Áreas de Riscos e
Oportunidades de Corrupção em Seis Autarquias Moçambicanas, Maputo, CIP;
Marcelo Mosse, 2006. A corrupção no Sector da Justiça em Moçambique, Maputo,
CIP; Marcelo Mosse e Edson Cortez, 2006. A Corrupção no Sector da Saúde em Moçambique,
Maputo, CIP; Marcelo Mosse e Edson Cortez, 2006. A Pequena Corrupção no Sector
da Educação em Moçambique, Maputo, CIP. 10 Marcelo Mosse, 2006. Breve Análise à
Estratégia Anti-Corrupção do Governo, Maputo, CIP. 16 Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher (CEDAW), tendo, recentemente, apresentado seu
primeiro relatório (com atraso) ao órgão responsável pela monitoria da
Convenção. Na esteira deste relatório, a WLSA (Women and Law in Southern
Africa) manifestou-se em relatório-sombra, no qual debate as carências do texto
apresentado pelo Governo de Moçambique. Ambos os documentos são ricos em
informação, e deveriam ter sido consultados. O texto não fala sobre o
Anteprojeto de Lei contra a Violência Doméstica, cuja aprovação vem desde há
muito sendo defendida pelo Fórum Mulher e por outras organizações, e a
discussão sobre a violência doméstica não passa de sete linhas. Para além das
omissões acerca dos instrumentos legais, o texto não debate as diversas
dificuldades enfrentadas pelas mulheres, sejam elas na esfera pública ou
privada, assim como não menciona os diferentes problemas económicos, sociais e
culturais existentes em relação ao género. Tal carência não pode ser imputada à
falta de material. A WLSA tem publicado extensamente sobre o assunto, e há
vários livros publicados sobre o tema11. Também, se esquece de questões que
estão diariamente nos jornais, como os debates sobre a feminização da pobreza e
a cada vez maior incidência do HIV-SIDA no seio das mulheres. Neste último
aspecto, o Relatório Nacional de Desenvolvimento Humano de Moçambique de 2007,
que discutiu o impacto do HIV-SIDA no país, fez questão de dedicar um de seus
capítulos à questão do género e HIV-SIDA. Segundo estatísticas citadas no texto
(oriundas do INEMISAU), a proporção de infecção entre mulheres e homens está na
ordem de 57% para 47%, sendo que, em jovens entre 15 e 24 anos, a
seroprevalência feminina é duas vezes maior que a masculina.12 No tocante à
participação da mulher nos órgãos de tomada de decisão, há uma tabela relativa
a diversos cargos, a qual, contudo, está bastante desactualizada, pois é
referente a 2003. Ora, sabendo-se da importância do relatório, os pesquisadores
poderiam ter requerido informações mais actualizadas, ao menos em relação aos
principais cargos. No que se refere às acções governamentais na área, estas são
vistas superficialmente, uma vez que, em não havendo debate sobre os problemas,
pouco poderia ser dito sobre as acções que têm sido promovidas para resolvê-los
e sobre as áreas em que devem ser envidados maiores 11Merece destaque: Rachel
Waterhouse e Carin Vijfhuizen (dir). 2001. Estratégias das Mulheres, Proveito
dos Homens, Género, terra e recursos naturais em contextos rurais em
Moçambique. Maputo, Imprensa Universitária. 12 UNDP, (2007). Moçambique,
Relatório Nacional do Desenvolvimento Humano 2007, Desafios e Oportunidades: A
resposta ao HIV e SIDA, p. 32. 17 esforços. Cita-se o Ministério da Mulher e da
Ação Social (MMAS), mas não se aborda a sua actuação, a sua forma de
funcionamento, nem as políticas públicas que têm adoptado. Uma simples visita
ao website do Ministério (www.mmas.gov.mz) teria auxiliado os investigadores a
familiarizarem-se com o trabalho do Governo de uma maneira mais acurada. Outro
aspecto que foi constantemente ignorado no relatório, mas que seria essencial
para se avaliar o comprometimento do Governo na realização de suas promessas,
relaciona-se com a análise do Orçamento do Estado. Essa análise permitiria
verificar até que ponto o discurso governamental acerca de prioridades tem sido
acompanhado de recursos. 5.2.9. Promoção dos direitos da criança e do jovem A
alta taxa de mortalidade e a baixa expectativa de vida (menos de 50 anos),
quando aliadas a uma alta taxa de fertilidade (em 2005, a taxa geral de
fertilidade situava-se em 5,4), têm contribuído para que a população
moçambicana continue a aumentar e seja constituída principalmente por jovens.
Em 2005, cerca de 60% da população era formada por pessoas com idade inferior a
24 anos, com 16% entre 0-4 anos.13 Em vista disto, era de esperar que o
relatório se debruçasse seriamente sobre a promoção dos direitos das crianças e
dos jovens. Saliente-se também que a UNICEF e o Ministério da Planificação e
Desenvolvimento (MPD) publicaram, em 2006, um relatório sobre o assunto, o qual
poderia facilmente ter servido de ponto de partida aos investigadores.14
Novamente, porém, o texto nos decepciona. De início, há mais de quatro páginas
de debate teórico-conceptual que, se não totalmente dispensável, poderia ter
dado lugar a discussões mais pertinentes (pp. 228-232). A questão do abuso
sexual, um dos problemas mais sérios em qualquer sociedade, recebe quatro
páginas de atenção, nas quais vários problemas são mencionados e poucos são
seriamente debatidos. No estudo da UNICEF e do MPD (p. 190), fica claro que o
abuso sexual contra as crianças é frequente, afligindo principalmente as
raparigas maiores de 15 anos de idade, matriculadas nos níveis mais baixos de
escolaridade (EP2) e que não vivem com os pais. Ao discutir-se a falta (sic) de
educação das crianças, dedica-se meia página a listar as possíveis causas para
tanto, e nada mais é dito. As características da situação educacional das 13
http://www.ine.gov.mz/populacao/indicadores/Document.2007-05-23.1452175057,
acedido em 2 de Maio de 2008. 14 O documento está disponível no website da
UNICEF-Moçambique, http://www.unicef.org/mozambique/resources_3018.html,
acedido em 2 de Abril de 2008. 18 crianças e jovens (diferenças de género,
diferenças entre regiões do país e entre zonas rurais e urbanas, taxas de
abandono e de repetência, aspectos quantitativos e qualitativos do processo
educacional) não são abordados. Mesmo na discussão das causas, o texto pouco
acrescenta, conforme podemos constatar quando este é comparado com semelhante discussão
constante do estudo da UNICEF e do MPD. Em dado momento, os autores dizem que
“(…) a mentalidade das pessoas é que a escola ainda custa dinheiro (...)” (p.
235), ignorando que tal não é só uma questão de mentalidade, mas um facto
concreto, seja no sistema público, seja no sistema privado, pois: a) os
materiais escolares são caros (livros, roupas); b) a criança, estando na
escola, não pode trabalhar, o que implica que a família perde uma eventual
fonte de rendimento. Outras possíveis causas não mencionadas (mas referidas no
relatório da UNICEF e MPD) incluem: a) os assuntos tratados no currículo podem
ser muitas vezes pouco relevantes para o dia-a-dia dos alunos e a suas
perspectivas de futuro, fazendo com que estes desistam da escola; b) distância
até à escola e precárias condições das infra-estruturas; c) baixa qualidade do
ensino; d) violência e abuso nas escolas. Os demais tópicos abordados nesta
parte do relatório, isto é, prostituição infantil, trabalho infantil, falta de
emprego e habitação, assim como as políticas do governo sobre o assunto, não
serão aqui discutidos, principalmente em vista de terem sido exaustiva e
competentemente debatidos no relatório da UNICEF e MPD. 5.2.10. Promoção e
defesa dos direitos de grupos vulneráveis, incluindo deslocados e refugiados O
capítulo final do relatório é também pouco animador, apesar de discutir um
importante assunto. Grupos vulneráveis possuem, em regra, pouco poder de
mobilização e tendem a receber pouca atenção do Estado e das suas instituições.
Politicamente pouco significativos, o destino destes grupos é geralmente
deixado nas mãos de instituições de caridade. Em Moçambique, os anos de guerra
civil e a dramática situação económica do país fizeram da vulnerabilidade uma
característica de muitos grupos sociais, desde viúvas até mutilados de guerra.
Para lidar com o assunto, existe o já mencionado Ministério da Mulher e da
Acção Social, o qual, contudo, possui recursos bastante escassos para fazê-lo.
O relatório destaca algumas iniciativas governamentais na área, mas não
consegue avançar na discussão. Algumas áreas recebem desmesurada atenção no
curto espaço dedicado ao tema 19 (por exemplo, deficientes visuais), enquanto
outras praticamente não são tocadas (outros deficientes que não visuais,
pessoas mutiladas). No tocante aos idosos, o texto imputa parte da falta de
assistência que estes recebem ao facto de “(...) vivermos numa época onde a
degradação dos valores morais é extremamente elevada.” (p. 262). Ora,
explicar-se a situação do idoso com recurso a problemas de degradação moral não
parece analiticamente satisfatório. E mesmo se tal fosse o caso, cabe ao Estado
ajudar estes grupos, e a moral da época (assumindo que ela exista) não pode
servir de desculpa para a situação dos idosos. Discutindo a questão dos
refugiados e exilados, o texto falha em oferecer dados atualizados sobre o
número de pessoas refugiadas em Moçambique. De acordo com o Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), ao final de 2005 existiam 4.015
pessoas exiladas e 1.954 refugiados em Moçambique).15 O trabalho do Instituto
Nacional de Apoio ao Refugiado (INAR) não é analisado, mas com o escasso
orçamento anual de que dispõe,17,109,940.00 Mt para 2008, provavelmente a sua
actuação é bastante difícil. No tocante à liberdade de circulação e outros
direitos dos refugiados e exilados, não há nenhuma referência no texto.
Sabe-se16, porém, que, em Dezembro de 2004, o Governo iniciou a emissão de
cartões de identificação para os refugiados e candidatos a asilo, os quais permitirão
que estes procurem emprego, se matriculem na escola, abram contas bancárias e
aluguem habitação.17 No entanto, o ACNUR observou que, não obstante a emissão
dos cartões de identificação, o movimento dos refugiados dentro do país
continua a ser limitado pelo Governo. Os refugiados têm que solicitar
autorização para se deslocarem para fora do local em que se encontram
registados, o que facilita a ocorrência de abusos e pedidos de subornos por
parte dos funcionários.18 Para além disso,parece haver casos de imigrantes que,
mesmo sendo possuidores dos requisitos necessários à obtenção do estatuto de
refugiado, não têm usufruído deste benefício facilmente, principalmente em
vista de dificuldades de natureza burocrática e à lentidão na tramitação de
documentação. Maputo, Julho de 2008. 15Conforme as estatísticas do ACNUR, em
http://www.unhcr.org/statistics/STATISTICS/4641be710.pdf, acedido em 9 de Abril
de 2008. 16 As informações deste parágrafo foram retirados do relatório da
AfriMAP, Democracia e Participação Política em Moçambique, Maputo, CEDE/OSISA,
(no prelo). 17 Para detalhes, ver
http://www.unhcr.org/news/NEWS/41d42e904.html, acedido em 9 de Abril de 2008.
18 Ver
http://portuguese.maputo.usembassy.gov/relatrio_sobre_os_direitos_humanos_-_moambique_-
_2006.html, acedido em 9 de Abril de 2008. 20
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