sábado, 10 de junho de 2017

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE O RELATÓRIO DE AUTOAVALIAÇÃO DE MOÇAMBIQUE NA ÁREA DA “DEMOCRACIA E GOVERNAÇÃO POLÍTICA”



 Luís de Brito Sérgio Chichava Jonas Pohlmann 1. Nota Introdutória A estrutura do relatório de auto-avaliação inclui análises e planos de acção nas seguintes áreas: a) democracia e governação política, b) governação e gestão económica, e c) governação corporativa e desenvolvimento sócio-económico. Em princípio, o relatório deve ser fruto de uma metodologia participativa, que busca colocar o governo e os cidadãos em diálogo, permitindo, a avaliação do grau de empenho daquele na efectiva implementação de práticas e padrões considerados ideais pelos países-membros da União Africana. As directrizes gerais que orientam o exercício de auto-avaliação previsto no MARP foram definidas pelo NEPAD, mas podem ser adaptadas pelos países em avaliação de acordo com o contexto nacional, o que poderia ter sido útil no caso moçambicano. No presente comentário, procuramos analisar até que ponto o relatório, na área referente à democracia e governação política, apresenta uma análise fazendo jus ao espírito crítico que se encontra na raiz do MARP, reflecte a pluralidade de opiniões existentes no país e as contextualiza, discutindo as suas implicações e procurando identificar áreas e desafios de um futuro plano de ação para melhorar a democracia moçambicana. O comentário baseia-se numa versão do Relatório circulada em Fevereiro de 2008.1 Esperava-se que uma versão revista do mesmo fosse preparada e submetida à consideração dos interessados, depois de terem sido resolvidos alguns dos mais evidentes problemas de forma e de conteúdo que foram imediatamente apontados por várias vozes. Isso teria aberto o caminho para um debate mais claro sobre questões de fundo, mas não foi o que aconteceu e aparentemente uma nova versão que desconhecemos foi submetida recentemente ao Fórum 1 Não nos foi possível ter acesso à versão final, recentemente submetida ao Fórum do MARP. As páginas indicados no texto remetem, pois, a essa versão do relatório. Note-se que se tratava de uma versão electrónica e que, dependendo, dos parâmetros definidos na aplicação usada para a sua leitura, pode haver uma ligeira não-correspondência entre as passagens referenciadas e os respectivos números de página. 1 do MARP, que a aprovou. Nestas condições, decidimos dar a nossa contribuição referindonos à versão a que tínhamos tido acesso, mesmo correndo o risco de eventualmente estarmos a questionar alguns problemas entretanto resolvidos. Considerando a extensão do documento em análise, centraremos a análise na parte analítica do documento, sem entrar na análise das recomendações, cuja qualidade, hierarquização e oportunidade dependem essencialmente da qualidade e correcção da análise. O presente comentário começa com algumas considerações gerais, logo seguidas de uma análise sobre algumas questões relativas à linguagem e à metodologia do relatório. As restantes secções abordam assuntos relativos ao conteúdo de cada um dos capítulos que constituem o relatório, pela ordem em que aparecem no mesmo e usando os seus títulos. 2. Algumas considerações gerais Em primeiro lugar, cabe destacar que o relatório possui inúmeros méritos, não só pelo esforço dos pesquisadores em realizá-lo, como também, e principalmente, pela sua coragem em enfrentar certas questões abertamente, como os casos, por exemplo, de corrupção pública e privada e a questão da partidarização das instituições públicas. Existem no entanto algumas partes que comprometem a qualidade do mesmo e, por acreditarmos no papel essencial que a crítica pode desempenhar no desenvolvimento de melhores idéias, o presente comentário centrar-se-á nas omissões, contradições e problemas que identificámos no trabalho. Não se trata de uma análise exaustiva, mas somente de apontar o tipo de problemas que comprometem o rigor e a qualidade que seriam desejáveis neste tipo de empreendimento. 3. A linguagem Antes de entrar na discussão dos temas realmente pertinentes, uma nota é necessária acerca da linguagem usada no relatório. Há longas passagens do texto que são repetitivas e estão pessimamente escritas, seja em termos de estilo e clareza, seja em termos de correção ortográfica e gramatical. Em comparação com questões metodológicas e de conteúdo, este aspecto é obviamente menos 2 importante, mas ele denota falta de cuidado na produção do documento, o que é motivo de preocupação. A linguagem utilizada é por vezes simplista e aproximativa, como se pode constatar logo no início do relatório: “A democracia revela-se ser, simultaneamente, discurso ideológico e técnica por que os governados legitimam a estruturação do poder político e se definem os princípios, valores que regulam o funcionamento do sistema de governação” (p. 1). Algumas vezes tende a ser tecnicista e obscura: “As entidades do Estado, entrevistadas no âmbito deste estudo, apoiam-se no modo institucionalista e legalista de pensar e de interpretar a estruturação e a articulação dos poderes do Estado” (p. 126), e “(...) há uma série de constrangimentos de ordem filosófica que fazem com que os processos sejam anormais (...)” (p. 44). A confusão entre “direitos das mulheres” e igualdade de género (p. 223) parece-nos indicar, mais que um problema de linguagem, um tratamento superficial e formal do assunto. Não se compreende também a razão de gastar várias linhas a discutir o significado de termos como “infância” (p. 231) e “prostituição” (p. 236), que são razoavelmente entendidos por qualquer pessoa, enquanto, por exemplo, uma categoria mais complexa como é o caso de “sociedade civil” é usada com muita frequência no relatório sem que mereça nenhuma clarificação conceptual. 4. A metodologia Moçambique é um país bastante diverso em termos de tradições, hábitos e opiniões políticas e produzir um trabalho que dê expressão a esta diversidade não é tarefa fácil. Cabe ao pesquisador identificar e tratar assuntos e problemáticas que reflictam a opinião de grupos sociais específicos e os seus problemas principais (por exemplo, a questão da violência doméstica, do acesso à terra, ou os problemas enfrentados pelos refugiados e exilados), bem como analisar áreas em torno das quais a diversidade das opiniões pode ser sistematizada com sentido em forma de dados agregados (por exemplo, questões relativas a emprego, direitos humanos, corrupção ou criminalidade). Se é verdade que se deve dar atenção particular à posição daqueles que são mais directamente envolvidos nos assuntos (mulheres, camponeses, refugiados), isso não nos parece suficiente. Por essenciais que sejam as opiniões, é dever do pesquisador, em busca de um real 3 entendimento da realidade, articular inquéritos de opinião com dados estatísticos, análises contextuais e outros estudos e materiais disponíveis, comparando e sistematizando a variedade de dados existentes. No caso do MARP, que tem entre os seus objectivos o de capturar a diversidade de posições sem, contudo, perder o foco necessário à ação política, tal tarefa mostra-se ainda mais necessária. O relatório aqui em discussão, infelizmente, não respeita este princípio. Ao longo do texto, dezenas de opiniões e entrevistas são citadas nos diversos tópicos, geralmente divididas em três categorias: “sociedade civil”, “entidades do Estado” e “partidos políticos”. Outras categorias emergem de vez em quando, como o “poder judiciário” ou a “polícia”. Os critérios adoptados para a escolha destas categorias não são claros. Como foi dito acima, a categoria “sociedade civil”sequer é explicada. Apresentarão os membros da sociedade civil opiniões homogéneas e congruentes que façam deles uma categoria uniforme com uma linha de pensamento comum, como se de um partido se tratasse? Frases como: “(...) Para a sociedade civil (...)” (p. 44) ou “(...) A oposição problematiza a questão da participação (...)” (p. 56) fazem tábua rasa da diversidade de opiniões que certamente foi apresentada aos investigadores. Ficamos sem saber quem foram as partes contactadas, quem foi incluído na sociedade civil, quem representa as entidades do Estado e a oposição. Principalmente, ficamos sem saber das divisões e tensões existentes dentro da sociedade civil, do Estado e dos partidos. No referente a assuntos específicos, em áreas em que há organizações da sociedade civil especializadas, não somos informados se estas foram consultadas e se suas posições foram consideradas e analisadas. Muitas dessas organizações produzem estudos, relatórios e outros documentos com informação e com os seus posicionamentos e opiniões, que deveriam ter sido usados na elaboração do relatório, o que parece ter acontecido apenas esporadicamente. Por exemplo, o Fórum Mulher é citado na secção referente aos “direitos das mulheres”, mas não se sabe se o mesmo foi consultado quando da formulação das recomendações. por exemplo, sobre a violência doméstica, um tema há muito debatido e em relação ao qual existe muita pesquisa feita e publicada por organizações ligadas ao Fórum Mulher, há somente uma referência (p. 223), sem qualquer menção a essas pesquisas. O Centro de Integridade Pública (CIP), uma das poucas organizações moçambicanas dedicadas à promoção da transparência e combate à corrupção, é 4 citado três vezes ao longo de todo o relatório, mas, a considerar-se seu recente pronunciamento2 , as suas opiniões parecem não ter sido devidamente consideradas. Extratos de entrevistas e opiniões pontuam todo o texto, sendo muitas vezes comparadas a um inquérito de opinião aparentemente realizado pelos pesquisadores. Dado que não existe nenhuma indicação sobre o inquérito em causa (questionário, metodologia de amostragem, etc.) é impossível avaliar a sua validade. No entanto, a forma como os dados são apresentados deixa dúvidas sobre o respeito das regras que orientam a realização de inquéritos deste tipo e sobre a representatividade da amostra usada. Ainda em relação ao inquérito de opinião, mesmo supondo que os dados tenham sido obtidos adequadamente, estes são utilizados de maneira inconsistente, levando, por vezes, a conclusões não permitidas pela sua natureza. Na discussão sobre acesso à justiça, um dos mais delicados e importantes assuntos do relatório, o texto afirma (p. 98): “(...) Segundo os resultados apurados no inquérito realizado, o acesso à justiça é relativamente fácil. Constata-se a existência de Tribunais Judiciais nos Distritos e o seu funcionamento é relativamente bom. No que concerne a existência de Tribunais Comunitários, nota-se à existência de um grande número dos mesmos e o seu funcionamento é considerado bom pela maioria dos inquiridos (...).” Neste caso, curiosamente, os dados do inquérito não são apresentados. Ora, é conhecido que numerosos trabalhos anteriores apontam exactamente na direcção oposta, ou seja, têm mostrado graves problemas no funcionamento do sistema judiciário. Para além disso, é bem conhecido que sucessivos Procuradores-Gerais da República e outras autoridades judiciais têm referido como uma das dificuldades do sistema o número exíguo de juízes e de tribunais no país. Parece-nos, pois, que este é outro indício de que o inquérito não foi bem desenhado e aplicado ou que seus resultados não foram devidamente interpretados. Em termos gerais, é crítico o facto do relatório ser extremamente pobre no uso do numeroso material bibliográfico, dados estatísticos e outros resultados de pesquisa que está disponível sobre uma boa parte dos assuntos nele tratados, para complementar e aprofundar as suas abordagens. Ao longo do texto, não há revisão bibliográfica séria acerca de nenhum dos assuntos abordados; os poucos trabalhos citados são, em geral, para clarificações conceptuais, e, nos poucos casos em que se usa o seu material analítico são citados extensamente e 2Centro de Integridade Pública, ‘Relatório do MARP não deve ser aprovado sem uma revisão profunda’, transcrito integralmente em http://oficinadesociologia.blogspot.com/2008/03/relatrio-domarp-no-deve-ser-aprovado.html acedido em 29 de Abril de 2008. 5 literalmente, sem qualquer discussão. Os diversos trabalhos produzidos por investigadores, moçambicanos e estrangeiros, organizações internacionais e pelo governo acerca dos assuntos abordados no relatório são raramente mencionados, com um claro desperdício do esforço intelectual que todos têm feito para entender o país. Com a excepção de inquéritos realizados pela UTRESP e USAID acerca da corrupção no país, os inquéritos já numerosos inquéritos de opinião realizados no país ao longos dos últimos dez anos, como por exemplo o Afrobarometer, estão ausentes. Estatísticas, sejam elas governamentais ou de organizações internacionais, também não são sistematicamente utilizadas. 5. Questões de conteúdo 5.1. Questões Gerais A falta de equilíbrio na abordagem das diferentes temáticas é notória, sem que para isso se percebam a justificação. Por mais que entendamos que o tema da prevenção e redução de conflitos seja extremamente relevante, os autores do relatório consideram que as possibilidades de conflito violento são poucas “(...) a paz tornou-se numa realidade irreversível (...)”, (p. 5), ou“(...) A paz alcançada em 1992 continua a apresentar sinais seguros de durabilidade (paz duradoira), embora se reconheça que não é ainda a que seria de desejar. Com efeito, o país se ressente de espectros de violência física e estrutural que impedem que todos moçambicanos consigam desfrutar a paz da mesma maneira do Rovuma ao Maputo (...)”, (p. 37), e por isso seria mais razoável dedicar maior espaço a outras questões, em relação às quais parece haver menos certeza sobre as suas dimensões e contornos, como, por exemplo, a “promoção e defesa dos direitos das mulheres” ou a “corrupção”. 5.2. Questões específicas Abordaremos agora, para cada um dos capítulos do relatório, algumas das principais omissões, contradições e problemas que vemos no documento. 6 5.2.1. Introdução O cartão de visitas do relatório é pouco convidativo. Para introduzir as restantes 267 páginas, o relatório dispõe de apenas duas páginas, as quais tem como pórtico uma definição de democracia deveras peculiar (ver acima). A preferência por aquela a outras definições mais precisas, claras e acessíveis, é um indício da fraqueza da análise que o relatório desenvolve sobre o processo político moçambicano. Na sequência, para apresentar os princípios-chave da (nova) democracia moçambicana, os autores preferiram citar a Agenda 2025, um documento importante mas não vinculativo do Estado, ao exposto na Constituição da República de 2004, que é o elemento fundamental do sistema jurídico-político moçambicano. A questão da democracia em Moçambique é uma dos pontos mais salientes de debate e divisão no seio da sociedade moçambicana. Os autores evitam enfrentar o problema advogando uma interpretação linear que evacua o problema e segundo a qual a democratização moçambicana começou com a independência do país, representando a Constituição de 1990 apenas o marco da instituição duma nova forma de democracia, a “democracia liberal”. 5.2.2. Prevenção e redução de conflitos intra- e inter-estatais Guerras e conflitos têm estado entre os maiores travões ao desenvolvimento dos países africanos. Desde o início da luta pela independência (1962) até 1992, a maioria dos moçambicanos viveu os efeitos da guerra no seu quotidiano. Centenas de milhar de pessoas morreram, as actividades produtivas e infra-estruturas foram seriamente comprometidas. Nesta perspectiva, o relatório faz bem em destacar a importância e esperança que os moçambicanos depositam na manutenção da paz. Contudo, as guerras e conflitos raramente se iniciam por plebiscito, mas sim porque determinados grupos se mobilizam através de formas violentas, por exemplo, em torno de desigualdades estruturais (riqueza, renda, acesso a recursos naturais) ou de questões identitárias. O capítulo é bastante contraditório, oscilando entre o tom celebratório da paz (p. 5) e a cautela sobre o futuro (pp. 12 e 15). Assim, pode-se ler que “Privilegia-se o diálogo na busca de soluções das diferenças, divergências de opinião e tensões políticas (...)” (p. 5), para 7 algumas páginas depois se apontar como um dos factores podendo pôr em causa a paz a “(...) ausência de diálogo permanente entre vários actores políticos (...)” (p. 12). O relatório enumera quinze possíveis factores de ameaça à paz no país (pp. 12-13), dentre os quais questões como desigualdades regionais e de riqueza, pobreza, desemprego, corrupção, expropriação das terras e acesso a recursos naturais. A exclusão social, o acesso à água, o modelo de desenvolvimento, os “homens armados” da RENAMO, o desemprego e os desequilíbrios regionais foram escolhidos para debate. Porém, este mostra-se curto e fraco. Diz o texto que todos, elites (quais foram as elites entrevistadas?) e entrevistados (comuns, supõe-se), consideram a exclusão social um problema que deve ser seriamente tratado. Não há nenhuma análise, nem dados, sobre a exclusão social, as suas especificidades e contornos. No caso do acesso à água (p. 14), diz-se que a água é fonte primária da vida, que tem sido uma das causas primárias de conflitos intra e inter-estatais (exemplos não são citados), o mesmo ocorrendo em Moçambique (afinal, está o país em paz ou há conflitos frequentes?). Quando se espera um aprofundamento da análise, o relatório passa para o problema seguinte, o modelo de desenvolvimento. Não obstante a grande quantidade de literatura disponível sobre o assunto, o texto é superficial, com afirmações simplistas (“tudo está mercantilizado”) e frases pouco claras como, por exemplo, “uma tendência crescente de liberalização da maioria das actividades públicas” (p. 14). Teria sido talvez intenção dos autores reclamar da privatização de empresas estatais ou algo parecido, mas é de sublinhar aqui a frequente falta de rigor na apresentação das ideias ao longo do relatório. As demais ameaças à paz são também tratadas sumariamente e no final do capítulo o tom celebratório e profético retorna: nos próximos 50 anos não há espaço para a guerra no país, a não ser que tal se dê por motivações de forças externas e na África Austral não há espaço para conflitos armados (p. 16). 8 5.2.3. Democracia constitucional, incluindo competição política periódica e oportunidade de escolha, Estado de Direito, direitos dos cidadãos e supremacia da Constituição A segunda temática do relatório avança uma discussão sobre as instituições formais da democracia moçambicana, o texto constitucional, os processos eleitorais e o Estado de Direito. O capítulo apresenta o quadro legal do país, ou melhor, lista alguns direitos fundamentais assegurados na Constituição, assim como enumera as instituições responsáveis pela sua proteção (tribunais, Ministério Público). No entanto, não há referência aos vários acordos internacionais assinados por Moçambique.3 No tópico referente às expectativas dos cidadãos em relação à governação democrática, listam-se, novamente, opiniões sobre o assunto (quadros do Estado ligados ao sector da justiça e um representante do Estado). Mencionam alguns as dificuldades de se gerir um sistema político importado (a democracia), ao que os autores do texto respondem (supomos, pois não é claro quem está opinando), de maneira um tanto peculiar: “(...) Numa reflexão comparativa, e por outro lado, o cidadão sente que os princípios da vida individual e colectiva do modo de ser e estar do Africano são mais inclusivos que do mundo Ocidental, pois pressupõem um direito que pode ser mais abrangente num sistema onde existe o espaço para “eu, ele e nós”, onde os recursos naturais, como a terra e as águas, constituem um bem comum que não pode ser privatizado para uso de poucos; enquanto que os princípios do sistema Ocidental são exclusivos, “ou eu ou ele”(...)” (p. 43). Sendo embora este um terreno sobre o qual seria interessante aprofundar a discussão, a abordagem veícula numa versão elementar e esterotipada sobre uma natureza essencial (e essencialmente distinta) das sociedades “africana” e “ocidental”, abolindo toda a sua realidade histórica e social. É neste contexto que a Constituição de 2004 é apontada como seguindo um modelo mais africano, pois nalguns dos seus artigos reconhece as autoridades tradicionais. Ora, a inclusão das autoridades tradicionais na governação do país é assunto há anos debatido e há muitas vozes discordantes acerca de quão “africano” é tal processo. A oposição entre o tradicional e o externo-importado desde há muito cedeu espaço a considerações acerca de como os dois elementos têm interagido ao longo dos anos e como determinados grupos se têm aproveitado da situação para benefício próprio. O relatório 3 Para detalhes, ver o relatório da AfriMAP, Democracia e Participação Política em Moçambique, Maputo, CEDE/OSISA, (no prelo). 9 assume uma posição de princípio, evitando a análise das dinâmicas históricas, da confrontação de conflitos e interesses de diferentes grupos sociais. O texto segue citando uma série de opiniões onde se refere a existência de instituições democráticas no país (leis, tribunais, partidos, etc.), mas ao mesmo tempo se aponta para o seu funcionamento precário. Neste contexto, pouca atenção é prestada aos aspectos institucionais, uma vez que o problema não seria institucional, mas prático: “(...) Do ponto de vista normativo, o sistema político corresponde ao que se espera do sistema democrático”(...) (p. 45). No entanto, é sabido que as próprias instituições formais que articulam a prática democrática em Moçambique não são perfeitas e que haveria necessidade de uma série de reformas legais necessárias.4 O tom do relatório pode induzir a pensar que as instituições formais não importam, o que seria um equívoco, não só normativo como técnico, uma vez que se conhece o importante papel que as instituições, formais e informais, têm no processo de desenvolvimento e de democratização. O relatório aborda um aspecto muito importante, o sistema eleitoral vigente no país, baseado em representação proporcional e listas partidárias, e avança que este estaria por detrás de uma parte da abstenção observada nas últimas eleições. Contudo, a discussão que se segue é nula. Não há referência à necessidade de eventuais mudanças (representação proporcional em listas vs. representação uninominal, ou vs. sistema misto), mas somente uma explicação do sistema. Não é discutida a possibilidade de se mudar o sistema e, mais importante ainda, não é abordado o que pensam os partidos políticos e os cidadãos sobre o assunto? Ainda discutindo a abstenção, um dos mais preocupantes problemas que afectam a democracia moçambicana, os autores listam vinte e uma hipóteses para explicá-la, todas extraídas de um trabalho da antropóloga Iraê Lundin.5 De facto, a extensão da citação chega a ser constrangedora, uma vez que, no livro publicado, o trecho ocupa quase sete páginas. Embora seja digno de elogio o facto dos autores terem feito uso de literatura especializada, o que não é frequente no relatório, seria no entanto de esperar uma maneira mais adequada de fazer a utilização da referência, para não dar a ideia de uma simples e preguiçosa colagem. 4Ver o relatório da AfriMAP, Democracia e Participação Política em Moçambique, Maputo, CEDE/OSISA, (no prelo). 5 Iraê Baptista Lundin, “Eleições Gerais 2004 – Um Eleitorado Ausente”, in Brazão Mazula (dir). 2006. Moçambique: Eleições Gerais 2004, Um Olhar do Observatório Eleitoral, Maputo, Imprensa Universitária, pp. 91-97. 10 O texto está errado ao dizer que a necessidade de os partidos obterem, no mínimo, 5% dos votos expressos a nível nacional para terem direito a assento na Assembleia da República foi substituída por uma cláusula de barreira de 2% (p. 48), quando o que se verificou foi a total abolição da cláusula de barreira (arts. 161-165, Lei n.º 7/2007, de 26 de Fevereiro). Quando se refere ao Observatório do Desenvolvimento (antigo Observatório da Pobreza), o relatório diz que o mesmo, criado pelo Governo, foi uma conquista da sociedade civil, o que nos parece um tanto ilógico. Depois, o texto fala do G-20 sem o relacionar com o Observatório, quando resta patente que seu nome deste grupo de organizações da sociedade civil deriva dos 20 lugares atribuídos à sociedade civil no Observatório (onde esta é acompanhada por 20 membros do Governo e 20 membros dos parceiros de cooperação). Por importante que o Observatório seja para a monitoria da governação, o mesmo tem sido criticado6 , mas estas críticas não foram tomadas em consideração no texto, que nada diz acerca do potencial e limites desta organização. No tópico referente à garantia do Estado de Direito e supremacia da Constituição há uma lista de artigos das duas últimas constituições do país e assegura-se que a supremacia da Constituição é clara no país. Porém, a relevância dos tratados internacionais no quadro jurídico do país é ignorada. Ora, o art. 18, no 1, da Constituição afirma que “(...) Os tratados e acordos internacionais, validamente aprovados e ratificados, vigoram na ordem jurídica moçambicana após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado de Moçambique (...)”, enquanto que o no 2 do mesmo refere que “(...) As normas de direito internacional têm na ordem jurídica interna o mesmo valor que assumem os actos normativos infra-constitucionais emanados da Assembléia da República e do Governo, consoante a sua respectiva forma de recepção”. A omissão torna-se mais grave quando vemos que o próprio texto constitucional estipulou excepção a essa hierarquia, nomeadamente em relação à Declaração Universal dos Direitos Humanos e à Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, às quais foi consagrado status de normas fundamentais do ordenamento jurídico moçambicano, verdadeiras pedras de toque da ordem jurídica do país. Assim, o art. 43 da Constituição estabelece que “(...) os preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais são interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Carta Africana dos Direitos do Homem e 6 Antonio Francisco e Konrad Matter, Poverty Observatory in Mozambique, http://www.iese.ac.mz/lib/af/POMOZ_Phase3_Finalreport_30April2007.pdf, acedido em 5 de Maio de 2008. 11 dos Povos”, ao passo que o no 2 do art. 17 fixa que “(...) A República de Moçambique aceita, observa e aplica os princípios da Carta da Organização das Nações Unidas e da Carta da União Africana”.7 Na discussão sobre a descentralização, em suas vertentes desconcentradora e de devolução política, a discussão comete alguns erros. De início, o texto informa de forma algo confusa que “(...) o que é comumente chamado de descentralização em Moçambique é avaliado pelo cidadão pelas duas vertentes (descentralização e desconcentração), que se interligam, no âmbito da definição de conceitos, criando alguma confusão para uma análise mais científica (...)” (p. 73) e propõe-se a trazer alguma luz ao assunto. No entanto, tal não é o caso. Primeiro, os autores afirmam que as autarquias são tuteladas politicamente, o que nos parece ser incorrecto. Depois, dizem que a “(…) a descentralização, como devolução de poderes, criou em Moçambique os órgãos locais (...)” (p. 74), o que é igualmente incorreto, pois os órgãos locais do Estado existem desde a Independência. O que o processo de devolução em curso no país criou foi o poder local, as autarquias, politicamente autónomas do centro do poder político nacional, e não a representação do poder central nas esferas locais. Ao longo do texto, por várias vezes há confusão entre o poder local (uma noção que deveria ser reservada ao poder localmente eleito) e os órgãos locais do Estado (p. 76 e ss.). Os autores referem que o princípio da legitimidade ao nível do poder local está “(...) assente no facto de todos os cidadãos dentro dos limites da municipalidade terem o direito de participar no processo de eleger e ser eleito.” (p. 76) e continuam afirmando que “O direito é universal, directo, igual e pessoal, através do voto secreto (...)” (sublinhado nosso) (p. 76). Ora, um direito universal nos limites da municipalidade parece estranho... Pelo contrário, o que tem acontecido em Moçambique – e isso é que deveria ser salientado pelo relatório - é que alguns são “mais cidadãos” que outros, ou seja, possuem direitos políticos mais amplos. Na verdade, alguns (os que vivem nas poucas áreas definidas como municípios), dispõem do direito de voto nas eleições nacionais, provinciais e locais, ao passo que um grande número de cidadãos moçambicanos está privado do direito de eleger os seus representantes locais. Tal é, de imediato, a consequência lógica da adopção do princípio do gradualismo na formação dos municípios, que implica uma extensão gradual e não imediata de direitos políticos. 7 De notar que o art. 17, nº 2, da Constituição de 2004 reproduz um artigo constante já da Constituição de 1975, que assim afirmava em seu art. 23 “A República Popular de Moçambique aceita, observa e aplica os princípios da Carta da Organização das Nações Unidas e da Organização da Unidade Africana”. 12 Porém, o problema é mais grave – e aqui se colocaria mesmo uma questão de constitucionalidade – pois, com as actuais disposições legais sobre a formação das autarquias, uma parte dos cidadãos ficaria sempre privada do acesso a esta forma de poder local e aos direitos que lhe estão associados. 5.2.4. Promoção e defesa dos direitos económicos, sociais e culturais, e dos direitos civis e políticos, conforme estipulado nos instrumentos africanos e internacionais de direitos humanos Este capítulo começa com uma lista (um tanto confusa) de várias possíveis definições de direito, a qual, contudo, a ser incluída no relatório, deveria sê-lo no capítulo anterior, onde a discussão do sistema jurídico moçambicano se iniciou. Depois, passa-se a discutir os vários direitos humanos constantes da ordem jurídica moçambicana, verificando-se se os moçambicanos, afinal, conhecem seus direitos. Os instrumentos africanos e internacionais de direitos humanos, supostos objetos do capítulo, são discutidos somente marginalmente. A discussão também é breve em relação aos vários direitos civis, políticos, económicos, sociais e culturais, e pouco acrescenta ao que já é de conhecimento geral. Por exemplo, se o relatório regista a questão da superlotação das cadeias, não presta nenhuma atenção as péssimas condições de higiene e salubridade, que caracterizam o sector prisional em Moçambique e que têm graves implicações na área da saúde e nomeadamente do HIV-SIDA. Igualmente, se o relatório fala da corrupção da polícia, já não foca os inúmeros casos de prisão e detenção arbitrária de cidadãos por elementos da polícia que têm sido reportados na imprensa, assim como pelas organizações dos direitos humanos. Aqui, o relatório da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (LDH) de 2007 teria sido de grande utilidade8 . 8 Ver http://portuguese.maputo.usembassy.gov/uploads/images/I2Kjl9RF856VL2SzEp7- iQ/mdireitosh2007.pdf, acedido em 5 de Maio de 2008. Para detalhes sobre a Liga, consultar a sua página na internet http://www.ldh.org.mz. 13 5.2.5. Manter a separação de poderes, incluindo a defesa da independência do poder judicial e do poder legislativo eficaz O capítulo, depois de um introdução algo problemática sobre alguns aspectos do direito internacional e da sua relação com a ordem jurídica interna, avança para a discussão desta última. Novamente, há uma extensa lista de artigos de lei, detalhando as definições, competências e composição das diversas instituições democráticas do país. No final da lista (de quase 10 páginas), há meia página de comentários onde pouco é dito. Faltou, por exemplo, um debate mais aprofundado acerca do que alguns consideram o excesso de poderes concedidos ao Presidente da República, com grandes implicações nas relações entre o poder executivo e o legislativo. Na sequência, contudo, há um aprofundamento do debate, e digno de nota positiva é o espaço dedicado à discussão acerca da interferência do poder executivo nas actividades do poder judiciário (pp. 128-140). De facto, o sector da justiça recebe um tratamento condizente com sua importância nas páginas que se seguem (pp. 140-145). Finalmente, no final do capítulo, a Assembleia da República recebe atenção, e várias críticas são tecidas aos deputados, seu potencial e empenho. Infelizmente, não há no capítulo referência a entrevistas com deputados, mas somente às usuais “entidades de Estado” e “entidades da sociedade civil”. Aqui, recupera-se a discussão acerca do sistema eleitoral vigente, principalmente no tocante às listas partidárias, que afastariam os deputados de seus eleitores e os prenderiam aos aparelhos dos partidos. Novamente, no entanto, não se debatem as alternativas ao presente modelo. 5.2.6. Assegurar entidades e funcionários públicos responsáveis, eficientes e eficazes Afastando-se da discussão propriamente política, o presente capítulo discute aspectos relacionados com o funcionamento da máquina estatal, da administração pública e da provisão de serviços públicos. Há, de início, um debate um tanto estéril acerca de várias teorias que discutem a administração pública, pois é pouco importante e de pouco uso na discussão que se segue. Esperava-se que os padrões e práticas à luz dos quais a administração pública moçambicana deveria ser julgada, pelo menos no caso do Mecanismo Africano de Revisão de Pares, seriam encontrados não em teorias, mas nos tratados e documentos regionais e internacionais assinados pelo país, assim como na legislação nacional. Nesta 14 perspectiva, a introdução de teorias sobre a administração pública parece pouco adequada e produtiva. Felizmente, no correr do texto, são as normas e padrões internacionais e nacionais que dominam o relatório, com o quase total esquecimento das teorias anteriormente referidas. O texto cita os Objetivos do Desenvolvimento do Milénio e o NEPAD, assim como a Convenção das Nações contra o Crime Organizado Internacional. Inútil repisar que discussão não houve, mas citação de alguns dos artigos presentes na Convenção (pp. 159-163). Como se carecesse o texto de listas, seguem-se mais enumerações, a saber: a) dispositivos que constam da estratégia de reforma do sector público; b) princípios constantes do Decreto nº 30/2001, de 15 de Outubro, que estabelece as normas e princípios de funcionamento da administração pública; c) estruturação (definição, competências, composição) dos órgãos locais de Estado (no caso, província, distrito, posto administrativo e localidade); d)normas que regulam o processo de desconcentração. No final do capítulo, há referência às dificuldades enfrentadas nos processos de desconcentração e descentralização e comentam-se alguns problemas, como a falta de recursos humanos e materiais nos municípios e distritos, assim como a falta de capacitação adequada. Mais adiante, fala-se também das dificuldades e melhorias observadas nos serviços públicos, discussão esta que é de considerável abrangência e qualidade em comparação com o restante do documento. 5.2.7. Corrupção Este é um dos mais importantes tópicos do relatório, pois há muito se discute quais seriam as características, o impacto e a extensão de práticas corruptas no país, com debates sempre acalorados sobre o assunto. De início, o relatório afasta-se de discursos negacionistas, que afirmam não haver corrupção no país (argumento que se funda na ausência de casos de corrupção julgados...), observando que “(...) Em Moçambique, a pequena corrupção observase mais naqueles sectores que lidam directamente com o público, com destaque para os sectores da educação, saúde, polícia de trânsito e justiça. (...) Por seu turno, a grande corrupção envolve pessoas influentes que lidam com ‘dossiers’” (p. 197). Corrupção há, portanto, e cabia ao relatório discuti-la. E o texto é parcialmente bem-sucedido neste tópico, principalmente se comparado ao restante do relatório. Primeiramente, diferentemente de 15 outros tópicos, o texto menciona duas das mais conhecidas pesquisas sobre o assunto, um inquérito de opinião pública conduzido pela UTRESP, e outro estudo semelhante conduzido pela USAID. Em nota de rodapé, mostra que sabe da existência e dos estudos publicados pelo Centro de Integridade Pública (CIP). Em segundo lugar, os autores mencionam e listam, de maneira organizada e sistemática, a legislação nacional e os tratados internacionais que fazem parte do ordenamento jurídico moçambicano sobre corrupção, assim como discutem se tal legislação tem sido aplicada. Também, debatem as instituições de combate à corrupção existentes, seus limites e potenciais. O texto sublinha que existem poucos estudos sobre o fenómeno e destaca a falta de rigor científico de muitas pesquisas. Infelizmente, apesar de haver uma nota de rodapé bastante elogiosa sobre o CIP, as suas várias pesquisas não são usadas, nomeadamente vários estudos recentes sobre corrupção sectorial (nas alfândegas, no sector da Justiça, no sector da Educação, no sector da Saúde9 ) e a análise crítica feita à Estratégia do Governo de Combate à Corrupção10. Em todos estes estudos, há dados bastante relevantes, assim como recomendações e propostas, que poderiam ter sido aproveitados pelos autores do relatório, principalmente porque o texto aborda explicitamente a corrupção em várias destas áreas já pesquisadas pelo CIP. 5.2.8. Promoção e defesa dos direitos das mulheres Como destacado anteriormente, a questão da igualdade de gênero recebeu um tratamento muito precário no relatório. A equipa reconheceu a importância do assunto, mas demonstrou desconhecimento sobre os debates que se desenvolvem em torno dele. Em termos legais, o texto cita os dispositivos constantes na Constituição da República, mas esquece-se de debater as normas ainda válidas que discriminam as mulheres, principalmente aquelas constantes no Código Penal e na Lei das Sucessões. Em termos de direito internacional, há total ausência de informação, e o relatório não cita que o governo ratificou a Convenção para a Erradicação de 9 Marcelo Mosse e Edson Cortez, 2007. Corrupção e Integridade nas Alfândegas de Moçambique, Uma avaliação das boas práticas, Documento de Discussão nº 5, CIP; Adriano Nuvunga, Marcelo Mosse e César Varela, Relatório do Estudo sobre Transparência, Áreas de Riscos e Oportunidades de Corrupção em Seis Autarquias Moçambicanas, Maputo, CIP; Marcelo Mosse, 2006. A corrupção no Sector da Justiça em Moçambique, Maputo, CIP; Marcelo Mosse e Edson Cortez, 2006. A Corrupção no Sector da Saúde em Moçambique, Maputo, CIP; Marcelo Mosse e Edson Cortez, 2006. A Pequena Corrupção no Sector da Educação em Moçambique, Maputo, CIP. 10 Marcelo Mosse, 2006. Breve Análise à Estratégia Anti-Corrupção do Governo, Maputo, CIP. 16 Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), tendo, recentemente, apresentado seu primeiro relatório (com atraso) ao órgão responsável pela monitoria da Convenção. Na esteira deste relatório, a WLSA (Women and Law in Southern Africa) manifestou-se em relatório-sombra, no qual debate as carências do texto apresentado pelo Governo de Moçambique. Ambos os documentos são ricos em informação, e deveriam ter sido consultados. O texto não fala sobre o Anteprojeto de Lei contra a Violência Doméstica, cuja aprovação vem desde há muito sendo defendida pelo Fórum Mulher e por outras organizações, e a discussão sobre a violência doméstica não passa de sete linhas. Para além das omissões acerca dos instrumentos legais, o texto não debate as diversas dificuldades enfrentadas pelas mulheres, sejam elas na esfera pública ou privada, assim como não menciona os diferentes problemas económicos, sociais e culturais existentes em relação ao género. Tal carência não pode ser imputada à falta de material. A WLSA tem publicado extensamente sobre o assunto, e há vários livros publicados sobre o tema11. Também, se esquece de questões que estão diariamente nos jornais, como os debates sobre a feminização da pobreza e a cada vez maior incidência do HIV-SIDA no seio das mulheres. Neste último aspecto, o Relatório Nacional de Desenvolvimento Humano de Moçambique de 2007, que discutiu o impacto do HIV-SIDA no país, fez questão de dedicar um de seus capítulos à questão do género e HIV-SIDA. Segundo estatísticas citadas no texto (oriundas do INEMISAU), a proporção de infecção entre mulheres e homens está na ordem de 57% para 47%, sendo que, em jovens entre 15 e 24 anos, a seroprevalência feminina é duas vezes maior que a masculina.12 No tocante à participação da mulher nos órgãos de tomada de decisão, há uma tabela relativa a diversos cargos, a qual, contudo, está bastante desactualizada, pois é referente a 2003. Ora, sabendo-se da importância do relatório, os pesquisadores poderiam ter requerido informações mais actualizadas, ao menos em relação aos principais cargos. No que se refere às acções governamentais na área, estas são vistas superficialmente, uma vez que, em não havendo debate sobre os problemas, pouco poderia ser dito sobre as acções que têm sido promovidas para resolvê-los e sobre as áreas em que devem ser envidados maiores 11Merece destaque: Rachel Waterhouse e Carin Vijfhuizen (dir). 2001. Estratégias das Mulheres, Proveito dos Homens, Género, terra e recursos naturais em contextos rurais em Moçambique. Maputo, Imprensa Universitária. 12 UNDP, (2007). Moçambique, Relatório Nacional do Desenvolvimento Humano 2007, Desafios e Oportunidades: A resposta ao HIV e SIDA, p. 32. 17 esforços. Cita-se o Ministério da Mulher e da Ação Social (MMAS), mas não se aborda a sua actuação, a sua forma de funcionamento, nem as políticas públicas que têm adoptado. Uma simples visita ao website do Ministério (www.mmas.gov.mz) teria auxiliado os investigadores a familiarizarem-se com o trabalho do Governo de uma maneira mais acurada. Outro aspecto que foi constantemente ignorado no relatório, mas que seria essencial para se avaliar o comprometimento do Governo na realização de suas promessas, relaciona-se com a análise do Orçamento do Estado. Essa análise permitiria verificar até que ponto o discurso governamental acerca de prioridades tem sido acompanhado de recursos. 5.2.9. Promoção dos direitos da criança e do jovem A alta taxa de mortalidade e a baixa expectativa de vida (menos de 50 anos), quando aliadas a uma alta taxa de fertilidade (em 2005, a taxa geral de fertilidade situava-se em 5,4), têm contribuído para que a população moçambicana continue a aumentar e seja constituída principalmente por jovens. Em 2005, cerca de 60% da população era formada por pessoas com idade inferior a 24 anos, com 16% entre 0-4 anos.13 Em vista disto, era de esperar que o relatório se debruçasse seriamente sobre a promoção dos direitos das crianças e dos jovens. Saliente-se também que a UNICEF e o Ministério da Planificação e Desenvolvimento (MPD) publicaram, em 2006, um relatório sobre o assunto, o qual poderia facilmente ter servido de ponto de partida aos investigadores.14 Novamente, porém, o texto nos decepciona. De início, há mais de quatro páginas de debate teórico-conceptual que, se não totalmente dispensável, poderia ter dado lugar a discussões mais pertinentes (pp. 228-232). A questão do abuso sexual, um dos problemas mais sérios em qualquer sociedade, recebe quatro páginas de atenção, nas quais vários problemas são mencionados e poucos são seriamente debatidos. No estudo da UNICEF e do MPD (p. 190), fica claro que o abuso sexual contra as crianças é frequente, afligindo principalmente as raparigas maiores de 15 anos de idade, matriculadas nos níveis mais baixos de escolaridade (EP2) e que não vivem com os pais. Ao discutir-se a falta (sic) de educação das crianças, dedica-se meia página a listar as possíveis causas para tanto, e nada mais é dito. As características da situação educacional das 13 http://www.ine.gov.mz/populacao/indicadores/Document.2007-05-23.1452175057, acedido em 2 de Maio de 2008. 14 O documento está disponível no website da UNICEF-Moçambique, http://www.unicef.org/mozambique/resources_3018.html, acedido em 2 de Abril de 2008. 18 crianças e jovens (diferenças de género, diferenças entre regiões do país e entre zonas rurais e urbanas, taxas de abandono e de repetência, aspectos quantitativos e qualitativos do processo educacional) não são abordados. Mesmo na discussão das causas, o texto pouco acrescenta, conforme podemos constatar quando este é comparado com semelhante discussão constante do estudo da UNICEF e do MPD. Em dado momento, os autores dizem que “(…) a mentalidade das pessoas é que a escola ainda custa dinheiro (...)” (p. 235), ignorando que tal não é só uma questão de mentalidade, mas um facto concreto, seja no sistema público, seja no sistema privado, pois: a) os materiais escolares são caros (livros, roupas); b) a criança, estando na escola, não pode trabalhar, o que implica que a família perde uma eventual fonte de rendimento. Outras possíveis causas não mencionadas (mas referidas no relatório da UNICEF e MPD) incluem: a) os assuntos tratados no currículo podem ser muitas vezes pouco relevantes para o dia-a-dia dos alunos e a suas perspectivas de futuro, fazendo com que estes desistam da escola; b) distância até à escola e precárias condições das infra-estruturas; c) baixa qualidade do ensino; d) violência e abuso nas escolas. Os demais tópicos abordados nesta parte do relatório, isto é, prostituição infantil, trabalho infantil, falta de emprego e habitação, assim como as políticas do governo sobre o assunto, não serão aqui discutidos, principalmente em vista de terem sido exaustiva e competentemente debatidos no relatório da UNICEF e MPD. 5.2.10. Promoção e defesa dos direitos de grupos vulneráveis, incluindo deslocados e refugiados O capítulo final do relatório é também pouco animador, apesar de discutir um importante assunto. Grupos vulneráveis possuem, em regra, pouco poder de mobilização e tendem a receber pouca atenção do Estado e das suas instituições. Politicamente pouco significativos, o destino destes grupos é geralmente deixado nas mãos de instituições de caridade. Em Moçambique, os anos de guerra civil e a dramática situação económica do país fizeram da vulnerabilidade uma característica de muitos grupos sociais, desde viúvas até mutilados de guerra. Para lidar com o assunto, existe o já mencionado Ministério da Mulher e da Acção Social, o qual, contudo, possui recursos bastante escassos para fazê-lo. O relatório destaca algumas iniciativas governamentais na área, mas não consegue avançar na discussão. Algumas áreas recebem desmesurada atenção no curto espaço dedicado ao tema 19 (por exemplo, deficientes visuais), enquanto outras praticamente não são tocadas (outros deficientes que não visuais, pessoas mutiladas). No tocante aos idosos, o texto imputa parte da falta de assistência que estes recebem ao facto de “(...) vivermos numa época onde a degradação dos valores morais é extremamente elevada.” (p. 262). Ora, explicar-se a situação do idoso com recurso a problemas de degradação moral não parece analiticamente satisfatório. E mesmo se tal fosse o caso, cabe ao Estado ajudar estes grupos, e a moral da época (assumindo que ela exista) não pode servir de desculpa para a situação dos idosos. Discutindo a questão dos refugiados e exilados, o texto falha em oferecer dados atualizados sobre o número de pessoas refugiadas em Moçambique. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), ao final de 2005 existiam 4.015 pessoas exiladas e 1.954 refugiados em Moçambique).15 O trabalho do Instituto Nacional de Apoio ao Refugiado (INAR) não é analisado, mas com o escasso orçamento anual de que dispõe,17,109,940.00 Mt para 2008, provavelmente a sua actuação é bastante difícil. No tocante à liberdade de circulação e outros direitos dos refugiados e exilados, não há nenhuma referência no texto. Sabe-se16, porém, que, em Dezembro de 2004, o Governo iniciou a emissão de cartões de identificação para os refugiados e candidatos a asilo, os quais permitirão que estes procurem emprego, se matriculem na escola, abram contas bancárias e aluguem habitação.17 No entanto, o ACNUR observou que, não obstante a emissão dos cartões de identificação, o movimento dos refugiados dentro do país continua a ser limitado pelo Governo. Os refugiados têm que solicitar autorização para se deslocarem para fora do local em que se encontram registados, o que facilita a ocorrência de abusos e pedidos de subornos por parte dos funcionários.18 Para além disso,parece haver casos de imigrantes que, mesmo sendo possuidores dos requisitos necessários à obtenção do estatuto de refugiado, não têm usufruído deste benefício facilmente, principalmente em vista de dificuldades de natureza burocrática e à lentidão na tramitação de documentação. Maputo, Julho de 2008. 15Conforme as estatísticas do ACNUR, em http://www.unhcr.org/statistics/STATISTICS/4641be710.pdf, acedido em 9 de Abril de 2008. 16 As informações deste parágrafo foram retirados do relatório da AfriMAP, Democracia e Participação Política em Moçambique, Maputo, CEDE/OSISA, (no prelo). 17 Para detalhes, ver http://www.unhcr.org/news/NEWS/41d42e904.html, acedido em 9 de Abril de 2008. 18 Ver http://portuguese.maputo.usembassy.gov/relatrio_sobre_os_direitos_humanos_-_moambique_- _2006.html, acedido em 9 de Abril de 2008. 20

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