Economista desempregada chamava "burra, porca e puta" à filha, que pontapeava. Tribunal de primeira instância ilibou-a e a Relação condenou-a depois.
O que dissipou todas as dúvidas aos juízes do Tribunal da Relação de Lisboa foi o choro quase ininterrupto da criança, enquanto dizia: “Nunca pensei que ia ter uma mãe assim.”
Os pontapés e os insultos faziam parte da forma habitual de esta progenitora, economista de profissão mas sem emprego, se relacionar com a filha. A menina ainda nem quatro anos tinha quando começaram os maus tratos. E apesar de a vizinhança ter garantido em tribunal nunca ter ouvido nada, tanto o pai como a empregada doméstica asseguram ter presenciado muito daquilo de que se queixava a criança, hoje com 12 anos e a morar com o progenitor.
Chamava-lhe "porca, estafermo, nojenta, cabra", contou a menor quando prestou ao tribunal declarações para memória futura. E "puta" também, pelo menos duas vezes. Num depoimento que demorou meia hora, passada quase sempre a chorar, a menor, na altura com nove anos, relatou como tinha sido pontapeada ou agredida de outras formas por “coisas insignificantes”, “por tudo e por nada”. Por vezes batia-lhe na nuca, na cabeça, nas costas, na cara, e desferia-lhe palmadas no rabo, descreveu. Até num corredor de hotel a mãe lhe chegou a dar pontapés. Noutra vez ameaçou esmagar-lhe a cabeça contra a parede. E interná-la num colégio. O pai da criança também levava por tabela: segundo a menina, a mulher ameaçava bater-lhe e pô-lo fora de casa.
Acabou de facto por se ir embora, mas pelo seu próprio pé, e levando consigo as duas filhas do casal, esta e outra mais pequena. Tinham passado seis anos desde que haviam começado os maus tratos, dos quais o progenitor acabou por dar conta à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens. As crianças, porém, nunca foram ouvidas pela comissão, perante a qual a mãe reconheceu que gritava com a menina e por vezes a insultava. Negou as agressões e o processo aqui aberto acabou por ser arquivado.
Mãe diz que sofreu muito
Durante o seu julgamento por violência doméstica contra a filha, a agressora remeteu-se ao silêncio sobre as acusações de que era alvo, só tendo falado no final para dizer que, apesar de não o demonstrar, a situação lhe havia causado muito sofrimento.
Numa fase anterior do processo a economista assegurou, por escrito, que jamais tinha insultado, ofendido ou agredido física ou verbalmente as filhas, e que as imputações que lhe eram feitas de violência doméstica mais não eram do que uma tentativa do pai para ficar com a guarda das crianças em caso de divórcio. A ter chamado porca à menor, acrescentava, tê-lo-ia feito, entre outros motivos, por ela ainda usar fraldas aos nove anos de idade. A tê-la apodado de cabra, teria sido por a menina gostar de dar saltos no sofá, alegou.
Quando a ilibou, no Verão passado, o tribunal de Cascais fê-lo por não ter ficado provado, no entendimento dos juízes, em que circunstâncias ocorreram os factos. “Não é possível concluir que a arguida tenha excedido, o poder dever de correção/educação”, pode ler-se na sentença de primeira instância. “Por outro lado, o meio empregue no contacto físico também não permite concluir, por si só, pela inaceitabilidade da sua conduta à luz da consciência ético-social”, acrescentam os magistrados, segundo os quais não havia provas de que a progenitora tivesse humilhado e maltratado física e psiquicamente a menor.
Entendimento diferente da questão tiveram, porém, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, para o qual o pai das menores recorreu. Apesar da posição sustentada pelo Ministério Público na primeira instância, que pugnou também pela absolvição, os desembargadores da Relação concluíram recentemente que o Tribunal de Cascais se enganou: “De forma consciente e reiterada, a arguida colocou em risco, de modo relevante, a saúde física e psíquica da sua filha menor – tornando-a vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade enquanto ser humano, conduzindo necessariamente à sua ‘degradação’ enquanto pessoa.” Para isso contribuíram sobretudo as declarações para memória futura da vítima: “São de facto impressionantes, quer pela autenticidade quer ainda pelo facto de ressaltar o sofrimento ao descrever o comportamento da sua mãe para consigo e dizer ‘Nunca pensei que ia ter uma mãe assim’”.
A economista desempregada foi condenada a uma pena suspensa de dois anos de prisão e ainda a pagar à menor cinco mil euros de indemnização por danos morais pedidos pelo progenitor. Um montante que os juízes da Relação consideram ser baixo: “A quantia pedida pode considerar-se meramente simbólica, já que a reiteração da conduta da arguida durante largo período justificaria uma indemnização mais elevada. Não podemos olvidar que a ofendida neste caso é uma menor que, pela sua idade e ascendente que sobre ela tinha a sua mãe, estava numa situação particularmente indefesa.”
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