O
C.E.M.M. inicia hoje a publicação de partes de um manuscrito (Nova
Viseu – Hotel de 5 Estrelas) de autoria de Avelino Paulo Lourenço, um
antigo membro das Forças Armadas Portuguesas que cumpriu o serviço
militar obrigatório em Nova Viseu, nome como era conhecido antes da
independência de Moçambique o Centro de Reeducação de M’telela.
Nova Viseu – Hotel de 5 Estrelas
Por Avelino Paulo Lourenço
I
Partimos de Vila Cabral em meados de Novembro de 1971. Pernoitámos no Destacamento do Luangua. Era Dia de São Martinho. Eu e os meus companheiros comentávamos, “aonde estamos nós? em que sitio estamos nós?” Outros respondiam, “estamos na guerra e os nossos amigos na Metrópole a comerem castanhas, o chamado magusto, e água-pé”.
No dia seguinte pela manhã seguimos em direcção a Nova Viseu.
Atravessámos o Rio Lugenda. Chegámos a Nova Viseu ao fim
da tarde do dia 12, depois de 3 ou 4 dias de viagem. Na terra de
ninguém, os velhinhos que nos esperavam receberam-nos com grande alegria ao saberem que havia chegado a hora de se irem embora. Houve festa, batiam em bidões, em testos das panelas, faziam algazarra de contentes. Até uma câmara a imitar a RTP eles fizeram. Enfim, era a alegria para eles e a tristeza para nós.
Olhávamos em redor e víamos matas, floresta e morros: foi então que vimos e compreendemos alegria deles, pois era chegada a hora de deixarem aquela terra de ninguém. A tristeza para nós. Com 20 anos,
tínhamos de gramar aquele buraco que nem Judas dava com ele.
Água? Água só no rio. Apenas tínhamos o poço da mashamba que era onde lavávamos a nossa roupa. Tomar banho? Tínhamos uns bidões colocados em cima de uns paus com uma torneira. Abríamos a torneira e era assim que tomávamos banho, com a água muito quente. Pão? Era mais caganitas de rato que farinha.
No largo atrás do refeitório estava o morteiro 60 ou 80 não me lembro, rodeado de bidões cheios de terra para protecção dos militares no caso de sermos atacados pelo então inimigo. Mesmo ao lado estava a casa da ferrugem, como chamavam à oficina auto. Por detrás, estava o paiol cheio de material de guerra. As paredes eram em chapa de zinco. Bastava uma morteirada do inimigo e nós, os da Companhia, ficámos desfeitos em pó, mas graças a Deus isso nunca aconteceu.
Havia um destacamento a nosso cargo entre 70 e 100 km de Nova Viseu. O meu pelotão teve de ir para lá por dois meses. No momento do regresso, o meu Alferes estava muito doente. Sofria de paludismo e pediu para ser evacuado de helicóptero, o que lhe foi negado pelo comandante do batalhão por considerar que a coluna tinha de trazer um oficial. Foi então que o meu Alferes disse, não chego vivo a Nova Viseu! E foi verdade, encontrou a morte na picada de regresso a Nova Viseu. Passou a primeira Berliet e depois a segunda. A terceira Berliet onde ele vinha detonou uma mina. Morreu ele e o condutor que foi cuspido e caiu morto encostado a uma árvore. O meu Alferes ficou esmagado sob a Berliet. O meu grupo ficou desorientado e sem rádio para pedir socorro. Foi então que o condutor da frente ganhou coragem, indo sozinho a Nova Viseu para pedir socorro. Chorámos. A tragédia sucedera apenas ao fim de dois meses de termos chegado a Nova Viseu.
(continua)
Foto: Bandeira portuguesa hasteada no aquartelamento de Nova Viseu, Província de Niassa
Nova Viseu – Hotel de 5 Estrelas
Por Avelino Paulo Lourenço
I
Partimos de Vila Cabral em meados de Novembro de 1971. Pernoitámos no Destacamento do Luangua. Era Dia de São Martinho. Eu e os meus companheiros comentávamos, “aonde estamos nós? em que sitio estamos nós?” Outros respondiam, “estamos na guerra e os nossos amigos na Metrópole a comerem castanhas, o chamado magusto, e água-pé”.
No dia seguinte pela manhã seguimos em direcção a Nova Viseu.
Atravessámos o Rio Lugenda. Chegámos a Nova Viseu ao fim
da tarde do dia 12, depois de 3 ou 4 dias de viagem. Na terra de
ninguém, os velhinhos que nos esperavam receberam-nos com grande alegria ao saberem que havia chegado a hora de se irem embora. Houve festa, batiam em bidões, em testos das panelas, faziam algazarra de contentes. Até uma câmara a imitar a RTP eles fizeram. Enfim, era a alegria para eles e a tristeza para nós.
Olhávamos em redor e víamos matas, floresta e morros: foi então que vimos e compreendemos alegria deles, pois era chegada a hora de deixarem aquela terra de ninguém. A tristeza para nós. Com 20 anos,
tínhamos de gramar aquele buraco que nem Judas dava com ele.
Água? Água só no rio. Apenas tínhamos o poço da mashamba que era onde lavávamos a nossa roupa. Tomar banho? Tínhamos uns bidões colocados em cima de uns paus com uma torneira. Abríamos a torneira e era assim que tomávamos banho, com a água muito quente. Pão? Era mais caganitas de rato que farinha.
No largo atrás do refeitório estava o morteiro 60 ou 80 não me lembro, rodeado de bidões cheios de terra para protecção dos militares no caso de sermos atacados pelo então inimigo. Mesmo ao lado estava a casa da ferrugem, como chamavam à oficina auto. Por detrás, estava o paiol cheio de material de guerra. As paredes eram em chapa de zinco. Bastava uma morteirada do inimigo e nós, os da Companhia, ficámos desfeitos em pó, mas graças a Deus isso nunca aconteceu.
Havia um destacamento a nosso cargo entre 70 e 100 km de Nova Viseu. O meu pelotão teve de ir para lá por dois meses. No momento do regresso, o meu Alferes estava muito doente. Sofria de paludismo e pediu para ser evacuado de helicóptero, o que lhe foi negado pelo comandante do batalhão por considerar que a coluna tinha de trazer um oficial. Foi então que o meu Alferes disse, não chego vivo a Nova Viseu! E foi verdade, encontrou a morte na picada de regresso a Nova Viseu. Passou a primeira Berliet e depois a segunda. A terceira Berliet onde ele vinha detonou uma mina. Morreu ele e o condutor que foi cuspido e caiu morto encostado a uma árvore. O meu Alferes ficou esmagado sob a Berliet. O meu grupo ficou desorientado e sem rádio para pedir socorro. Foi então que o condutor da frente ganhou coragem, indo sozinho a Nova Viseu para pedir socorro. Chorámos. A tragédia sucedera apenas ao fim de dois meses de termos chegado a Nova Viseu.
(continua)
Foto: Bandeira portuguesa hasteada no aquartelamento de Nova Viseu, Província de Niassa
Nova Viseu – Hotel de 5 Estrelas
Parte II (conclusão) do manuscrito, «Nova Viseu – Hotel de 5 Estrelas» de autoria de Avelino Paulo Lourenço, um antigo membro das Forças Armadas Portuguesas que cumpriu o serviço militar obrigatório em Nova Viseu, nome como era conhecido antes da independência de Moçambique o Centro de Reeducação de M’telela.
Seguiram-se várias operações ao mato até que um dia houve uma operação a pé, como era costume. Os nossos soldados passaram pelo mesmo sítio. Um enfermeiro, que não era da nossa Companhia, pisou uma mina antipessoal e por baixo estava outra, anticarro. Ambas foram accionadas, morrendo o enfermeiro do qual apenas se encontrou metade de um pé. Morreu o radiotelegrafista que levava fitas de metralhadora HK21 enroladas ao pescoço, que explodiram por simpatia, ceifando a vida ao nosso companheiro que ficou logo sem pescoço. Eram mais dois mortos.
Entretanto, um cabo verdiano apaixonou-se por uma moçambicana. Ao regressar de uma operação, descobriu que a moça o havia traído. Ele perdeu a cabeça deu um tiro de G3 na moça. Julgando que a tinha morto, suicidou-se a seguir, disparando um tiro na garganta. A moça moçambicana havia sobrevivido.
E o tempo ia passando, até que o 1º Sargento Natal mandou um corneteiro de castigo para o mato. O rapaz trabalhava na secretaria, não tinha experiência do andar no mato em operações. A dada altura pisou uma armadilha. Ficou todo cheio de brechas profundas no corpo e foi evacuado para Vila Cabral em 00 horas. O hélio passou por Nova Viseu e eu fui até junto do rapaz. Assim que ele pôs os olhos em mim ainda a chorar, disse-me mas muito baixinho: Paulo, segura-me a mão. Correspondi ao pedido, e ele disse-me muito baixinho, pois dava os últimos suspiros:
- Paulo, eu não chego vivo a Vila Cabral.
Logo de seguida comunicam para nós que o Luís Filipe dos Santos havia morrido. Foi um pandemónio. Havia camaradas meus que queriam matar o 1º Sargento e ainda hoje não lhe perdoamos.
A caminho de Luatize, o Alferes Furtado do nosso destacamento pisou uma mina e ficou sem uma perna. O ex-furriel Ribeiro pisou outra e foi evacuado para a Metrópole. Foram guardas de honra atrás umas das outras. Não havia urnas. Éramos nós que fazíamos as urnas, com tábuas podres. Depois as urnas ficavam muito tempo à espera de transporte. Os corpos começavam a deitar cheiro. Como se sabe estava-mos num pais de altas temperaturas o que só desfavorecia.
Fome ? Fome era mato, como quem diz não havia comida a maior parte do tempo que estivemos em Nova Viseu, a pontos de estar na altura de se fazer uma coluna para nos reabastecer que as chuvas não deixaram o nevoeiro era tanto que veio um helicóptero com uns frangos para nós mas com o nevoeiro era tanto não deixou aterrar o helicóptero o mesmo lançou cá para baixo o que trazia, mas como o piloto não conseguia ver nada, tudo foi para muito longe de nós e foi um figo para a bicharada. Era a época do Natal se a memória não me falha e continuámos a comer salsichas com café. A certa altura o rancho era grão com qualquer coisa que não me lembro mas, era mais bicho do que grão. O cabo Pinho deu ordens para ninguém comer e ficarem todos em pé. Foi o levantamento de rancho. O Cabo Pinho foi de castigo para outra Companhia. Só voltei a vê-lo em 2015.
Chorei muito. Os meus camaradas de armas também sofremos muito naquele buraco e o tempo nunca mais chegava ao fim. Foram 18 meses a viver só com a bicharada. Um ficou mudo. Sei lá, tantas histórias que ficam por contar porque já lá vão 42 anos desde que regressámos, mas, ainda hoje sofremos. Quase que não queremos ouvir falar em Nova Viseu. Depois foi o nosso rendimento feito por uma companhia de açorianos. Rodámos para Milange. Aí, sim, foi a preparação para o regresso à chamada Metrópole.
Foto: Chegada da coluna miliar a Nova Viseu, Novembro de 1971, na qual seguia Avelino Paulo Lourenço.
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