terça-feira, 25 de abril de 2017

A ventura das ciências sociais


A imprevisibilidade da vida social faz com que seja muito difícil às ciências sociais fornecerem esclarecimentos conclusivos das coisas. Elas tentam, mas é difícil. Esta dificuldade foi muito bem reflectida por alguns filósofos que introduziram a noção de “sorte moral”. Ela refere-se a situações em que por mera sorte não sofremos as consequências de actos imorais por nós mesmo cometidos.
Quantas vezes, por exemplo, alguém não conduziu bêbado, adormeceu ao volante e, de repente, derrapou e foi embater num poste qualquer de luz? E quantas vezes não aconteceu que alguém, nas mesmas circunstâncias, fosse atropelar mortalmente uma pessoa? Na base de cada um desses desfechos esteve um acto irresponsável (conduzir em estado de embriaguês), mas só num caso é que as consequências desse acto têm a probabilidade de serem muito severas. A gente diz que o primeiro motorista é bem-aventurado e o segundo tem azar...
Na verdade, as coisas não são bem assim. Há um certo sentido em que a “sorte” é estruturalmente condicionada de tal forma que certos indivíduos têm maior probabilidade de estar do lado dos desfechos com consequências graves. Não é exactamente o caso da condução em estado de embriaguez, mas de certeza de muitas situações em que nos encontramos por via da forma como a sociedade nos define ou localiza socialmente. Por exemplo, a probabilidade de uma pessoa pobre se envolver em actividades criminosas de certo tipo é maior do que a de uma pessoa em melhores circunstâncias económicas.
Não se trata de justificar o envolvimento no crime tanto mais que entram em jogo muitas outras variáveis. Trata-se apenas de mostrar que a “sorte” pode ter razões estruturais profundas. O mesmo vale para pessoas afluentes. Já agora, a dimensão moral das “dívidas ocultas” pode não ser assim tão diferente de vários outros actos irrresponsáveis que cada um de nós comete no dia a dia...
Tudo isto veio-me à mente ao ler a notícia que reproduzo em seguida da autoria da Agência de Informação de Moçambique:
“PORTUGUÊS EXPULSO POR VIOLAR LEI DO TRABALHO
A Ministra do Trabalho, Emprego e Segurança Social, Vitória Dias Diogo, revogou, com efeitos imediatos, a licença de trabalho de um cidadão português de nome Carlos Miguel Borlido Nunes, por prática de assédio sexual e maus-tratos no local de trabalho contra trabalhadoras da empresa Instalações Electromecânicas do Norte, na cidade de Maputo, onde o visado trabalhava, desempenhando funções de gestor. Considera, a MITESS, que as atitudes de Carlos Miguel Nunes violam a Lei do Trabalho e a Constituição da República de Moçambique.”

Confesso que escolhi este exemplo por simpatia para com o pobre português. Ele é o caso das consequências graves naquele exemplo que dei mais acima. A sua nêmesis, a Ministra do Trabalho (parece que em Moçambique a função deste ministério é andar a perseguir estrangeiros e delcarar tolerâncias de ponto), nunca (suponho, mas não tenho a certeza) retirou a autorização de trabalho a um moçambicano que pratica “assédio sexual e maus-tratos no local de trabalho contra trabalhadoras”. Sei que a reacção de muitos aqui, sobretudo daqueles que se formam em direito sem nenhuma componente filosófica sólida nem consciência democrática apurada, vai ser de dizer que a culpa é inteiramente do português que conhecendo as circunstâncias em que recebeu a autorização do trabalho devia ser melhor comportado. Alguns até vão chegar ao ponto de sugerir que seja sintomático que trabalhadores portugueses (ou sul africanos) se envolvam constantemente neste tipo de problemas.
Pois. A nossa lei, e a nossa moral, constroiem estes indivíduos como as pessoas com maiores probabilidades de pisarem essa linha vermelha. O nosso país não está a atrair portugueses e sul africanos mal-criados. O nosso país está a “fabricar” portugueses e sul africanos mal-criados. De cada vez que uma Ministra do Trabalho “expulsa” (um termo muito problemático) um estrangeiro não está necessariamente a introduzir mais higiene nas relações laborais. Está apenas a usar gente vulnerável como bode expiatório para um problema criado pelas suas próprias leis.
Vivendo como estrangeiro eu próprio, sou muito sensível a este tipo de arbitrariedade jurídica. No nosso país pratica-se aquilo que todos os partidos da extrema-direita na Europa gostariam que fosse feito nos seus próprios países, mas não conseguem porque existe uma consciência cívica liberal que, apesar de tudo, se opõe à criminalização do estrangeiro. A nossa xenofobia é oficial, mas não a vemos como tal porque quando são portugueses ou sul africanos (brancos) a sofrerem as consequências da sua própria irresponsabilidade vemos o nosso falso sentido de patriotismo reforçado. Até gente mal-criada por natureza e que trata mal os seus subordinados em casa e no serviço aplaude este tipo de medidas reveladoras dum sentido extremamente iliberal de justiça. Já houve aquela injustiça contra o treinador português de futebol assim como aquela outra contra a activista espanhola. Em nenhum destes casos nos vemos como beneficiários da sorte moral simplesmente porque preferimos ignorar as condições estruturais que tornam os outros mais vulneráveis do que nós.
E, claro, existindo leis draconianas para uns e suaves para outros os estrangeiros nem precisam de se portar mal. Basta que haja uma acção concertada dos moçambicanos no sentido de “produzir” esses comportamentos. Ou por outra, uma lei tão diferencial no tratamento dos seus sujeitos acaba também produzindo “maus” cidadãos, isto é indivíduos que exploram as fendas da lei para criminalizar inocentes. As ciências sociais não servem, como é sabido, para muita coisa. Podem, contudo, ajudar muito na elaboração de leis que preservem as liberdades de todos nós, independentemente da origem e raça, cuidando da forma como se criam estruturalmente criminosos. A nossa lei do estrangeiro é uma vergonha e sintomática dum sentido de justiça extremamente problemático.
Paulo Inglês Muito bem...
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Raul Junior
Raul Junior Eu, particularmente, penso que o que ta na origem destas decisoes emocionais tem que ver com a falta de discussao sobre um determinado assunto. Usa-se a lei O Estado 'e Meu ou I am a proper Constituition! Nao quero dizer que as Mulheres geralmente tomem decisoes usando mais a emocao, mas os dados nos obrigam a hipotecizar desta forma. A mesma ministra quando dirigia a funcao publica expulsou (nao conheci o desfecho) um professor de Tete alegadamente por ter dito numa reuniao que os professores naquela regiao recebiam no dia 45 ou dia 60! No MITESS, acredito que haja gabinete juridico com tecnicos/as competentes. Sera que foram consultados/as? A Ministra fez o seu papel no sentido de somar pontos no populismo. 49.9% da populacao mocambicana dos 15 e + anos de idade nao sabe ler nem escrever em qualquer idioma. Da percentagem que resta sequer 1% fez Direito. dos que fizeram Direito sequer 0.0000001% tem capacidade de analisar os factos, ou seja, aplicam apenas formula dos manuais ou dos Codigos. Os niveis de argumentatividade tecnica nos nosssos Ministerios sao baixos porque o lado politico tem mais Poder que o lado da Tecnica. Compliquei?
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Margarida Paredes
Margarida Paredes Pode ter sido arbitrariedade jurídica porque não há igualdade jurídica entre nacionais e estrangeiros mas eu que sou muito pragmática acho que a ministra fez muito bem em expulsar o cidadão português. O lugar que ele ocupava como gerente e estrangeiro é um lugar de poder do qual ele se aproveitou para assediar mulheres. Até acho que devia ter sido preso.
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Elisio Macamo
Elisio Macamo hmmm. a linha entre o pragmatismo e o autoritarismo é muito fina. a arbitrariedade encontra aí o seu espaço...
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Raul Junior
Raul Junior Margarida Paredes, coloque o estrangeiro em igualdade de circunstancias, ou seja, se fosse mocambicano que faria a super Ministra? quero alinhar, mas duvidando dessa decisao juridica arbitraria! L'Etat C'est Moi/O estado sou eu, creio que tenha sido essa formula aplicada. uff, Sera que nao tera havido mais motivos que concorreram para a expulsao? Quem tem mais dados sobre o caso, seria bom que colocasse na mesa do facebook
Margarida Paredes
Margarida Paredes Raul Junior, assédio de mulheres já é suficientemente grave.
Raul Junior
Raul Junior Juro te que sou muito leigo nessa materia de assedio de mulheres. O que eu gostaria de saber de si 'e: que medidas teriam sido tomadas se fosse um mocambicano? Juro mais uma vez nao sei o que significa assedio de mulheres!
Raul Junior
Raul Junior Sera que ha assedio de homens? E,...?
Alcídes André de Amaral
Alcídes André de Amaral Pois! E isso sem deixar de for a propria validade das nossas leis que ja 'e uma desgraca. Nem precise de viver no estrangeiro para ser sensivel, Quando nao pensamos no que falamos, nao rimos de nos mesmo, antes, da nisso. Isso irrita apesar de ser muito triste.

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