“A face de responsabilidade e responsabilização individual esconde-se por detrás do ecrã do laptop ou do telefone", Nelson Manhisse
Há dias, ouvi uma conversa entre uma colaboradora de um Banco e um cliente. Podemos marcar algo?
- Talvez. Mas é difícil por causa da escola; estou no
Zimpeto e chego sempre atrasada.
Zimpeto e chego sempre atrasada.
- Final-de-semana?
- Bom, na verdade, já sou noiva.
- Noiva não almoça com amigos?
- Teria que pedir autorização... evito confusão. Não acompanhas o que acontece nas redes sociais?
Despediram-se.
Este retrato é amostra de uma peste social. Por lógica, quanto mais informada for a sociedade, mais valores e tolerância alberga; mais tratos pacíficos tem. Infelizmente, não é o que se verifica nos dias actuais. Com toda a imbatível circulação de informação, ao invés de informadas, as pessoas estão informatizadas. Hoje, guardamos segredos, emoções e vivências em smartphones. Quando “curtimos” algo, logo “selfamos” para partilha. O valor do que circula através dos media e, sobretudo, nas redes sociais não é de fácil filtro. Uma busca simples facilmente leva-nos a um filme pornográfico. Esta associação de factores contribui para a dificuldade que os pais, encarregados de educação e professores têm na condução vertical dos valores aos mais novos. A face de responsabilidade e responsabilização individual esconde-se por detrás do ecrã do laptop ou do telefone, daí termos comentários asquerosos dos assuntos.
A repetição é uma das fases da expansão de informação, mas é também a forma mais eficaz de turvar os conceitos. Tudo o que se partilha, em última instância, legitima-se. Quando por exemplo compartilhamos imagens de violência, ao invés de a combater, fazemo-la conviver connosco. Os comentários de repúdio que acompanham as partilhas, são igualmente emperrados pela imagem de sermos as primeiras vítimas (sofrem injustiça e devem vingar-se). Ninguém se cala perante uma clara situação de traição, seja qual for. Porém, mesmo em relação aos casais com o casamento realizado, a violência, que até pode ter um índice baixo em relação a anos anteriores pela falta de mediatização (segundo um especialista), é resultado da nossa violência colectiva, fruto da morbidez do contacto humano (telefones, televisões em todos quartos da casa, etc). Pessoalmente, eu que falo, nunca tive uma tão falta de tempo de me encontrar com amigos como hoje. Não é que trabalho mais! Os amigos, os familiares desaparecem aos poucos, dando lugar aos grupos e famílias representativos, das redes sociais, para continuamente partilhar a mesma mensagem, a mesma imagem, o mesmo vídeo. Fazer amigos tornou-se igualmente fácil e acompanha toda uma miopia de constante companhia.
O grau de conhecermo-nos é ínfimo e a violência real e legítima. Quando a rapariga do banco, altiva e dominadora, diz que não pode ir ao almoço por temer o que acontece nas redes sociais, coloca-se no lugar da segunda vítima. Ademais, este sujeito, violência, não está em nós nem praticado por nós: “passa-se nas redes sociais”. As redes socias são o palco, o fautor e o tribunal destes acontecimentos, apoiados por alguns programas televisivos, enquanto nós pessoas reais andamos limpos e normais. Isto incrementa a nossa solidão e, com o crescimento da insegurança, com muros que reduzem cada espaço ao seu tamanho, a nossa ideia de solidariedade extingue-se.
PS: opinião do escritor e poeta Nelson Manhisse, vencedor dos prémios literários TDM (2012) e 10 de Novembro (2016).
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