Presidente norte-americano terá pedido a responsáveis dos serviços secretos para negarem conluio com os russos. Ex-director da CIA diz que a Rússia tentou subornar pessoas ligadas à campanha de Trump.
Se a investigação sobre a ingerência russa nas eleições presidenciais norte-americanas fosse um acampamento, Donald Trump ainda estaria um pouco afastado do círculo que se forma à volta da fogueira para cantar o Kumbaya. Mas a verdade é que as notícias mais recentes empurraram o Presidente norte-americano mais uns passos em direcção às chamas – para quem acredita no Washington Post e na CNN, Trump pediu a dois dos mais importantes chefes dos serviços secretos do país para virem a público negar a existência de um conluio com a Rússia.
A ser verdade, este comportamento do Presidente reforça o argumento de que ele pode ter pressionado altos responsáveis da espionagem para travarem – ou, pelo menos, para desvalorizarem – a investigação que o FBI lançou no ano passado. A comunidade de serviços secretos norte-americana já estabeleceu que a Rússia tentou influenciar o resultado das eleições presidenciais, mas falta saber se esse plano contou com a colaboração de pessoas ligadas à campanha de Trump.
Há duas semanas, o Presidente despediu o director do FBI enquanto este liderava uma investigação sobre um assunto que pode envolver a Casa Branca, e nos dias seguintes perdeu-se na justificação para essa decisão inédita na História dos Estados Unidos: primeiro declarou que tinha agido sob recomendação do procurador-geral adjunto (que acusou James Comey de ter prejudicado a candidata Hillary Clinton) e depois disse numa entrevista à NBC que teria despedido o director do FBI fosse como fosse, sublinhando que a investigação liderada por Comey não era mais do que uma caça às bruxas sem fundo de verdade.
Mas, poucos dias depois, vários jornais e canais de televisão americanos receberam a informação de que James Comey tirou notas de cada reunião com Trump, e que numa delas escreveu que o Presidente dos EUA o tinha pressionado a "deixar cair" a investigação ao homem que está no centro de todas as polémicas quando se fala sobre a Rússia: Michael Flynn, um general na reserva que aconselhou Trump durante a campanha e que foi recompensado com o cargo de conselheiro de Segurança Nacional quando o magnata do imobiliário se instalou na Casa Branca.
Apenas 24 dias depois dessa nomeação, em Fevereiro, Flynn viu-se forçado a apresentar a demissão, depois de se ter sabido que mentiu ao vice-presidente, Mike Pence, sobre o conteúdo de conversas que teve com o embaixador russo em Washington, Sergei Kisliak – já depois de saber que iria ser conselheiro de Segurança Nacional, Flynn falou ao telefone com Kisliak e, entre outras coisas, terá prometido que a Administração Trump iria rever as sanções aplicadas à Rússia por causa da anexação da península ucraniana da Crimeia.
Pressão sobre chefes dos serviços secretos
Esta terça-feira, as suspeitas de que Trump pressionou vários responsáveis da comunidade de serviços secretos para o afastarem das investigações sobre a Rússia atingiu outro nível: segundo o Washington Post e a CNN, o Presidente falou em Março com o director de todas as agências de serviços secretos, Daniel Coats, e com o director da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla original), o almirante Michael S. Rogers, pedindo-lhes que negassem publicamente a existência de qualquer ligação entre ele próprio e qualquer plano russo para interferir nas eleições presidenciais.
De acordo com as notícias (que citam fontes anónimas dos serviços secretos e da Casa Branca), os dois responsáveis recusaram-se a fazer o que o Presidente lhes pediu e descreveram essa abordagem como "imprópria". A ser verdade, o que está em causa não é tanto a suspeita de que Trump pediu a Coats e a Rogers que fizessem declarações sobre a investigação em público, mas sim que as fizessem mentindo, já que não é possível saber quem está ou não envolvido enquanto essa investigação estiver a decorrer. Para além disso, a prática dos chefes dos serviços secretos é não fazer comentários públicos sobre investigações em aberto, seja quem for o alvo.
O Washington Post avança que a conversa entre o director da NSA e o Presidente ficou escrita num documento interno, e vários responsáveis da agência dizem que essas notas podem ser entregues ao FBI e às comissões do Congresso que estão a investigar a ingerência russa nas eleições. As conversas entre Trump e os dois responsáveis terão acontecido em separado, pouco depois de o então director do FBI, James Comey, ter revelado numa audição pública no Congresso que os seus agentes estavam mesmo a investigar possíveis relações entre a campanha de Donald Trump e o Governo da Rússia.
A Casa Branca desvalorizou as notícias do Washington Post e da CNN, num comunicado em que recusa fazer comentários sobre as acusações: "A Casa Branca não confirma nem desmente alegações não comprovadas baseadas em fugas de informação da responsabilidade de anónimos."
A marca de Flynn
Em toda esta história há um nome que continua a surgir a cada esquina: Michael Flynn – grande parte das investigações do FBI e das duas câmaras do Congresso às actividades russas baseiam-se nas relações do general com Moscovo.
Já se sabia que Flynn esteve presente numa festa da estação russa RT, em Dezembro de 2015, durante a qual se sentou ao lado do Presidente russo, Vladimir Putin – e que contou também com a presença da líder dos Verdes norte-americanos, Jill Stein, que concorreu no ano passado às presidenciais. Mas o congressista Elijah Cummings, do Partido Democrata, sugeriu esta terça-feira que Flynn pode ter violado a lei, ao não revelar aos serviços secretos norte-americanos que foi pago pela empresa russa.
Nessa época, Flynn já não estava no activo, mas ainda assim estava obrigado a revelar esse pagamento aos serviços secretos norte-americanos quando pediu a renovação das suas credenciais, em Janeiro de 2016. Só que durante o questionário dos agentes que trataram dessa renovação Michael Flynn disse que tinha sido pago apenas por empresas norte-americanas.
Depois disso, descobriu-se também que o general prestou serviços de consultoria pagos por uma empresa detida pelo Estado turco em Setembro de 2016, quando já estava a trabalhar activamente na campanha de Donald Trump – e numa época em que tinha acesso aos briefings sobre segurança reservados aos nomeados para as eleições presidenciais (neste caso, Donald Trump e Hillary Clinton).
A juntar a esta enorme teia de conflitos de interesses, a posição de Michael Flynn (e de Donald Trump, por arrasto) ficou ainda mais difícil esta terça-feira, quando o antigo director da CIA, John Brennan, foi ao Congresso dizer que começou a suspeitar da ingerência russa no ano passado – foi a primeira vez que Brennan falou sobre este assunto em público.
"Tive conhecimento de informação que revelou a existência de contactos e interacções entre responsáveis russos e pessoas norte-americanas envolvidas na campanha de Trump, o que me preocupou porque eu sabia que a Rússia já tentara subornar esses indivíduos", disse o antigo director da CIA.
Ainda assim, Brennan disse que não pode afirmar se existiu conluio entre a Rússia e esses indivíduos, até porque a investigação está a decorrer. É do conhecimento público que a investigação centra-se em Michael Flynn; em Paul Manafort, que foi responsável pela campanha de Trump; e em Roger Stone, que fez parte da vasta equipa de pessoas que foram aconselhando Trump durante a campanha.
A investigação do FBI está agora a cargo de um procurador especial, Robert Mueller, que é visto como um garante de imparcialidade, apesar de não ter total independência em relação aos poderes políticos – em última análise, pode ser despedido por Donald Trump. Mueller e a sua equipa vão pedir para ver as notas do ex-director do FBI e do actual director da NSA sobre as conversas com Donald Trump, para se perceber se há motivos para que o Presidente norte-americano possa ser acusado de obstrução à Justiça – uma acusação que poderia levar à sua destituição na Câmara dos Representantes e posterior julgamento no Senado. Este cenário é pouco provável, pelo menos até Novembro de 2018: por um lado, a investigação do FBI pode levar anos a ficar concluída; por outro lado, o Partido Republicano detém a maioria nas duas câmaras do Congresso, e dificilmente aprovará uma destituição sem provas, e muito menos uma condenação.
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