Os últimos indicadores de saúde pública da Venezuela confirmam que o país está a enfrentar uma calamidade alimentar.
Com o dinheiro em baixa e as dívidas a acumularem-se, o Governo socialista da Venezuela cortou severamente nas importações de comida. Para os agricultores da maioria dos países isto representaria uma oportunidade.
Mas isto é a Venezuela, país cuja economia funciona num plano especial de disfunção muito próprio. Em tempos de supermercados vazios e fome que se alastra, as quintas do país produzem cada vez menos – não mais –, agravando ainda mais o défice calórico.
Ao percorrer o campo nos arredores da capital, Caracas, encontramos tudo aquilo que um agricultor precisa: terra fértil, água, luz do sol e gasolina a 0,01 dólares por litro, o preço mais barato do mundo. Mas, ainda assim, as famílias desta zona têm um aspecto tão esquelético como os venezuelanos que vivem na cidade, que fazem filas para comprar pão ou vasculham no lixo à procura de restos de comida.
Depois de anos a tentar desafiar a economia convencional, o país enfrenta agora contas dolorosas. “No ano passado, tinha 200 mil galinhas”, disse Saulo Escobar, dono de uma quinta com aves e porcos no estado de Aragua, que fica a uma hora de Caracas. “Agora tenho 70 mil.”
Vários dos seus galinheiros cavernosos estão simplesmente vazios porque, afirma Escobar, não tem dinheiro para comprar mais ração. Devido aos controlos de preços do Governo, o negócio deixou de dar lucro e gangs armados andam a pressioná-lo para obter pagamentos de extorsão e a roubar-lhe ovos.
Os últimos indicadores de saúde pública da Venezuela confirmam que o país está a enfrentar uma calamidade alimentar. Com a escassez de medicamentos e os casos de malnutrição a aumentar, morreram no ano passado mais de 11 mil bebés, fazendo a taxa de mortalidade infantil aumentar 30%, de acordo com o Ministério da Saúde da Venezuela. A responsável pelo ministério foi despedida pelo Presidente, Nicolás Maduro, dois dias depois de divulgar estas estatísticas.
A fome infantil em certas partes da Venezuela é uma “crise humanitária”, de acordo com um novo relatório da organização de ajuda humanitária Cáritas, que descobriu que 11,4% das crianças com menos de cinco anos sofriam de malnutrição moderada a grave e que 48% estavam “em risco” de passar fome.
Os manifestantes que nas últimas sete semanas têm marchado nas ruas contra Maduro gritam “Temos fome!”, enquanto a polícia de choque responde com canhões de água e gás lacrimogéneo.
Num inquérito recente a 6500 famílias venezuelanas, realizado pelas principais universidades do país, três quartos dos adultos afirmaram ter perdido peso em 2016 – uma média de 8,6 quilos. Aqui, as pessoas referem-se secamente a este emagrecimento colectivo como “a dieta Maduro”, mas é um nível de fome quase sem precedentes fora de zonas de guerra ou áreas devastadas por furacões, secas ou pragas.
Os economistas apontam que o desastre na Venezuela é provocado pelo homem – o resultado de nacionalizações de quintas, de distorções da moeda e da aquisição governamental da distribuição de alimentos. Ao mesmo tempo que milhões de venezuelanos não têm o suficiente para comer, os responsáveis do Governo, habituados a ver o seu país rico em petróleo como um benfeitor e não um caso objecto de caridade, recusaram a entrada no país de grupos de ajuda internacional para entregar alimentos.
“Não é só a nacionalização das terras”, disse Carlos Machado, um perito em agricultura venezuelana. “O Governo decidiu ser o produtor, processador e distribuidor, por isso toda a cadeia de produção alimentar sofre com uma burocracia agrícola ineficiente.”
Com a produção industrial da Venezuela em colapso, os agricultores são obrigados a importar rações, fertilizantes e peças suplentes, mas não podem fazê-lo sem divisas fortes. E o Governo tem reservado os dólares que ganha com as exportações de petróleo para pagar empréstimos com elevadas taxas de juro aos credores estrangeiros.
Escobar explicou que, para manter a produção a funcionar, necessita de 400 toneladas de ração animal importada rica em proteínas a cada três meses, mas só obtém 100 toneladas. Portanto, como muitos outros, virou-se para o mercado negro. Contudo, só consegue comprar uma ração mais barata e menos nutritiva, o que significa que as suas galinhas são mais pequenas do que eram antes – tal como os ovos.
“A qualidade desceu, portanto a produção também desceu”, lamenta.
Os porcos de Escobar também estão mais magros. Um porco adulto médio pesava 109 quilos há dois anos, conta o agricultor. “Agora pesam 80 quilos.” No ano passado, Escobar perdeu dois mil porcos em três meses, quando os animais adoeceram e não pôde comprar vacinas.
Os leitões que nasceram desde então têm um tamanho inferior ao normal. Muitos têm feridas com sangue na ponta das orelhas. “Quando um animal tem uma dieta pobre, procura alimento noutro lado”, explicou María Arias, uma veterinária da quinta. “Portanto, acabam por dar dentadas nas orelhas dos outros porcos.”
Há muito que a Venezuela depende das importações de certos produtos alimentares, como o trigo, que não podem ser cultivados em larga escala no clima tropical do país. Mas as estatísticas comerciais revelam que as políticas de reforma da terra do falecido Hugo Chávez, o antecessor de Maduro, tornaram a Venezuela mais dependente do que nunca de alimentos importados.
Quando os preços do petróleo estavam altos, isto não era grande problema. Actualmente, a mistura de crude da Venezuela vale pouco mais de 40 dólares por barril e a produção de petróleo do país atingiu o mínimo em 23 anos, em parte porque as refinarias e os oleodutos estão a desfazer-se e o investimento em novas infra-estruturas não logra acompanhar o ritmo necessário.
Há anos que o Governo não publica dados sobre a agricultura. Mas Machado, o perito em agricultura, afirmou que as importações anuais de alimentos tinham um valor médio de 75 dólares por pessoa até 2004 e dispararam depois de Chávez ter acelerado a nacionalização de quintas, acabando por se apoderar de mais de quatro milhões de hectares. O Governo também expropriou fábricas e a produção alimentar da Venezuela caiu a pique.
Em 2012, as importações anuais de alimentos per capita tinham aumentado para 370 dólares, mas, desde então, os preços do petróleo desceram e as importações caíram 73%.
Em vez de impulsionar o crescimento na agricultura doméstica, o Governo estrangulou-a, dizem os agricultores. A produção doméstica de arroz, milho e café diminuiu 60% ou mais na última década, de acordo com a Confederação de Associações Agrícolas da Venezuela (Fedeagro). Quase todas as fábricas de açúcar que foram nacionalizadas pelo Governo desde 2005 estão paralisadas ou a produzir abaixo da sua capacidade.
Apenas uma minoria pequena e rica dos venezuelanos tem possibilidade de comprar muita comida no mercado negro, onde meio quilo de arroz importado do Brasil ou da Colômbia custa cerca de 6000 bolívares. Isto representa cerca de um dólar à taxa de câmbio do mercado negro, mas, para um típico trabalhador venezuelano, é um dia inteiro de salário, porque o bolívar perdeu 99% do valor nos últimos cinco anos.
Os venezuelanos que não têm acesso a divisas fortes dependem de mercearias subsidiadas pelo Governo, doadas por grupos locais pró-Maduro, ou esperam em filas de supermercado por produtos racionados e com controlo de preços. Os que se unem aos protestos contra o executivo têm recebido ameaças de vir a perder a sua provisão de alimentos.
Os controlos de preços tornaram-se um desincentivo poderoso na Venezuela rural. “Aqui não há lucros, por isso produzimos com prejuízo”, disse um produtor de lacticínios no estado de Guarico, que falou na condição de manter o anonimato, por temer represálias das autoridades. O produtor disse que para comprar um tractor novo teria de gastar todo o dinheiro que ganha num ano. “É um milagre esta indústria ainda estar viva”, afirmou.
Este mês, foram-lhe roubadas quatro vacas, provavelmente por famílias com fome da aldeia vizinha, contou o produtor.
Segundo Vicente Carrillo, o antigo presidente da associação de criadores de gado da Venezuela, a dimensão global do gado do país diminuiu nos últimos cinco anos de 13 milhões de animais para cerca de oito milhões.
Carrillo vendeu o seu rancho há mais de uma década, cansado das ameaças de ocupantes ilegais e activistas rurais que o acusavam de ser um capitalista rural explorador. A sua família tinha sido dona daquela terra durante mais de um século. “Dediquei mais de 30 anos da minha vida a este negócio, mas tive de deixar tudo”, disse ele.
Escobar, o criador de galinhas e porcos, disse que a única maneira de os agricultores manterem o negócio hoje em dia é violarem a lei e venderem a preços de mercado, esperando que as autoridades façam vista grossa.
“Se vendesse a preços regulados, não teria dinheiro para comprar nem um quilo de ração para as galinhas”, observou.
Se não é o medo do Governo que tira o sono a Escobar, são os gangs de criminosos. Desde que lhe roubaram um camião de entregas em Dezembro, tem sido obrigado a realizar pagamentos de “protecção” a um chefe da máfia que opera a partir da prisão local. Todas as sextas-feiras, três motas param na quinta para recolher um envelope com dinheiro, contou o agricultor. Chamar a polícia iria apenas aumentar o perigo.
“Sei lidar com galinhas e porcos”, desabafou Escobar, “mas não com criminosos.”
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
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