sexta-feira, 5 de maio de 2017

PARLAMENTO OU PARA LAMENTO?


Por Gilberto Correia
O assunto do momento é o facto do Parlamento moçambicano ter aprovado uma Resolução onde aprova a Conta Geral do Estado de 2015 incluindo nessa conta alegadas dívidas resultantes dos "avales soberanos" concedidos pelo Governo aos credores ( Credit Suisse e VTB Bank) de 3 empresas privadas de reputação, utilidade e legalidade duvidosa e obscura, nomeadamente a Ematum, a Proindicus e a Mozambique Asset Management (MAM).
O sentido desta curiosa deliberação parlamentar revela no mínimo, uma contradição insanável, uma aberração jurídica e uma disfuncionalidade democrática,
Senão vejamos:
DA CONTRADIÇÃO INSANÁVEL: foi o próprio Parlamento que aprovou a actual Constituição da República onde está escrito que é da EXCLUSIVA COMPETÊNCIA da Assembleia da República " autorizar o Governo, definindo as condições gerais, a contrair ou a conceder empréstimos, a realizar operações de crédito, por período superior a um exercício económico E A ESTABELECER O LIMITE MÁXIMO DOS AVALES A CONCEDER PELO ESTADO". O mesmo órgão de soberania que aprovou esta norma constitucional, concluiu ainda no Relatório da Comissão de Inquérito Parlamentar (CPI), que investigou o mesmo assunto, que ao conceder tais garantias aos referidos bancos internacionais o Governo violou os limites orçamentais e a Constituição da República. Por fim, foi precisamente o mesmo órgão que, paradoxalmente, veio agora aprovar a inclusão da dívida resultante da execução das garantias na Conta Geral do Estado. Há aqui contradição incorrigível entre actos sucessivos deste órgão de soberania que desafiam as mais elementares regras da lógica, da coerência e da necessidade de não actuar no círculo de comportamentos contraditórios.
DA ABERRAÇÃO JURÍDICA: a Constituição da República é no nosso ordenamento jurídico, como em todos os outros que se pretendem democráticos, a mãe de todas as leis. As normas constitucionais prevalecem sobre todas as restantes normas do mesmo ordenamento jurídico. Se o Parlamento concluiu na CPI que o Governo violou a Constituição, qual seria a consequência jurídica dessa violação para as garantidas emitidas? Parece-nos evidente tais avales, erradamente chamados de "soberanos", são actos nulos e de nenhum efeito, precisamente por terem sido emitidos sem a autorização parlamentar exigida pela própria Constituição da República. Se o acto nulo não produz efeitos na ordem jurídica e é irrecuperável, como pode o Parlamento retirar consequências jurídicas desses mesmos actos e incluir as obrigações dele derivadas na Conta Geral do Estado moçambicano? Agora, é o próprio Parlamento que viola a Constituição da República ao extrair consequências jurídicas de actos nulos praticados em violação das suas próprias competências constitucionais exclusivas. O sentido desta deliberação parlamentar, entre outras coisas, maltrata o Princípio do Estado de Direito democrático e infringe o dever do próprio Parlamento respeitar e impor respeito à Constituição da República.
DA DISFUNCIONALIDADE: num Estado de Direito democrático, o Parlamento para além de principal órgão legislativo, tem competências de fiscalização da acção governamental. É por isso que o Governo tem de ir regularmente prestar contas da sua actuação àquele órgão de soberania. Se, entretanto, neste caso das chamadas dívidas ocultas, o Governo violou a Constituição da República (conclusão da própria Assembleia da República), pior ainda num cenário em que essa violação é feita precisamente em relação a competências constitucionais do próprio órgão fiscalizador, no sentido de que emitiu os avales sem solicitar a competente autorização da Assembleia da República, é manifesto que ao agir como agiu, o Parlamento moçambicano não está a cumprir as suas competências de fiscalização da acção do Governo. Pelo contrário, está a incorrer numa grave disfuncionalidade que enfraquece todo o Estado moçambicano e compromete irremediavelmente todo um esforço de estruturar o mesmo Estado com poderes e contra-poderes - sobretudo através da separação de poderes. Destarte, não há Democracia que resista a um Parlamento disfuncional, sobretudo quanto essa disfuncionalidade é provocada de forma consciente e voluntária pelos seus membros.
Juridicamente, as dívidas da EMATUM, PROINDICUS e MAM são apenas isso mesmo: obrigações da EMATUM, PROINDICUS e MAM. Nada Mais! Para se transformarem em divida soberana, e assim estender-se a responsabilidade do respectivo pagamento a todo o povo moçambicano, era necessário que os avales concedidos pelo Governo, em nome do Estado, fossem válidos - mas não o são e nem podem vir a sê-lo porque são NULOS E DE NENHUM EFEITO. Se as garantias concedidas não são válidas, a dívida constituída por via dessas garantias é simplesmente INEXISTENTE.
Neste caso, o Parlamento age em contradição consigo próprio, viola as regras do Estado de Direito democrático e transige com a violação do princípio basilar da separação de poderes. Em suma, descumpre de forma voluntária e consciente com as suas obrigações constitucionais, sodomizando, sem consentimento, todo o povo moçambicano que alega representar. Os poderes que o Povo concede ao Parlamento são para serem usados em nome e em benefício do mandante. Neste caso há claramente um abuso de poderes de representação. É caso para dizer que com um Parlamento desses não precisamos de inimigos.
Depois desta cedência do Parlamento a interesses ilegais e obscuros, o que constitui um retrocesso civilizacional mesmo para a nossa jovem e incipiente democracia, só nos resta, como último reduto da defesa da democracia, do Estado de Direito e do património colectivo do povo moçambicano, o recurso ao Conselho Constitucional.
Por isso, lutar para que essas dívidas privadas não sejam ilegalmente convertidas em dívida de todo o povo moçambicano, incluindo os concepturos e nascituros, deixou de ser uma mera questão de opção política. É agora um imperativo nacional!
Termino como comecei, com uma dúvida existencial: é Parlamento ou para lamento?

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