Opiniao de Tomás Vieira Mário
1. Do soneto à emenda
A Assembleia da República aprovou, na sessão do dia 26 de Abril, o relatório da Conta Geral do Estado (CGE), instrumento que representa um registo, a posteriori, da execução orçamental e financeira, bem como apresenta o resultado do exercício e a avaliação do desempenho dos órgãos e instituições do Estado.
O assunto de maior preponderância política na aprovação desta CGE é a inclusão das dívidas contraídas pelo Governo do mandato anterior, para a constituição de três empresas na área da segurança costeira (EMATUM, PROINDICUS e MAM), em 2013, com garantias do Estado Moçambicano. Estas garantias foram concedidas ilegalmente, (pelo Ministro das Finanças, neste caso Manuel Chang), violando as leis orçamentais de 2013 e de 2014, e sobretudo, a Constituição da República de Moçambique (CRM). As dívidas estão avaliadas em 1.4 mil milhões de dólares. A AR “branqueou” a ilegalidade destas dívidas…a título excepcional. E pergunta-se: uma violação da Constituição da República deixa de ser uma violação por ser praticada …“a título excepcional”? Em termos de consequências políticas, não será o caso em que a emenda ficou pior do que o soneto?
2. O relatório da CPI como documento-base
O debate essencial desta matéria, crucial para o presente e o futuro do Estado de Direito Democrático de Moçambique, encontra matéria central no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre as dívidas públicas, de 30 de Novembro de 2016. Neste artigo abordamos o “percurso” seguido pela Assembleia da República, até à votação favorável (exclusivamente pela bancada maioritária) da CGE, na sessão do dia 26 de Abril.
Em 2016, a Assembleia da República decidiu criar esta CPI para realizar um inquérito com o objectivo de apurar as circunstâncias em que a dívida foi contraída à sua revelia. A CPI concluiu e submeteu o seu relatório ao órgão, no dia de 30 de Novembro de 2016, sendo disponível ao público.
No culminar da análise das informações recolhidas em sede do inquérito, a CPI apresenta as suas conclusões, dizendo, a dado passo:
“A Comissão está convicta de que a disposição constitucional constante do artigo 179, nº2, alínea p, (…) estabelece no seu âmbito que a prestação de fianças, avales e garantias pelo Estado que possam dar lugar a despesas em exercícios económicos futuros necessitam de uma autorização por lei no sentido formal (Lei da Assembleia da República) que permita a determinação do montante dos mesmos, através da fixação expressa dos limites máximos”.
Com efeito, o mesmo artigo 179, al.p) estabelece, no seu número 2, como uma das competências exclusivas da Assembleia da República, “autorizar o Governo, definindo as condições gerais, a contrair ou a conceder empréstimos, e realizar outras operações de crédito, por um período superior a um exercício económico e a estabelecer o limite máximo dos avales a conceder ao Estado”.
Perante as suas constatações, “a Comissão apresenta as seguintes possíveis consequências da violação da Lei Orçamental de 2013 e 2014, bem assim da Constituição da República, no seu artigo 179, nº2, alínea p):
Sendo a Lei Orçamental o limite dos avales ou garantias, e tendo inexistido (nosso sublinhado) a lei de autorização, como condição ou pressuposto essencial para a válida emissão de garantias às empresas EMATUM, SA; PROINDICUS, SA; e MAM, SA., deverá entender-se que, na sua falta, as garantias são nulas (nosso sublinhado), pois o acto da sua emissão excedeu os limites constantes dos artigos 11, nº3, das Leis Orçamentais 1/2013, de 7 de Janeiro e 1/2014, de 24 de Janeiro e a parte excedente foi emitida sem autorização parlamentar, violando a alínea p) do nº2 do artigo 179 da Constituição da República (nosso sublinhado): “autorizar o Governo, definindo as condições gerais, ao contrair ou a conceder empréstimos, a realizar outras operações de crédito, por um período superior a um exercício económico e a estabelecer o limite máximo dos avales a conceder pelo Estado”.
3. Consequências da violação da Lei Orçamental e da CRM
Quanto às consequências da violação da Lei Orçamental e da Constituição da República, o relatório da CPI diz o seguinte:
“ (…) A Comissão apresenta as seguintes possíveis consequências da violação da Lei Orçamental de 2013 e 2014, bem assim da Constituição da República, no seu artigo 179, nº2, alínea p):
Sendo a Lei Orçamental o limite dos avales ou garantia, e tendo inexistido a lei de autorização (nosso sublinhado), como condição ou pressuposto essencial para a válida emissão de garantias às empresas EMATUM, SA; PROINDICUS, SA; e MAM, SA., deverá entender-se que, na sua falta, as garantias são nulas (nosso sublinhado) ….
Pergunta: sendo estas garantias nulas, poderia o Estado Moçambicano, através da Assembleia da República, repudia-las, ficando ele assim desonerado?
Resposta: Legalmente, poderia, sim, o Estado Moçambicano repudia-las, precisamente por serem ilegais e violarem a Constituição. Em tal caso, recorreria, o Estado, à figura que se designa por “repudio camuflado da garantia prestada à dívida”. Para tal, o Estado lançaria mão da sua qualidade de ente soberana, que lhe confere imunidade, como de resto refere o próprio relatório da CPI.
E o “assunto” ficaria assim fechado, ficando toda a responsabilidade apenas nas “mãos”das três empresas? A resposta é … não. Diz, a respeito, o relatório da CIP:
(O recurso à figura do) repúdio camuflado das garantias prestadas não teria o efeito pretendido por duas razões essenciais:
A. A primeira reside no que se aceite a responsabilidade pré-contratual nos termos do artigo 227º, nº1 do Código Civil: “1. Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”, esta é extensiva também aos negócios celebrados pela Administração Pública, o que abriria a possibilidade de o Estado ter agido com “culpa in contrahendo”, dado que teria prestado ou emitido garantias com vício evidente da violação da lei e da Constituição e, como tal, agido de má-fé, motivo por que poderia ser responsabilizado.
B. A segunda reside no facto de que o Estado ao ter emitido as garantias assumiu compromisso no plano internacional e submeteu-se aos ordenamentos estrangeiros, nomeadamente à legislação vigente na Grã-Bretanha. Segundo este Acto Legislativo Britânico de 1978, o Estado Moçambicano seria julgado no Reino Unido sem se fazer valer dessa qualidade (perde imunidade), nos actos relativos a casos comerciais ou de outra natureza, o que acaba colocando o Estado numa situação delicada, como ente soberano.
4. Estado moçambicano colocado num “beco sem saída”
Ora, a CPI considerou inaceitável a hipótese do Estado Moçambicano, ao repudiar a dívida, ser julgado na Grã-Bretanha, pois um tal cenário iria expor a uma posição deveres delicada. E, dessa forma, a Assembleia da República teria ficado em situação de “beco sem saída”. Em face disso, a “saída” preconizada pela CPI foi a de…fiscalização, a posteriori, da forma como o governo contraiu as dívidas.
Porém esta modalidade não está prevista na CRM. Nem podia, de forma alguma, estar prevista, sob o risco de anular o efeito prático do poder exclusivo nesta matéria, conferido à Assembleia da República, nos termos do já citado artigo 179. Com efeito, a hipótese da CRM prever fiscalização a posteriori da execução orçamental traduzir-se-ia na atribuição de poderes quase ilimitados ao Governo, em violação do princípio da separação dos poderes.
Perante este novo “bloqueio” constitucional, a CPI recorre à figura de “competências genéricas da Assembleia da República de fiscalizar a gestão financeira do Estado, nos termos do artigo 131 da Constituição. Ora, esta é, clamorosa e indisfarçavelmente, uma “saída” por demais frágil e insustentável, em razão do género e espécie da matéria em causa, para cuja regulação a Constituição da República atribui “poder exclusivo” ao Parlamento! E não seria por acaso!
Desta série de “bloqueios” a qualquer saída do Estado de todo o imbróglio extrai-se, clara, a seguinte conclusão: os arquitectos das malditas dívidas urdiram um complexo esquema jurídico-legal, com conexões internacionais, tal que assegura que, seja qual for o Governo, e seja qual for a sorte das três empresas, o Estado Moçambicano deverá garantir que os credores vão receber de volta o seu dinheiro, com os devidos juros!
Violar Constituição …a título excepcional
Consciente deste facto, o qual apenas reafirma a extrema gravidade da conduta do executivo anterior, que deixou ao actual Governo um Estado literalmente manietado e armadilhado, o relatório da CPI soçobra, afirmando:
“Não tendo acontecido a previsão anterior, e havendo o risco potencial de o Estado ser chamado, seria correcta a inclusão destas despesas a título excepcional (nosso sublinhado) no Orçamento do ano subsequente”.
Por outras palavras, praticar-se-ia um acto violador da Constituição da República… a título excepcional. Mas então pergunta-se: uma violação à Constituição da República deixa de ser violação por ser…. a título excepcional?
Consequências da violação da Constituição
Que consequências podem resultar da violação da Constituição, logo pelo mais alto poder legislativo da Nação?
A primeira consequência é obviamente a banalização da própria Constituição da República, reduzindo-a a documento facilmente manipulável, para o branqueamento de actos lesa-pátria, como foram os empréstimos contraídos neste negócio de contornos absolutamente obscuros.
Uma segunda consequência – alias gravíssima! – é transmitir-se a ideia de que, afinal, a Assembleia da República pode deixar de guiar os seus actos no estrito respeito pela Constituição da República, criando para esta, a aceitabilidade de actos inconstitucionais, sob o signo da excepcionalidade.
A terceira consequência é transmitir ao Governo e a outras forças relevantes que, afinal, o Governo pode tomar decisões ilegais e inconstitucionais, pois sempre tais inconstitucionalidades poderão ser sanadas, através de medidas “a título excepcional”, tomadas em sede da Assembleia da República.
No final do dia, a consequência é reduzir o conteúdo jurídico-político de “Estado de Direito Democrático” a mera letra morta, cuja função é pouco mais do que embelezar a própria Constituição da República, garantindo-lhe posição digna ao lado de outras baseadas nos mesmos princípios, porque violação da Constituição da República é violação da Constituição da República. Não há, em pode haver, meio-termo!
Fonte: O País – 02.05.2017
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