Culpa, responsabilidade e hipocrisia
Andam aí discussões interessantes sobre o papel de Portugal na escravatura. Começaram com a oportunidade que o Presidente português perdeu em Gorée de pedir desculpas em nome do seu país pela escravatura e continuaram mais recentemente com um texto curioso duma articulista portuguesa, Maria João Marques, com o título “Não tenho culpa da escravatura. E não pago”. Reproduzo o texto mais abaixo. O que torna esta discussão interessante não são algumas das posições extremas que são apresentadas, isto é arrogância estúpida (como é o caso do referido texto) e anti-racismo fanático. É, sim, algo que os intervenientes na discussão não estão a conseguir articular, pelo menos em minha opinião, e que é central a toda a discussão. Refiro-me ao que comumente chamamos de “valores ocidentais”.
Explico-me. Há algum tempo que venho reflectindo sobre a noção de “Eurocentrismo”. Para muita gente, o “eurocentrismo” significa algo como a manifestação europeia do etnocentrismo. Acho que esta definição não é boa. O “eurocentrismo” define-se melhor, em minha opinião, como a perversão dos valores europeus. Dito doutro modo, o que por razões históricas se tornou tipicamente europeu não foi exactamente a arrogância autista europeia, mas sim a proclamação, pelos europeus, daquilo que eles considerarm como sendo seus valores como algo não só de alcance universal como também como algo que define o universal. O “eurocentrismo” entra na equação quando os europeus nas suas práticas e nas suas proclamações entram sistematicamente em contradição com estes valores por si próprios declarados. Ou por outra, “eurocentrismo” não é impôr um padrão europeu como medida de tudo, mas sim não ter vergonha de violar o que se declara como sendo sua própria cultura quando convém.
Nesta ordem de ideias, o que é grave na ascensão duma direita radical anti-imigrante na Europa não é o seu manifesto desprezo por outras culturas e maneiras de viver. É o seu desprezo pela própria cultura, pelo menos por aquela cultura que é propalada aos quatro ventos e que impõe certas obrigações morais ao europeu, algumas das quais consistem em tolerar e respeitar a diferença, promover a responsabilidade individual e colectiva, defender princípios políticos que viabilizem a emancipação individual e protejam o que não sendo do foro colectivo corresponde à definição que cada um tem do bem estar individual. Em várias palestras que dei nos últimos dois anos sobre aquilo que eles chamam de “crise de migração” na Suíça e na Alemanha, tenho defendido uma posição que dá destaque a esta questão. Redefino a crise como uma crise europeia de valores que se manifesta numa tensão entre a ética e a política. Os valores humanitários cujos direitos de autor os europeus reclamam estão em tensão com o pragmatismo político com o risco de perderem votos. Quando sou convidado por comunidades religiosas cristãs para falar sobre estes assuntos e elas me falam de crise, eu pergunto apenas se elas deixaram de ser cristãs e se o amor ao próximo já não existe.
Não alinho muito com exigências “de-coloniais” – sobretudo quando são formuladas por pessoas com evidentes lacunas na leitura – no que diz respeito à inclusão de outras referências nos cânones disciplinares. Kant, Hegel e Locke, apesar dos seus pronunciamentos negativos em relação ao outro, são referências incontornáveis para qualquer um de nós. Há algo de profundamente pedagógico na constatação da maneira como mentes brilhantes como estas foram capazes de tamanhos deslizes. Mas o que resta da leitura não é esse momento negativo, mas a sua contribuição para uma outra maneira de pensar o mundo e, inclusivamente, pensar a relação com o outro. Césaire, Ngugi wa Thiongo ou mesmo Amílcar Cabral não seriam opção de leitura hoje se os racistas do Kant, Hegel e Locke não nos tivessem legado o seu pensamento. Não é, portanto, possível virar as costas a estes homens brancos mortos sem abandonar também uma parte importante do que tornou o pensamento decolonial possível e intelegível. O pensamento de-colonial para mim é, por mais incrível que pareça, a reafirmação dos valores que estes homens contribuíram para tornar visíveis. Ou é isso, ou não é nada, receio.
É a partir desta posição epistemológica que eu pelo menos olho também para a História. Olho-a de forma relaxada. O colonialismo e tudo aquilo que ele implicou, nomeadamente o comércio de escravos, a humilhação do outro, assim como a criação dum mundo que colocou em desvantagem estrutural todos os não-europeus, é uma afronta aos valores que os europeus defendem. Quem se identifica com estes valores não pode ficar à vontade com esta História. O mundo que o colonialismo produziu contradiz tudo o que estes valores defendem: a igualdade, a justiça, a solidariedade. Quando alguém fala deste passado sombrio em Portugal, na França ou na Grã-Bretanha só quem não conhece os valores que a sua própria cultura defende verá nisso um apelo ao sentimento de culpa. O apelo aqui é ao sentido de responsabilidade, algo central a estes valores.
Para mim a atitude de todos aqueles que dizem que não têm culpa da escravatura é, num primeiro momento, infantil e, num segundo momento, oportunista. É infantil porque quer usufruir do poder sem sentido de responsabilidade e oportunista porque não se importa de tirar benefício das atrocidades cometidas por outros no passado mesmo sabendo que isso condenou algumas das pessoas com as quais hoje concorrem para muita coisa à desvantagem estrutural.
Eu podia ter nascido em Portugal ou na Alemanha de pais brancos. Não foi o caso. Nasci dos meus pais em Moçambique, percorro o mundo com o passaporte do meu país que me torna suspeito em muitos lugares, arranjo-me como posso numa língua que não é a minha, apesar de ser língua oficial no meu país, e preciso de fazer muito mais do que muitos dos meus colegas para poder estar em condições de concorrer melhor com eles. Não guardo nenhum rancor por isso, mas fico completamente atónito quando os vejo a não honrarem aquilo que os devia definir como indivíduos.
Mas se calhar isso é do pelouro da hipocrisia. O único preço possível para os erros da História é o recuo no tempo para fazer uma outra história e ter outros culpados. Como isso não é possível, o mínimo que se pode exigir é um pequeno sentido de responsabilidade, um valor profundamente europeu...
Andam aí discussões interessantes sobre o papel de Portugal na escravatura. Começaram com a oportunidade que o Presidente português perdeu em Gorée de pedir desculpas em nome do seu país pela escravatura e continuaram mais recentemente com um texto curioso duma articulista portuguesa, Maria João Marques, com o título “Não tenho culpa da escravatura. E não pago”. Reproduzo o texto mais abaixo. O que torna esta discussão interessante não são algumas das posições extremas que são apresentadas, isto é arrogância estúpida (como é o caso do referido texto) e anti-racismo fanático. É, sim, algo que os intervenientes na discussão não estão a conseguir articular, pelo menos em minha opinião, e que é central a toda a discussão. Refiro-me ao que comumente chamamos de “valores ocidentais”.
Explico-me. Há algum tempo que venho reflectindo sobre a noção de “Eurocentrismo”. Para muita gente, o “eurocentrismo” significa algo como a manifestação europeia do etnocentrismo. Acho que esta definição não é boa. O “eurocentrismo” define-se melhor, em minha opinião, como a perversão dos valores europeus. Dito doutro modo, o que por razões históricas se tornou tipicamente europeu não foi exactamente a arrogância autista europeia, mas sim a proclamação, pelos europeus, daquilo que eles considerarm como sendo seus valores como algo não só de alcance universal como também como algo que define o universal. O “eurocentrismo” entra na equação quando os europeus nas suas práticas e nas suas proclamações entram sistematicamente em contradição com estes valores por si próprios declarados. Ou por outra, “eurocentrismo” não é impôr um padrão europeu como medida de tudo, mas sim não ter vergonha de violar o que se declara como sendo sua própria cultura quando convém.
Nesta ordem de ideias, o que é grave na ascensão duma direita radical anti-imigrante na Europa não é o seu manifesto desprezo por outras culturas e maneiras de viver. É o seu desprezo pela própria cultura, pelo menos por aquela cultura que é propalada aos quatro ventos e que impõe certas obrigações morais ao europeu, algumas das quais consistem em tolerar e respeitar a diferença, promover a responsabilidade individual e colectiva, defender princípios políticos que viabilizem a emancipação individual e protejam o que não sendo do foro colectivo corresponde à definição que cada um tem do bem estar individual. Em várias palestras que dei nos últimos dois anos sobre aquilo que eles chamam de “crise de migração” na Suíça e na Alemanha, tenho defendido uma posição que dá destaque a esta questão. Redefino a crise como uma crise europeia de valores que se manifesta numa tensão entre a ética e a política. Os valores humanitários cujos direitos de autor os europeus reclamam estão em tensão com o pragmatismo político com o risco de perderem votos. Quando sou convidado por comunidades religiosas cristãs para falar sobre estes assuntos e elas me falam de crise, eu pergunto apenas se elas deixaram de ser cristãs e se o amor ao próximo já não existe.
Não alinho muito com exigências “de-coloniais” – sobretudo quando são formuladas por pessoas com evidentes lacunas na leitura – no que diz respeito à inclusão de outras referências nos cânones disciplinares. Kant, Hegel e Locke, apesar dos seus pronunciamentos negativos em relação ao outro, são referências incontornáveis para qualquer um de nós. Há algo de profundamente pedagógico na constatação da maneira como mentes brilhantes como estas foram capazes de tamanhos deslizes. Mas o que resta da leitura não é esse momento negativo, mas a sua contribuição para uma outra maneira de pensar o mundo e, inclusivamente, pensar a relação com o outro. Césaire, Ngugi wa Thiongo ou mesmo Amílcar Cabral não seriam opção de leitura hoje se os racistas do Kant, Hegel e Locke não nos tivessem legado o seu pensamento. Não é, portanto, possível virar as costas a estes homens brancos mortos sem abandonar também uma parte importante do que tornou o pensamento decolonial possível e intelegível. O pensamento de-colonial para mim é, por mais incrível que pareça, a reafirmação dos valores que estes homens contribuíram para tornar visíveis. Ou é isso, ou não é nada, receio.
É a partir desta posição epistemológica que eu pelo menos olho também para a História. Olho-a de forma relaxada. O colonialismo e tudo aquilo que ele implicou, nomeadamente o comércio de escravos, a humilhação do outro, assim como a criação dum mundo que colocou em desvantagem estrutural todos os não-europeus, é uma afronta aos valores que os europeus defendem. Quem se identifica com estes valores não pode ficar à vontade com esta História. O mundo que o colonialismo produziu contradiz tudo o que estes valores defendem: a igualdade, a justiça, a solidariedade. Quando alguém fala deste passado sombrio em Portugal, na França ou na Grã-Bretanha só quem não conhece os valores que a sua própria cultura defende verá nisso um apelo ao sentimento de culpa. O apelo aqui é ao sentido de responsabilidade, algo central a estes valores.
Para mim a atitude de todos aqueles que dizem que não têm culpa da escravatura é, num primeiro momento, infantil e, num segundo momento, oportunista. É infantil porque quer usufruir do poder sem sentido de responsabilidade e oportunista porque não se importa de tirar benefício das atrocidades cometidas por outros no passado mesmo sabendo que isso condenou algumas das pessoas com as quais hoje concorrem para muita coisa à desvantagem estrutural.
Eu podia ter nascido em Portugal ou na Alemanha de pais brancos. Não foi o caso. Nasci dos meus pais em Moçambique, percorro o mundo com o passaporte do meu país que me torna suspeito em muitos lugares, arranjo-me como posso numa língua que não é a minha, apesar de ser língua oficial no meu país, e preciso de fazer muito mais do que muitos dos meus colegas para poder estar em condições de concorrer melhor com eles. Não guardo nenhum rancor por isso, mas fico completamente atónito quando os vejo a não honrarem aquilo que os devia definir como indivíduos.
Mas se calhar isso é do pelouro da hipocrisia. O único preço possível para os erros da História é o recuo no tempo para fazer uma outra história e ter outros culpados. Como isso não é possível, o mínimo que se pode exigir é um pequeno sentido de responsabilidade, um valor profundamente europeu...
Nada
tenho contra debates sobre a escravatura, nem investigação histórica
sobre o tema. Mas vou já avisando que não tenho culpa nenhuma do que
se...
observador.pt
Adriano Simão Uaciquete Como sempre: assertivo, claro, frontal e maningue nice na forma nao menos comum de nos ajudar a ver a realidade. Khanimanbo.
Paulo Inglês Pedro Schacht viste este texto Elisio Macamo.
Rui Armando Matavele Boa
reflexao Prof. Acho que eh falta de consideracao pela Historia humana
no geral, e ignorar as atrocidades do colonialismo e da escravatura em
Africa, em particular eh uma aberacao. Agora, ela como pessoa, pode ter
uma opiniao, mas nao me parece razoavel falar em nome do seu pais.
Núria Duplovê Éne Ora aqui está uma abordagem inteligentissima! Vou roubar ;)
Escreve uma resposta...
Alcídes André de Amaral A
hipocrisia, a lúcidez ou a ignorância não tem cor e nem país oh,
professor! Tudo depende da posição do indivíduo. É claro que a estrutura
corrompe muitas vezes, mas é também claro que há individuos que não se
deixam corromper assim de bandeixa. E não
são poucos. Professor está mostrar isso neste seu texto. Ser culto, ser
responsável ou ser irresponsável também não tem cor e nem país, depende
do indivíduo... Então, continue a ensinar não o rancor, o ódio ou
aplausos mas princípios e valores que, apesar de os europeus - alguns
indivíduos europeus, se for rigoroso - terem proposto e o resto ter
assumido tais valores, que podem ser TAMBÉM universais no sentido de
que qualquer um, em grupo ou individualmente, pode fazer dele os seus!
As pessoas precisam defender e promover os valores não andarem por ai
apontando violações destes princípios e valores para recusá-los....
Crespim Mabuluko Desta vez há didáctica em tudo que diz professor muita lucidez e boa retrospectiva histórico explicativa...
Tony Bambo Caro
Professor, É preciso ler alguns acontecimentos e abordagens com um
sentido de revisão e sobretudo encontrar nas entrelinhas do que ficou
escrito a verdadeira dimensão do que o(a) Autor(a) quis dizer. Senão
vejamos:
Tony Bambo a)
A escravatura não é, não foi um acto individual, isolado do que se
possa apontar culpados individual e pessoalmente. b) no meu entender
alguns dos posicionamentos que se apresentam são resultado de uma
leitura apressada, pouco sustentada, nas quais,
em lugar de olhar a escravatura como um fenómeno social, que trouxe
frutoa que aplicados desenvolveram o continente europeu e correpondiam a
um certo modo de produção. C) só uma mente europeia que jamais aprendeu
quais os valores universais adoptados após séculos da abolição da
escravatura, pode vir discutir quem paga por ela por ser culpado. d)
Obama não é culpado pelo lançamento da bomba atómica no Japão, mas sendo
americano convicto, com profundo sentir humano, apresentou aos
Japoneses o pedido de perdão americanos.
Tony Bambo Por
isso e em atenção ao que define como eurocentrico e a sua negação, não
posso de mod algum ficar indiferente ao texto da aludida jotrnalista,
mas o que se deve dizer é que ela não é culpada do radicalismo e da
tentativa de como individuo e fazedora de
opinão ter sido infeliz na abordagem de um tema tão colectivo e social
de maneira leviana. É o novo nacionalismo pragmático euro-americano.
Mundo global para os outros, para os Europeus e americanos a europa e a
America de Trump. Pequenos seres....... Humanos??!
Eliha Bukeni Caro
Tony, sem querer discordar com a substância do seu texto, creio não
estar certo ao dizer que Obama apresentou um pedido de desculpas ao
Japão, por ocasião da sua visita á Hiroshima em Maio de 2016. Aliás, do
mesmo modo que na visita de retribuição
ao Hawai em Dezembro de 2016, Shinzo Abe, não apresentou nenhum pedido
de desculpas pelo bombardeamento da aviação Japonesa á base naval
americana de Pearl Harbor em Dezembro de 1941, acto que motivou a
entrada dos EUA na segunda guerra mundial. Ambos lideres ficaram-se pela
homenagem aos perecidos. Também gostei da abordagem do Prof. Elísio,
muita pena a Jornalista não poder ler o texto e aprender algo!
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