Desde então, passou por vários ministérios até chegar ao cargo de
primeiro-ministro (1986-1994), o último no governo. Falando da sua
experiência, Machungo considera que, perante a saída em massa dos
comerciantes portugueses, a criação das lojas do povo foi a solução
adequada para a altura. Conta ainda que quando o país muda de modelo
económico, o Conselho de Ministros que dirigia recusou a liberalização
da indústria do caju, aceite no governo que lhe sucedeu. Mais: diz que
não foi correcta a privatização de todos os serviços do Banco Popular de
Desenvolvimento, mas, quando deu a sua opinião, não foi acolhida.
Mário
Machungo é natural de Maxixe, província de Inhambane. tal como alguns
moçambicanos, fez o ensino superior em Lisboa, na década 60 (1969).
Quando é que parte para Lisboa?
Parto
para Lisboa em Outubro de 1959, depois de concluir a secção
preparatória na Escola Comercial para matrícula no Instituto Comercial.
Parto para Lisboa para frequentar o Instituto Comercial Preparatório,
para o ensino superior, no curso de Economia.
Estando em Lisboa, quando é que ouve falar da Frelimo?
Ouvi
falar da Frelimo depois de 1962, após a criação da mesma. Ouvimos dizer
que a Frelimo se formou, tínhamos uma frente de libertação que ia
também iniciar a luta de libertação nacional, na altura já tinha
iniciado a luta pela libertação em Angola. na Guiné, também já havia uma
luta acesa. Sentimo-nos confortados em saber, também, que no nosso país
os nacionalistas se tinham organizado para iniciar a luta pela
libertação nacional.
Na
altura em que deixou Moçambique, tinha conhecimento das aspirações de
alguns moçambicanos em levar avante a luta contra o regime colonial?
Quando
saí de Moçambique, em 1959, havia moçambicanos que tinham consciência
de que era preciso fazer alguma coisa para a libertação de Moçambique.
Vou recordar que, por exemplo, o saudoso Filipe Samuel Magaia, uma
pessoa que muito respeito e admiro, foi a primeira pessoa que falou de
Kwame Nkrumah. Mostrou-me uma revista que tinha a fotografia de Kwame
Nkrumah, grande dirigente de um país africano independente. Aí soube,
pela primeira vez, que também os africanos podem dirigir os seus países.
Depois, ele foi-nos trazendo notícias do que estava a acontecer no
continente africano, em termos de movimentos de libertação nacional.
Estando em Portugal, como é que acompanhava a vida política do país, sobretudo as acções da Frelimo?
Em
Portugal, estávamos organizados, tínhamos contactos clandestinos com a
Frelimo. Recebíamos notícias, os boletins que se publicavam em
Dar-es-salaam, apanhávamos as emissões das rádios estrangeiras que
falavam da nossa luta. Estando em Portugal, não era fácil, tínhamos que
encontrar mecanismos de receber informações clandestinamente, porque, se
fôssemos apanhados, estaríamos sujeitos a ser presos.
Teve algum contributo para a luta nessa altura?
Nós
estudantes que estávamos, nessa altura, na Europa, Portugal
nomeadamente, fazíamos o que eram instruções da Frelimo para mobilizar
os estudantes, para poderem ter consciência do que é que se estava a
fazer para a luta. E, depois de acabarmos os nossos estudos, tínhamos
que nos juntar à luta ou fazermos outro trabalho à favor da luta de
libertação.
Acreditava no sucesso desta luta?
Tínhamos
que acreditar, era inevitável. Acreditávamos profundamente. Se os
outros fizeram, por que é que nós não havíamos de fazer?
Terminou
os estudos em 1969, no auge da luta de libertação nacional. Dizia que
tinham essa consciência de que, terminados os estudos, tinham que se
juntar aos guerrilheiros da Frelimo, e, juntamente com eles, combater o
regime colonial. O que é que fez nessa altura?
Vou
dizer uma coisa que, praticamente, pouca gente sabe. Nessa altura,
procurei força e saí de Portugal. Não era fácil sair de Portugal. Saí de
Portugal, fui à Suécia encontrar-me com o camarada Marcelino dos
Santos, acompanhado do camarada Panguene, para dizer que estava pronto.
Ele disse volta para Moçambique, que a luta é dentro de Moçambique.
Voltei em 1970 e trabalhei para o Banco de Fomento. O processo não era
fácil. Como sabe, a Frelimo assumiu o poder em 1975, após os
acontecimentos de 7 de Setembro de 1974, depois de uma recusa de um
grupo de colonos portugueses, que recusavam a independência de
Moçambique, e a economia de Moçambique estava fragilizada. Havia uma
grande sabotagem económica, de modo a que o conjunto de moçambicanos que
tomou a transição não teve uma tarefa fácil. Felizmente, a experiência
de mobilização da Frelimo fez com que mobilizássemos todo o povo, desde
operários, camponeses, para resistirmos às ofensivas de sabotagem
económica e dirigirmos o país de modo a chegarmos em 1975 em condições,
para proclamarmos a independência em condições não tão gravosas como
aquelas que os nossos inimigos queriam.
Aquando da assinatura dos Acordos de Lusaka, tinham consciência da realidade dura e complexa que iriam encontrar?
Tínhamos.
Nós acompanhávamos a economia portuguesa, as dificuldades. Sabíamos que
não íamos encontrar uma situação boa, sobretudo do ponto vista
económico. A economia estava degradada. Havia muita fuga de capitais
para a metrópole naquela altura. A situação estava de facto muito
periclitante.
A
29 de Junho de 1975, o Presidente Samora Machel assinou um decreto de
nomeação do primeiro Conselho de Ministros da então República Popular de
Moçambique. Nessa altura, passa a ocupar a pasta de ministro da
Indústria e Comércio. Que desafio encontrou neste cargo, tendo em conta
que o país ainda estava num processo de organização, sem políticas de
desenvolvimento definidas?
O
primeiro desafio era controlar a sabotagem económica que estava em
curso, e muito intensa. As fábricas e máquinas eram sabotadas; o gado
era levado para fora. Havia uma situação gravosa. Os nossos
trabalhadores tinham sempre de andar atrás dos acontecimentos, para
evitar a degradação do processo da máquina de produção no país. Esses
eram os grandes desafios. Mas conseguimos, felizmente, porque os
trabalhadores, os moçambicanos, tinham consciência de que tinham que
defender o seu património para poderem sobreviver. Foi uma situação
muito grave. Não tínhamos experiência, pelo menos da minha parte, de
dirigir um ministério (...) tivemos de aprender a fazer as coisas
fazendo. Dizia, por exemplo, Samora que “nenhum de nós foi para escola
para aprender a ser ministro. Temos de aprender a nadar nadando”. e foi
assim que aconteceu.
Em
1977, a Frelimo organiza o III congresso, onde traça várias políticas
de desenvolvimento, as directivas económicas e sociais, como a
colectivização dos campos, visto que cerca de 80% da população vivia da
agricultura e havia necessidade de promover uma produção agrícola mais
intensa, e, igualmente, olhar para esta forma de organização social como
uma forma de desenvolvimento rural. Como membro sénior do Governo
(ministro da Indústria e Energia), qual foi o seu contributo na
definição desta estratégia?
A
estratégia foi definida em conjunto no Conselho de Ministros. Vimos a
situação económica do país, porque é preciso voltar um bocadinho para
atrás. No seu discurso, a 20 de Setembro, quando o Governo de Transição
tomou posse, o Presidente Samora apelou a todos, mesmo os estrangeiros,
que continuassem a trabalhar para a construção de um Moçambique
independente, mas esse apelo não foi ouvido. Houve o abandono completo
da máquina produtiva em Moçambique, desde as empresas agrícolas a
empresas industriais. Foi tudo abandonado. Fizemos um esforço de
reorganizar, tínhamos poucos quadros para dirigir o país, formados e com
experiência, de modo que demos os passos para podermos reorganizarmos o
aparelho produtivo, para podermos manter a produção nos níveis
possíveis para manter a economia a funcionar e corresponder às nossas
necessidades, abastecer o povo e ganhar divisas para podermos continuar a
comprar aquilo de que necessitávamos para a nossa vida. Essa análise
foi feita e vimos que era preciso, primeiro, reorganizar as empresas
abandonadas em unidades de produção, para, de uma forma centralizada,
podermos dirigi-las no seu processo produtivo
Mas
esta ideia de transformar os campos em cidades, de levar os serviços
que as pessoas tinham nas cidades para o campo, não era algo fácil?
O problema
foi discutido aqui e sujeito a tantas críticas injustas: o movimento
das aldeias comunais, porque o povo, os camponeses, estavam dispersos e
trabalhavam para as grandes empresas coloniais agrícolas ou, então,
produziam algodão para vender. Com o abandono dessas empresas, o
processo de produção do algodão não se tornou prioritário, tínhamos que
produzir comida para nós próprios; era preciso providenciar assistência
de saúde, escolas, expandir a educação para todo o povo. Não havia
escolas, de modo que o Presidente Samora encontrou como saída a
organização das pessoas em centros populacionais, aldeias comunais,
porque era mais fácil instituir escolas, hospitais, meios de transporte e
toda a assistência que era necessária para a população, e era também
importante para estimulá-las a formarem cooperativas de produção, em que
podiam trabalhar em conjunto aqueles que quisessem. Os que não
quisessem podiam trabalhar isoladamente. Para a população poder utilizar
os meios mais avançados da irrigação da terra (...) foi por isso que
estimulámos a população. Transformámos as grandes empresas agrárias
coloniais que existiam em empresas estatais, onde pudéssemos concentrar
toda a capacidade existente, para podermos continuar a produção
agrícola, isso no campo. Na cidade, nas empresas industriais, procurámos juntar
as empresas conforme as afinidades de produção, em unidades de
produção. Unidade de produção têxtil, mecânica, etc., que era para
podermos coordenar melhor o processo produtivo sob a supervisão do
Estado. Foi a necessidade das circunstâncias que foram criadas que nos
obrigou a fazer isso. Tivemos que pedir ajuda aos países amigos, aqueles
que nos apoiaram durante a guerra, para podermos levar a cabo a nossa
missão
Que obstáculos encontraram para fazer deste sonho uma realidade?
Como
disse, primeiro, quadros, mas sabe da história de 8 de Março. Tivemos
que formar quadros. Tivemos que encontrar mecanismos para formar
quadros. Mandar gente estudar fora e dentro do país para poderem
responder melhor às necessidades do país. segundo, com a declaração das
sanções à Rodésia, em resposta às decisões das Nações Unidas, sofremos
agressão estrangeira (...) tivemos de, a partir de 1976/7, encarar a
guerra da agressão, desencadeada pelos países racistas minoritários.
Então, tivemos que encarar dois problemas: a formação de quadros que não
existiam e enfrentar a guerra e a produção.
Olhando
para esta “deixa” de mandar as pessoas para a formação, para encararem
os problemas do país, em qual das gerações da Frelimo se enquadra,
assumindo que na altura em que iniciava a luta de libertação nacional
estava em Portugal e na altura em que o país tinha que formar quadros
estava do lado dos que estavam a avançar com esta iniciativa para
dinamizar o país. Em qual das gerações se enquadra, 25 de Setembro ou 8
de Março?
Geração dos moçambicanos envolvidos na luta de libertação de Moçambique...
Em
1977, também é traçado o Plano Prospectivo Indicativo, desenhado para
impulsionar o desenvolvimento, na década 80 (ministro da Agricultura
78-80). Qual o seu contributo na definição deste plano?
Era
ministro do Plano, recebi a missão do Comité Central para elaborarmos o
Plano Prospectivo Indicativo para corresponder ao plano de luta contra o
subdesenvolvimento em 10 anos. Não era uma tarefa fácil transformar o
país subdesenvolvido em 10 anos. Fizemos um plano racional e coerente,
de realização difícil, mas possível.
Quais foram os grandes sucessos desse plano?
O
grande sucesso foi mobilização total do povo que acreditava que era
possível transformar o país. Fizemos algumas obras nesse sentido. Há
coisas que foram feitas neste país resultantes do Plano Prospectivo
Indicativo e tínhamos ideia, todos, de por onde é que íamos e como é que
havíamos de ir. Chegava-se a uma fábrica e perguntava-se a qualquer
moçambicano “olha, quais são os produtos estratégicos para exportação?”.
Ele respondia: “Olha, quais são os produtos estratégicos para
abastecimento do povo?”, dizia. Cada fábrica sabia qual
era a sua tarefa de produção numa semana, duas e num mês. Quais são as
suas metas de produção. E havia estímulos para os trabalhadores. e mais:
a vontade de produção era tal que chegámos a inventar forças ocultas
entre nós. Vou contar, se me permite, um episódio que acho que vale a
pena contar. Com a tentativa de isolamento do nosso país desencadeada
pelos regimes minoritários da região, a indústria açucareira do país,
que no passado mandava ratificar os rolos de açúcar de Muende, na África
do Sul, não podia mandar para África do Sul (...) fizemos uma reunião
com os trabalhadores todos a dizer como é que iríamos fazer rolos. Os
trabalhadores disseram “Sr. Ministro, é possível”. É possível como?
“Vamos vazar o ferro”. E havia engenheiros jovens que diziam “não é
possível, é preciso saber a temperatura do ferro”. Ouvi-os a discutirem e
um dos operários disse “não. eu trabalho aqui há muitos
anos. Basta pôr a mão assim, já sei mais ou menos qual é a temperatura
do ferro”. Olha, acreditámos naquelas pessoas e nenhum rolo foi para o
estrangeiro para ser ratificado, foram todos vazados aqui e a campanha
de açúcar foi salva.
Mas,
para o sucesso do Plano Prospectivo Indicativo, várias barreiras
colocaram-se, principalmente na década 80, com a pressão da guerra de
desestabilização, a fome, as calamidades naturais, sobretudo na região
sul do país. Isto obstruía o plano de desenvolvimento traçado e forçou o
Governo a abandonar o modelo de economia centralmente planificado para a
economia de mercado. Como é que viveram esses momentos?
Na
década 80, os desafios tornaram-se cada vez maiores para o governo da
Frelimo. Houve pressão vinda da guerra de desestabilização, e, ao mesmo
tempo, a fome, as crises cíclicas decorrentes de calamidades naturais,
chuvas, cheias, secas... que obstruíam.
Qual foi o nível de influência de Mário Machungo para essa viragem?
Disse
bem uma palavra: a guerra de desestabilização, que tinha como
finalidade impedir que o país realizasse o seu projecto conforme o que
queria. Porque realizar o seu projecto conforme o que queria era uma
ameaça para os países racistas vizinhos. Era mau exemplo ver um país
negro aqui fazer aquilo que queria e com um alto nível de realização. É
por isso que sofremos a guerra de desestabilização. Esse é o primeiro
grande factor. Não é o modelo que estava errado, o que estava errado
eram os vizinhos que não queriam este modelo. Era uma ameaça para a sua
própria sobrevivência e nós não podíamos, evidentemente, sempre, lutar
contra um vizinho poderoso. Tínhamos que encontrar mecanismos de fugir a
uma agressão tão forte. Foi por isso que fizemos um bocadinho de
desvio: deixámos de uma economia centralmente planificada, porque,
enfim, as condições também não estavam muito maduras para fazermos uma
economia completamente planificada. É preciso criar forças produtivas
muito fortes e termos uma relativa centralização, com capacidade para
criar planos a nível local e integrá-los, depois, no plano global. Isso
tudo precisava, de facto, de um grande trabalho e, com a agressão,
tornava-se ainda muito difícil. Então, decidimos deixar de termos uma
economia centralmente planificada, descentralizamos um bocadinho.
Entregámos alguns sectores ao sector privado (...). O Presidente Samora
Machel, num comício, chamou atenção a dizer que o Estado não podia
continuar a vender agulhas, candeeiros, tudo, tínhamos que deixar aquele
modelo, porque de facto não era tarefa do Estado. Tínhamos que passar a
contar com a intervenção do sector privado para podermos levar a nossa
economia adiante. O próprio Presidente Samora reconheceu de facto que
devíamos relaxar um bocadinho.
E
como é que foi para o Presidente Samora Machel reconhecer que o modelo
económico que o país estava a seguir não estava a responder àquilo que
eram os problemas do momento e que a solução passava por aderir às
instituições de Bretton Wodds?
Foi a
prática que mostrou ao Presidente Samora e a todos nós que algumas
coisas não funcionavam. Quando o Presidente Samora dizia “não é tarefa
do Estado vender agulha, candeeiros”, foi a prática que mostrou que
quando ia a uma cantina encontrava torcidas, mas não havia candeeiros,
nas lojas do povo; encontrava agulhas, mas não havia linhas. Portanto,
esta planificação centralizada não funcionou. Foi a prática que mostrou
que não tínhamos ainda meios suficientes para dirigirmos uma economia
centralmente planificada.
E
ao decidir-se que o país tinha que abandonar a economia centralmente
planificada para uma economia de mercado, existia a certeza de que
estaríamos a optar por um modelo económico acertado?
Ninguém
tem certezas absolutas de nada. Dá-se passos e verifica-se se é
correcto ou não, dá-se outro passo e corrigem-se erros, e por aí em
diante (...) até hoje, ninguém tem certeza de que o modelo de economia
que estamos a seguir, liberalismo económico absoluto, serve. Não serviu.
Mas houve pessoas, quero recordar, quando estava no governo, nós já
estávamos nas instituições de Bretton Wodds, que apareceram vindo de
instituições internacionais, chamados os Chicago Boys, que vinham com
ideias do liberalismo económico e diziam-nos: “Abandonem este modelo de
Estado, tem que ser Estado mínimo. Deixem o resto. A economia privada e o
mercado corrigem tudo e vão estabelecer equilíbrio de mercado, dos
preços e tudo. Abandonem tudo.” E veio um senhor do Fundo Monetário
Internacional dizer “Liberalizar todos os preços”. Tínhamos alguns
preços controlados dos produtos essenciais para o povo. E eu disse não. O
governo não vai liberalizar todos os preços, porque isso,
imediatamente, vai afectar severamente o nosso povo (...) e disse-lhes
que, a exemplo dos outros países que fizeram a liberalização de
produtos, de bens essenciais, haveria greves, revoltas e tudo, se os
preços dispararem sem controlo. Chegaremos lá. Temos o nosso passo para
tal. Mais: chegaram e disseram “vocês têm de liberalizar tudo;
privatizar tudo de uma só vez”. E dizia-me o senhor “para grandes
doenças, grandes remédios”. Eu disse “olha, nós não aceitamos morrer de
gula, vamos seguir o passo”. E disse: “Se vocês não querem
aceitar, então, não vão ter apoio das instituições”. E eu disse: “Se
não vamos ter apoio das instituições, o povo saberá defender-se”. Fui
dizer ao Presidente Samora e ele disse vamos fazer um comício popular e
vamos dizer “Não recebemos o apoio que era necessário, temos que saber
sobreviver com os nossos próprios meios”. Dois meses depois, aceitaram
fazer o plano como nós queríamos.
Foi uma estratégia que resultou...
Não
uma estratégia, foi conhecimento da realidade. Não se pode impor
soluções estranhas a um povo. O povo tem, também, as suas soluções. Foi a
lição que eles também tiraram.
Mário
Machungo ocupou a pasta de ministro do Plano, de 1980 a 1986. Inácio
Nunes, militante da Frelimo, diz que o governo da Frelimo não organizou
quadros para gerir as lojas do povo, e elas não responderam à grandeza
das necessidades, por isso Samora recuou da decisão. Qual foi sua
influência e visão sobre esta iniciativa?
A
rede comercial que existia no tempo colonial foi completamente
destruída, primeiro, pelo abandono dos cantineiros, segundo, pela
guerra. Era preciso que os camponeses que estavam nas zonas rurais
continuassem a ter instrumentos para o seu próprio
abastecimento. Não vamos longe, aqui mesmo na cidade, em Chamanculo,
Malhangalene, com o 7 de Setembro, todas as cantinas foram destruídas e
abandonadas. E era preciso haver alguém... e não havia nessa altura
empresários moçambicanos, porque não estavam habilitados. No tempo
colonial era proibido aos moçambicanos exercerem actividade empresarial
privada. Obter uma licença para abrir uma cantina ou desenvolver uma
actividade empresarial, o moçambicano não conseguia. Tudo era feito por
estrangeiros. E a formação de um empresário não se faz de um dia para o
outro. E como é que haveríamos de resolver estes problemas todos. Então,
fizemos aquilo a que se chama lojas do povo. Como? Aglutinando alguns
quadros minimamente formados para gerir essas cantinas. Nós fomos
reabrindo as cantinas abandonadas para assegurar o abastecimento ao
povo. E foi isso: contar com as nossas próprias forças para resolver os
nossos problemas. E o nosso critério era procurar saber se a pessoa
tinha alguma formação, 4º ou 5º ano, e mobilizar para o trabalho.
Mas
as lojas do povo não conseguiram responder aos objectivos da sua
criação. A fome existia, os produtos não eram devidamente
distribuídos...
De
certo modo vieram a responder. Isto era um processo de planificação tão
complexo, que exigia uma organização muito grande. Chegámos ao ponto de
encontrar lojas que tinham torcidas, mas que não tinham candeeiros, e
outras que tinham candeeiros, mas que não tinham torcidas... por isso, o
Presidente Samora chegou à conclusão de que talvez seria melhor ir
deixando o sector privado com a tarefa de exercer essa actividade
económica, que é ter loja para o abastecimento do povo. Muitos deles
foram aqueles que tiveram prática na gestão dessas lojas e tornaram-se
empresários.
Isso para dizer que não foi um erro?
Não
foi completamente um erro. Foi a solução adequada para a altura, não
havia outra solução. Se não, teríamos que importar empresários
estrangeiros para nos dirigir.
Em
1986, ocupa a pasta de primeiro-ministro de Moçambique, curiosamente, o
primeiro no cargo. Nesta altura, já era evidente a necessidade de
mudança do modelo económico e Mário Machungo foi um dos agentes da
mudança. Qual foi a sua contribuição na elaboração e implementação do
Programa de Reabilitação Económica (PRE)?
A
minha contribuição como primeiro-ministro foi dirigir toda a economia
nacional. Nós criamos um corpo de coordenação da economia que se chamava
Estado Maior da Economia, em que todos os ministros da área económica
tinham assento, que era para coordenarmos as nossas actividades. Ainda
assim, tínhamos o nosso plano Estatal Central, que tinha como objectivo
realizar as tarefas principais da economia, que era imperativo ou de
realização obrigatória. Foi assim que fomos prosseguindo, até chegarmos a
um ponto em que tínhamos que dar mais um passo para a economia de
mercado, privatizar alguns sectores...
Neste momento de transição, qual foi a decisão mais marcante que tomaram?
É
difícil dizer qual foi a decisão mais marcante que o Conselho de
Ministros que eu dirigia tomou. Mas posso dizer que foi a recusa da
liberalização do sector da castanha de caju. Vieram dizer que “porque o
comércio é livre, vocês não podem impor, tem que se liberalizar”. Não
liberalizámos, porque nós temos experiência da indústria da castanha do
caju, do processamento da castanha do caju e quem vai sofrer são os
camponeses. Portanto, recusámos.
Mas, mais tarde, vieram a aceitar?
Vieram
os outros. Aceitaram e matou-se a indústria da castanha do caju.
Portanto, a decisão mais marcante do Conselho de Ministros que eu dirigi
foi a recusa à liberalização da indústria do caju.
Quando
Moçambique decide mudar o seu modelo económico para uma economia de
mercado, teve que, igualmente, incentivar o surgimento de uma classe
empresarial. Qual foi a estratégia?
Criámos
várias instituições para o efeito. Criámos o GAPI, que era uma
organização para o financiamento às Pequenas e Médias Empresas; criámos
também o Instituto de Apoio a Pequenas e Médias Empresas; criámos a
Caixa de Crédito Agrícola e Desenvolvimento Rural; criámos um conjunto
de instituições para o apoio ao sector empresarial emergente. E
funcionou. Apoiou o surgimento de muitas empresas, na área de
avicultura, agricultura, carpintaria, etc.
O PRE significou uma viragem muito profunda para a banca nacional. Os
bancos deviam começar a avaliar a concessão de crédito na base de
mérito, com a excepção de algumas empresas estatais que tinham um
funcionamento e uma importância muito grande para a economia. Mas
sabe-se que, até 1995, ainda existia muita atribuição de crédito sem
muito rigor, tanto ao nível do Banco Comercial de Moçambique (BCM), como
ao nível do Banco Popular de Desenvolvimento (BPD). Quais foram a
razões de fundo: proteger a emergência da classe empresarial ou evitar
falência das empresas para garantir emprego?
Em
1994, eu saí do Governo. E, até 1994, o que posso dizer é que as
empresas estatais, algumas que existiam, continuavam a ter o apoio
financeiro da banca estatal para manter o emprego e para manter o
funcionamento da economia. Era esse o critério. Até eu sair do Governo,
os bancos ainda não estavam privatizados. Existiam apenas bancos
estatais. Porque nós lançámos uma campanha ao nível internacional para a
criação de novos bancos. E não houve resposta. Até 1994, não veio
nenhum banco a querer criar um banco privado. E mesmo na possibilidade
que nós demos de privatização, não houve nenhuma proposta para aquisição
de um banco privado. Então, continuámos com bancos estatais,
direccionados a apoiar o sector estatal. Os primeiros bancos privados
surgiram em 1995 e tiveram uma outra maneira de abordagem de mercado. E
os bancos estatais, a partir de 1995, foram sendo privatizados, alguns. O
Banco Comercial de Moçambique, para dizer a verdade, não foi bem
privatizado, não foi privatizado dessa maneira, foi outro processo.
O Banco Popular de Desenvolvimento não escapou à onda de privatização. Valeu a pena?
Eu
digo-te seguramente que não. Eu já não estava no governo, estava noutro
banco, no Banco Internacional de Moçambique. A privatização do Banco
Popular de Desenvolvimento, como foi feita, não foi correcta. A
privatização do Banco Popular de Desenvolvimento podia ter sido feita de
outra maneira, que resalvasse as funções do banco de desenvolvimento
que eram exercidas pelo Banco Popular de Desenvolvimento, e privatizar,
talvez, as outras funções que o banco exercia, como o de banco de
retalho. Privatizar tudo não foi muito correcto. Havia coisas que
precisavam de uma reflexão muito grande. O resultado foi este: onde
parou o BPD? Onde parou o Banco Austral? Depois teve aquele processo
todo de falência, depois vieram intervenções de fora, etc., etc..
Deixámos de ter um instrumento muito importante de intervenção na
economia rural, que era o BPD, por causa da sua privatização, porque as
pessoas que compraram o banco já não estavam interessadas em intervir na
economia rural.
Qual foi o seu contributo para impedir que se avançasse com essa privatização?
Eu
estava fora do governo e não podia contribuir em nada. Não tinha força
nenhuma. Podia dar uma opinião e dei. Disse que não concordava com a
privatização do Banco Popular de Desenvolvimento da forma como estava
feita. Não foi acolhida e o resultado viu-se.
Hoje, passados mais de 20 anos, que lição tira dos dois modelos económicos, em termos de vantagens e desvantagens?
Os
modelos económicos, uns tinham vantagens e outros não tinham. Nós
tínhamos um modelo económico com características de Estado Social. Um
Estado que tinha a preocupação de responder às necessidades do povo, um
Estado inclusivo. Isto era uma coisa muito importante. O modelo que nós,
depois, adoptámos era de um Estado que não era inclusivo, um modelo
extremamente individualista, onde cada um vive de acordo com as suas
capacidades de intervir no mercado, etc. Os conceitos de solidariedade
que prevaleciam no modelo anterior foram todos perdidos e
as questões da pobreza, da degradação dos níveis de ensino, do
atendimento ao nível da saúde foram mais gravosas no modelo que se
adoptou depois, do que no modelo primitivo.
Mário
Machungo testemunhou vários projectos de combate à pobreza do governo
da Frelimo, desde o PPI, PRE, PARPA, entre outros, mas a pobreza
continua sendo um dos grandes desafios do governo da Frelimo. Qual é, de
facto, o modelo mais acertado para reduzir os níveis bastante
significativos da pobreza no país?
É
um bocado difícil dizer qual deve ser o modelo mais acertado. É vermos
as experiências do passado e vermos como podemos juntá-las para
prosseguirmos para o futuro. Na agricultura, deixar de considerar a
agricultura como base para o desenvolvimento é um erro. A agricultura sempre foi a base para o desenvolvimento. Foi e vai continuar a ser.
No discurso político, isso é uma realidade. Mas sente que na prática isso não está a acontecer?
Na
prática, pode não acontecer, porque os fundos dedicados à agricultura
para a criação de infra-estrutura, etc., não são suficientes. só agora é
que estão a surgir alguns esforços no sentido de levar a agricultura a
desempenhar as suas funções, ou as funções que nós queremos que
desempenhe, para que seja de facto a base para o desenvolvimento
económico do país. Eu quero lembrar que, uma vez, quando eu ainda estava
no Governo, vieram algumas instituições que diziam “deixem de pensar na
agricultura, que ela vai andar por si”. Olha, no campo da
comercialização agrária, matamos as Agricons, etc, que bem ou mal eram
as instituições que iam ao campo fazer as comercialização agrária. Os
camponeses não ficavam com produção por vender. Tinham uma instituição
que sempre aparecia e vendia os seus produtos. Não era matar tudo de uma
vez, era ver como se podia conjugar o sector estatal e o sector privado
para resolver o problema comercial. O sector privado tem as suas
preocupações que não são as mesmas com a dos sector estatal, que é o bem
público, que o sector privado não resolve. Então, podia muito bem
juntar as duas coisas. Nos países vizinhos, existem os chamados bords
comerciais, que interferem no apoio ao camponês na comercialização
agrária e na compra dos seus sustentos quando não há outros
intermediários que comprem os seus excedentes. Não podemos dizer ao
camponês produza... e depois não ter quem compre, e ficar
com a produção. No passado, também cometemos esses erros. Houve
produções que ficavam com os camponeses, porque a nossa planificação
estava incompleta, mas isso foi um erro, não vou dizer que estava
correcta. Portanto, não há coisas que sejam absolutamente assim... temos
que combinar as coisas no mercado para poderem funcionar e servir os
objectivos que nós queremos.
O combate à pobreza continua a ser um dos grandes objectivos do governo da Frelimo. Que conselho é que daria neste momento?
Eu
não dou conselhos, mas posso contribuir com a minha opinião. Que me
perguntem nesta área ou neste sector, o que se deve fazer. Talvez dê a
minha opinião ou diga, não sei.
A Frelimo celebra este ano o 50º aniversário. Como é que descreve este partido ao longo dos 50 anos?
Falar
dos 50 anos da Frelimo é uma questão emocionante para mim. Celebrar 50
anos da fundação da Frelimo é evocar a memória de um moçambicano maior. O
génio e arquitecto da Unidade Nacional e da moçambicanidade, Dr.
Eduardo Chivambo Mondlane. Celebrar o cinquentenário da Frelimo é
celebrar o cidadão, parafraseando o grande poeta, José Craveirinha,
quando diz “eu sou cidadão de um país que ainda não existe”. Esse
cidadão de um país que ainda não existe compreendeu que a emancipação do
povo moçambicano tinha de assumir uma forma nova, para ser vitoriosa.
Celebramos o líder que compreendeu os insucessos das lutas das
resistências contra a ocupação estrangeira do nosso país, que a formação
pelos nacionalistas moçambicanos do movimento de combate e de
resistência à dominação exigia uma nova abordagem, para transformar os
insucessos e as debilidades em sucessos e vitórias. Essa reflexão
conduziu à organização de esforços para a agregação das forças dos
movimentos nacionalistas moçambicanos numa única organização, com
capacidade para mobilizar todo o povo, independentemente da sua origem
social, raça, ideologia e crença religiosa, e criar, acima disso, nesta
diversidade, um povo unido por uma única organização, a Frelimo, à volta
de um objectivo comum: lutar contra a ocupação estrangeira; esta visão,
este acreditar no povo unido, este génio de saber organizar a vitória
que celebramos este ano. Celebrar os 50 anos da criação da Frelimo é,
também, exaltarmos os moçambicanos que sacrificaram o seu conforto e o
seu bem-estar para se dedicarem à tarefa sagrada de libertar a pátria,
para uma independência total e completa. Celebrar os 50 anos é
curvarmo-nos perante a memória imortal do Dr. Eduardo Chivambo Mondlane.
Celebrar os 50 anos da criação da Frelimo é prestar uma justa homenagem
a todos os que corresponderam ao apelo de Mondlane. seguiram os seus
passos e aceitaram sacrifícios que a luta impunha, galvanizados pela
palavra de ordem de Mondlane: “a luta continua”. Celebrar
os 50 anos é evocar a epopeia que nos conduziu de 25 de Junho de 1962 a
25 de Junho de 1975 e nos legou novas responsabilidades, novas tarefas e
desafios, nas novas frentes de luta pela independência económica e
consolidação da nossa consciência nacional. É isso que eu considero que é
celebrar os 50 anos
Mário Machungo dedicou 20 anos (1974-1994) da sua vida adulta ao governo da Frelimo. Como perspectiva este partido no futuro?
Eu
penso que é pouco para aquilo que o povo ou que a nação precisa, para
nós darmos a solução dos problemas que o país enfrenta...
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