pesca e armazém frigorífico, em sociedade com Mouta Liz, outro dos condenados das FP-25. Classificada como «Import-Export», a empresa vale várias dezenas de milhares de contos, o que não é nada mau para um militar que ganha também a vida como tenente-coronel de Cavalaria. A perturbada existência deste homem ingénuo e generoso, que aos ó2 anos mantêm inalterado o orgulho de ser militar e uma fé atormentada no absurdo porvir do poder popular é um quase «remake» da saga de outro herói, hoje colocado bem longe da nossa memória colectiva: Machado Santos, o estratego do 5 de Outubro. Adulados e excomungados, um e outro se revelaram populistas e sentimentalões, envolvendo-se com pequenos grupos políticos de reduzida expressão até à ruptura com o regime que ajudaram a fundar. A Carbonária de um e as FP-25 do outro. Machado Santos passou de segundo-tenente a vice-almirante, acabando por sucumbir na «noite sangrenta» de 19 de Outubro de 1921 às mãos dos que antes o endeusavam. Melhor sorte espera Otelo, o major da madrugada que pôs fim ao pesadelo, que chegou a ser general e já confessou, numa altura em que se encontrava mais nostálgico, a secreta esperança de não vir um dia a ser assassinado. Quando à uma e meia da tarde de 26 de Abril abandonou o posto de comando do Movimento das Forças Armadas, na Pontinha, de onde havia dirigido o derrube da ditadura, Otelo era um homem politicamente «nai'f». A breve anotação na ficha da PIDE é esclarecedora - «democrata puro» -, bastando calcular o alto apreço em que a policia política da ditadura tinha a pureza. Além de professor da Escola de Sargentos e da Academia Militar, tinha sido instrutor da Legião Portuguesa, que treinara dedicadamente aos fins-de-semana em Cascais. Sabia o que não queria - a ditadura e a guerra -, mas não o que desejava para o futuro que irrompia à sua frente. Considerava-se então um social-democrata, coisa que não aquecia nem arrefecia vinda da boca de um militar, como ingenuamente confessou ao EXPRESSO na sua primeira grande entrevista. Para trás ficavam 37 anos de vida despreocupada, só endurecida pela disciplina militar, falha de leituras e de sonhos de liberdade, sem um conhecimento minimamente avisado sobre o sentir oculto da sociedade. Nunca ouvira sequer falar de Cunhal, com quem no «Verão Quente» de 75 haveria de discretear, em privado, em casa de um amigo comum. Segundo filho de um funcionário dos CTT e de uma empregada dos caminhos-de-ferro, Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho nasceu em Lourenço Marques (hoje Maputo) a 31 de Agosto de 1936. A família classificava-se a si própria como «remediada», habitando a casa mandada construir pelo avô materno, ex-capitão do Exército, no Bairro da Carreira de Tiro. O pai, homem de bem com o regime, seguia o padrão clássico dos colonos do Continente, castigando alarvemente os criados pretos da casa sob o olhar assustado de Otelo. A mãe limitava-se a seguir a norma, mandando os mal comportados ir ter com o patrão, quando o marido estava fora, sujeitar-se «voluntariamente» ás palmatoadas. Evacuado para Lisboa aos 6 anos, por sofrer de paludismo, ficou a viver com os avós maternos na Rua Elias Garcia, frequentando a escola primária da Visconde Valmor. Seguiu-se o Liceu Camões, onde fez o 1º ano, regressando depois a Lourenço Marques, onde tudo continuava na mesma, que para ele representava o melhor dos mundos. No liceu que ostentava o nome de Salazar fez o 5º ano. Era um cabula, com notas baixas e chumbo certo a Matemática, mais aplicado no desporto - futebol pingue-pongue, natação, voleibol – do que nos estudos. O seu herói imaginário era então Robin dos Bosques, mais pelo lado temerário e optimista do que pela faceta romântica. E delirava com Sandokam e o terrível tigre da Malásia. Retomou a Lisboa e ao Camões para fazer o 6º ano, à boleia da licença dos pais mas acabou por voltar, terminando o 7º ano já em Moçambique. A qualidade das suas «performances» escolares melhorou bastante, revelando-se mesmo um aluno de eleição na disciplina-modelo da ditadura- Organização Política e Administrativa da Nação -, a que dispensou de exame com 17 valores. Fascinado com a figura do avô paterno - um alentejano de Moura que, apesar de baixo e gordo, trocara o emprego certo nos Correios por uma ruinosa carreira no teatro itinerante -, Otelo quis também ser actor. Na tentativa de imitar o «velho», aos 15 anos pediu ao comissário provincial da Mocidade Portuguesa para ser director da secção de teatro do Liceu Salazar. Mas a teimosia não deu grandes frutos. Anos mais tarde, quando frequentava pela última vez o Camões, haveria de demonstrar até à exaustão, nas múltiplas tentativas de exibir talento, que do Otelo alentejano, que inspirara o seu baptismo católico, pouco mais herdara do que o nome. Cumprido o 7º ano, acabou por ver-se obrigado a seguir para a Escola do Exército, por ajuizada vontade do avô materno, que fez orelhas moucas aos seus protestos de vocação. Mas nem a rigidez da praxe castrense impediu a recaída. Mentor do grupo teatral da caserna, ali encarnou novos personagens de circunstância, sem grande sucesso. Nada que o impeça ainda hoje do conceder a si próprio o benefício da dúvida o de lamentar não ter obtido da família a satisfação do capricho do tentar a sorte no Actor's Studio, do Nova Iorque, que deu ao mundo Robert De Niro. Foi o contacto com os militares spinolistas na Guiné, mais preparados política e culturalmente, que lhe permitiu começar a abrir os olhos. Fora até aí um «militarão», na mais pura acepção do termo, tendo já cumprido orgulhosamente duas «missões de soberania» em Angola ao serviço da ditadura - entre 1961 e 1963, ainda alferes, e de 1965 a 1967, já capitão. Colocado em Bissau em 1970, ficou sob as ordens directas do Spínola, que o encarregou das missões de propaganda e de acção psicológica. A experiência prolongou--se até 1973. Guarda desse tempo gratas recordações, apesar da passagem pela capital guineense ter ficado tragicamente assinalada pela morte de uma filha, vítima do paludismo cerebral. O modo como desempenhava o papel de intérprete junto dos correspondentes estrangeiros abriu fissuras no seu relacionamento com Spínola, mas nada que chegasse para entornar o caldo. É já na fase final da guerra, militarmente perdida, que surge como um dos principais dinamizadores do movimento de contestação ao decreto-lei 353/73, que deu origem ao Movimento dos Capitães. Num gesto que retrata bem o seu voluntarismo aventureiro - e a imprudência que lhe está associada -, a 5 do Outubro de 56, cadete da Escola Militar, tinha comparecido fardado a um jantar republicano no Conde Redondo, presidido por António Sérgio, arrastado por um primo que no entusiasmo dos verdes anos se mostrava ansioso por ver de perto as grandes figuras republicanas da época. Mas a PIDE não ligou. A circunstância de ser professor do Táctica de Artilharia na Academia Militar aconselhava-o para o desempenho da complexa e arriscada missão de pôr fim à ditadura. Foi por isso designado responsável pelo sector operacional da Comissão Coordenadora do MFA, condição em que comandou o golpe a partir do posto de comando clandestino instalado no Quartel da Pontinha. O dia 25 de Abril foi o mais feliz da sua vida, aquele em que cumpriu a suprema ambição de adolescência de vir a ser um dia «uma pessoa célebre, capaz de um feito heróico, uma coisa em grande», como haveria de revelar um dia. O sonho materializava-se numa dimensão que nem a sua fértil imaginação julgara possível: nunca e nenhuma parte do mundo houve tanta liberdade como naquela altura em Portugal. Os dias que se seguiram foram de aprendizagem acelerada. Ninguém terá tido na agitada história democrática portuguesa tanto poder ao alcance das mãos. Nem nunca ninguém o terá recusado de forma tão categórica como ele. Não quis o cargo de chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, que Ihe foi oferecido por Spínola logo a seguir ao golpe, e recusou a possibilidade de ascender à Presidência da República, ponderada no «Verão Quente» de 75. Limitou-se a fazer parte do Conselho dos Vinte e do Conselho da Revolução, e foi comandante do Copcon e da Região Militar de Lisboa - graduado primeiro em brigadeiro e depois em general. Em Maio de 75 integra, com Vasco Gonçalves e Costa Gomes, 0 Directório, uma estrutura política de cúpula do MFA que exerce grande influência sobre os IV e V Governos Provisórios. Ironicamente, será ele a aconselhar o perturbado general comunista a abandonar o Governo e a dar os dois passos atrás, sugerindo-lhe que «leia, medite e descanse». É dessa época a sua polémica declaração de que as armas desviadas de Beirolas pelo capitão Álvaro Fernandes - segundo este com seu prévio conhecimento - se encontravam «em boas mãos», sendo certo que essas mãos eram, sobretudo, de activistas das organizações de extrema-esquerda. Otelo personificava o sonho de uma segunda revolução - um outro 25 de Abril, puro e duro, tal e qual o haviam imaginado no exílio os intelectuais maoístas e trotsquistas fugidos à guerra. Em Junho desse ano, no rescaldo de um jantar com oficiais do governo militar de Lisboa no Mercado do Povo, profere, aos microfones da Rádio Renascença, a propósito dos assaltos da extrema-direita às sedes dos partidos de esquerda, a «frase assassina»: «Oxalá' não tenhamos que meter os fascistas no Campo Pequeno...» Voltará ao tema no regresso de Cuba, em Julho, quando no aeroporto de Lisboa um jornalista - eu próprio, então redactor d' «0 Século» - se interessa por saber se ainda mantém a ideia. A resposta é categórica: «Eu disse: 'Oxalá não tenhamos que meter...' E agora digo: 'Metemos de certeza...'». Glosando a onda de indignação que a declaração provocara dentro e fora do pais, o líder socialista sueco Olof Palme, então primeiro-ministro, desmistifica a bravata, demonstrando um conhecimento informado sobre o seu autor: «Isso são coisas que se dizem mas nunca se fazem.» Os dias que permaneceu em Cuba (21 a 30 de Julho de 75), onde foi acolhido calorosamente por Fidel, que o trata como «um irmão», estão indelevelmente marcados na sua memória. «Se tivesse a cultura Iivreira e um curso de Direito que me permitisse ter a visão clara do que é este país turbilhão, podia ser o Fidel Castro da Europa», chegou a desejar. A guerra civil foi mais do que um fantasma a pairar sobre o país - foi uma emergência à espera do sinal que nunca veio. A possibilidade real que teve de desencadear a confrontação armada permite-lhe ainda hoje afirmar, com total legitimidade, evitou a guerra civil em Portugal. Conotado com a ala mais radical do MFA, foi preso em Janeiro de 76, em consequência dos acontecimentos do 25 de Novembro, acusado de abuso de poder durante o período em que comandou o Copcon. A nota de culpa condena, sobretudo. mandatos de captura que assinou em branco. Passa 44 dias na prisão. Libertado, candidata-se às presidências de Junho. E a altura em que diz que «a democracia parlamentar não satisfaz as necessidades de uma política real ao Serviço das classes trabalhadoras». É derrotado por Ramalho Eanes, que vence à primeira volta com mais de 60% dos votos, fica à frente de Pinheiro de Azevedo e de Octávio Pato. Pela primeira vez na história de mais de meio século do PCP, muitos mais fervorosos militantes comunistas desrespeitam as orientações de Cunhal, mesmo no Alentejo estalinista, e votam em Otelo. É a consagração na derrota do homem que os pobres e os sonhadores identificam do seu lado. Octávio Pato fica-se pelos 7,5%, a assinalável distância do capitão de Abril, que, apesar de mal amado por todos os poderes instituídos, conquista o segundo lugar, com 1ó,2%, que representam aos seus olhos um imenso exército de 800 mil sofredores. Numa extrema-esquerda sem líder nem liderança, Otelo é a figura carismática que as organizações elevam à condição de herói do povo, por puro oportunismo ou por calculada adulação. A sua imensa vaidade facilita tudo. Em Outubro de 76 volta a ser preso agora durante 22 dias - e suspenso das fileiras do Exército, passando à reserva em 79. Volta a concorrer ás presidenciais em 80, quando apela à resistência violenta no Alentejo contra o desmantelamento da Reforma Agrária, mas o resultado que obtém é desolador - 1,5%, com Eanes a somar 56,4% e Soares Carneiro 40,3%. Em 1982 é reintegrado, provado que fica que as suas infracções eram mais políticas do que militares. E no ano seguinte chega a ser proposto pelo Presidente Ramalho Eanes para a Ordem da Liberdade, mas recusa a homenagem, chocado com a multiplicação de comendadores. Em Junho de 84 volta a ser preso, desta vez sob a acusação de liderar as autodenominadas Forças Populares 25 de Abril (FP-25), a organização armada que lutava «por uma revolução socialista». Confessa-se comunista, ainda que numa acepção pouco ortodoxa, sem ligação às estruturas organizadas do PCP, de que sempre desconfiou. Reparte os cinco anos de presídio entre Caxias e a Casa de Reclusão Militar de Tomar. Envolvido em actividades conspirativas com a esquerda radical, na circunstância representada por Isabel do Carmo e Carlos Antunes, sobreviventes do moribundo PRP-BR, interrogava-se amiúde sobre o que fazer em favor do povo. E dai ao aventureirismo fora um passo. Era uma época em que os projectos megalómanos de conquista do poder, num ajuste de contas com o 25 de Novembro, irrompiam ainda das teses acaloradas dos líderes de gabinete. A utopia continuava a ter um rosto, embora já não o poder de tomar o poder. Como é típico dos militares, Otelo - que chegou a encontrar-se com Kadhafi na Líbia - pensa a escrever e escreve a pensar, acabando por deixar cair nas mãos da polícia um conjunto de documentos altamente comprometedores, dos quais se destacam os célebres cadernos de capa verde e capa preta, onde (quase) tudo é anotado com patético rigor. Aos homens do Ministério Público, instalados no Tribunal Especial de Monsanto, pouco mais resta do que cruzar as fontes. Embora nunca até hoje tenha assumido envolvimento com a organização paramilitar armada que opunha «a violência revolucionária à violência burguesa», Otelo foi condenado a 18 anos de prisão, dos quais cumpriu cinco. Restituído de novo à liberdade em 89, aguarda sete anos um perdão ou uma amnistia que o Parlamento aprova na fase final da Presidência de Mário Soares Tendo avisado já que «haja o que houver nunca mudará de rumo», é um daqueles casos à volta dos quais se extremam os sentimentos: há quem ache que tudo lhe deve ser perdoado por ter feito o 25 de Abril; há quem o olhe como um facínora, que deveria passar muitos anos atrás das grades. Patriarca de um pequeno clã, com dois filhos já adultos - Maria Paula (37 anos) que trabalha com ele na empresa angolana e Sérgio Bruno (33), proprietário de uma empresa de «software» de sucesso que espera ficar rico aos 40 anos -, Otelo é herói maldito da mais pacífica revolução da História que importa conhecer - para amar ou detestar. Na certeza plena de que influenciou decisivamente a aventura colectiva de várias gerações de portugueses. (In Revista "Expresso" – 17/04/1999) |
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