CONSTRUIR A DEMOCRACIA PARA PRESERVAR A PAZ
Nota pastoral do Conselho Permanente da CEM
Às comunidades cristãs
e aos homens e mulheres de boa vontade
- Aproximando-se o 20º aniversário da assinatura do Acordo Geral de Paz em Roma, em 4 de Outubro de 1992, nós, os membros do Conselho Permanente da CEM, reunidos na nossa segunda sessão anual, em nome dos Bispos Católicos de Moçambique, queremos, com a nossa solicitude de pastores e como cidadãos, refletir convosco sobre o caminho feito nestes 20 anos do Acordo Geral de Paz e da incipiente convivência democrática, para apreciarmos os frutos positivos alcançados, discernir o que ainda precisa de ser consolidado e chamar a atenção para alguns constrangimentos e ameaças no processo da construção de um Moçambique independente, soberano, pacífico e capaz de assegurar a prosperidade e o bem-estar para todos.
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CONSTRUIR A DEMOCRACIA
PARA PRESERVAR A PAZ
Nota
pastoral do Conselho Permanente da CEM
Às comunidades cristãs
e aos homens e mulheres de boa
vontade
1.
Aproximando-se o 20º
aniversário da assinatura do Acordo Geral de Paz em Roma, em 4 de Outubro de
1992, nós, os membros do Conselho Permanente da CEM, reunidos na nossa segunda
sessão anual, em nome dos Bispos Católicos de Moçambique, queremos, com a nossa
solicitude de pastores e como cidadãos, refletir convosco sobre o caminho feito
nestes 20 anos do Acordo Geral de Paz e da incipiente convivência democrática,
para apreciarmos os frutos positivos alcançados, discernir o que ainda precisa
de ser consolidado e chamar a atenção para alguns constrangimentos e ameaças no
processo da construção de um Moçambique independente, soberano, pacífico e
capaz de assegurar a prosperidade e o bem-estar para todos.
I.
OS FRUTOS DA PAZ SÃO A JUSTIÇA E O BEM COMUM
A paz um bem comum a
ser preservado por todos
2. Importa-nos, antes de mais, reiterar que
o Acordo Geral de Paz constitui um marco decisivo na história do nosso país. É,
por isso, um bem comum que deve ser celebrado e preservado, e pelo qual todos
devemos agradecer a Deus Criador e Providente. Está na memória de muitos
moçambicanos, sobretudo dos mais velhos, que durante os anos trágicos da
guerra, crentes de todas as confissões religiosas presentes em Moçambique
envidaram esforços, rezando instantemente, na ânsia de ver o conflito armado
terminar.
3.
Nós, os Bispos
católicos de Moçambique, demos a nossa contribuição em diversos níveis e de
diversas maneiras. Através das nossas cartas e outras comunicações pastorais, procuramos
confortar e animar o Povo moçambicano a manter-se numa atitude de esperança na
hora de Deus, a hora da Paz. Instantemente fizémos apelo às forças políticas e
aos atores em confronto para ter a coragem de depor as armas, substituir o
barulho das mesmas com a voz da razão, do diálogo sincero e construtivo, como
convém aos filhos dum mesmo Povo.
Os frutos do acordo de
paz
4.
Volvidos 20 anos da
assinatura deste Acordo importante para todos os moçambicanos, podemos afirmar,
sem vacilar, que são incontestáveis os frutos positivos que a paz trouxe. Com
assinatura do Acordo Geral de Paz conseguiu-se alcançar a tão suspirada reconciliação
das partes envolvidas no conflito. É sabido que, durante os dezasseis anos, a
guerra fratricida não poupou ninguém, eliminou vidas humanas, destruiu o
património nacional, dilacerou e desintegrou todo tecido social da família
moçambicana. Mas com o cessar-fogo e o advento da paz, foi possível iniciar o
processo de restauração e regeneração da unidade nacional; as partes em
hostilidade foram chamadas a entrar numa dinâmica de diálogo e a cooperar para
a reconstrução do país; assim temos hoje um parlamento nacional, qual espaço
dum debate aberto e permanente.
5.
A nível internacional, no concerto das
nações, também a imagem de Moçambique ficou promovida com o fim do conflito:
foram assinados alguns acordos com outros estados e instituições internacionais;
o nosso país deixou de ser apenas terra de notícias dramáticas e passou a
veicular também boas notícias: de paz, de reconciliação, de unidade, da vontade
de construir um estado de direito, de sair da pobreza absoluta e de caminhar
para a prosperidade.
6. Do ponto de vista económico e social, com o
Acordo tornou-se possível a circulação de pessoas e de bens, a reconstrução e a
expansão de algumas infraestruturas sociais e económicas: escolas, hospitais,
empresas, pontes, linhas férreas, rede elétrica e telefónica, etc. Neste
contexto, são de considerar como frutos do Acordo Geral de Paz a liberdade de
expressão nos meios de comunicação social, o melhoramento das relações entre o
Estado e as religiões, o livre associativismo, independente do poder político
ou dos partidos. Mesmo com a prevalência ainda de certas limitações e
fragilidades, podemos admitir que, terminados os confrontos armados, a
sociedade civil vai-se afirmando cada vez mais em Moçambique.
II.
A PAZ AMEAÇADA
Constrangimentos e
ameaças à paz e a convivência democrática
7. Não obstante os inegáveis aspetos
positivos, não podemos, como pastores e como cidadãos, fechar os olhos e ficar
indiferentes diante de algumas situações e práticas que ao nosso ver põem em
causa a preservação da paz e a construção de um Moçambique para todos. É sobre
esses aspetos que nos preme chamar a atenção de todos, por forma a evitar
aquilo que possa perigar a convivência pacífica e democrática no país.
8. No que concerne ao aspeto da convivência
política, ao confrontar o que o Acordo Geral da Paz reza nos seus princípios
gerais com a práxis do dia-a-dia dos partidos pode-se perceber uma certa
divergência ou seja uma tendência da parte destes em desatender o espírito do
Acordo. Com efeito, o Acordo prevê que os partidos observem e apliquem na sua
práxis os princípios fundamentais tais como, a prossecução de fins democráticos
e de interesses nacionais e patrióticos. Ordena igualmente que, a fim de
assegurar a paz e a convivência democrática, tenham dentro de si uma formação e
estruturação democráticas e transparência dos seus órgãos (cfr. Protocolo II, Dos critérios e modalidades para a formação
e reconhecimento dos Partidos Políticos).
Necessidade de
partidos verdadeiros e não retoricamente democráticos
9.
Observando porém, hoje
a vida e o modo de atuar dos partidos, é caso para perguntar: não estarão os
partidos políticos, se não todos pelo menos uma boa parte deles, longe de
observar estes ordenamentos? Não estaremos nós diante de um paradoxo de partidos
que retoricamente declaram-se defensores da democracia mas, efetivamente, na
sua práxis interna e habitual são autoritários? Não é, com efeito, a elite do
partido, que tende a impor aos demais as próprias ideias, preferências e
interesses, constrangendo a maioria esmagadora dos seus membros a ter que se
contentar em aquiescer e seguir a disciplina partidária traçada pela elite? Não
terão muitos membros dos partidos políticos medo de expressar a própria opinião,
quando difere daquela da elite dirigente? Serão consistentes e sustentáveis uma
democracia e uma convivência pacífica assentes no medo de pensar diferente e de
expor publicamente o próprio pensamento? A democracia supõe a liberdade dos
cidadãos. Com efeito, cidadãos e partidários que não promovem a liberdade e os
direitos fundamentais das pessoas não podem assegurar o futuro da democracia
nem preservar a paz. A democracia e a paz no nosso país só estarão garantidas
se houver uma efetiva transformação dos partidos políticos, para que sejam não
somente retórica mas verdadeiramente democráticos, a partir do seu interior.
Neste caso se aplica também o antigo princípio: “ninguém dá o que não tem”!
Fraco Espírito de
respeito, diálogo e tolerância pelo diferente
10. Sempre no desejo de contribuir para uma
maior reflexão sobre a nossa convivência nestes 20 anos, após o Acordo Geral de
Paz, podemos continuar a perguntar, se não estarão ameaçadas a democracia e a
paz, quando temos a impressão de assistirmos no nosso país a um renhido
antagonismo e a uma falta de diálogo e de tolerância entre os dois partidos
mais fortes, com tendência de se denigrirem reciprocamente, ao ponto de não
mais poderem ver e apreciar adequadamente os aspectos positivos que acontecem
no seio do outro? Não temos visto na aula parlamentar situações em que se apoiam,
com artificial vivacidade, discursos inconsistentes, simplesmente porque provêm
dum membro do mesmo partido político, ao mesmo tempo que se discorda e se
atacam discursos que mereciam um pouco mais de consideração, só pelo simples
facto de terem sido proferidos pelo membro do partido oposto? Com este modo de
proceder, não se estarão a colocar os interesses dos partidos políticos acima
do interesse nacional?
11. Ligado a este aspecto, quer parecer-nos
que a democracia, a unidade nacional e a paz ficam igualmente ameaçadas quando
os partidos políticos, na azáfama de atrair mais membros, tendem, contra todas
as regras democráticas, a manipular retoricamente as populações e a arrastar os
seus camaradas e a sociedade civil em geral a olhar para a realidade social de
uma maneira distorcida, segundo os seus interesses e a disciplina do próprio
partido, em detrimento do bem comum. Temos a impressão de que os partidos
políticos, de um modo geral, difundem uma visão dualista da sociedade e
equacionam as coisas com esta fórmula simplista: “nós somos os bons e os melhores, os outros são maus e incompetentes”.
Esta visão não permite objectividade na análise e na procura de soluções para os
problemas que apoquentam o país. Objetivamente falando, há bons e maus frutos
em todas partes, independentemente da filiação partidária, étnica, religiosa ou
económica. É necessária a coragem da verdade, para valorizar o bem e denunciar
o mal que existem dentro e fora do próprio partido político.
Nem
a absolutização dos partidos nem o culto da personalidade garantem a democracia
12. Se continuar a prevalecer a tendência da
absolutização dos partidos políticos e o culto da personalidade dos próprios
dirigentes, não será garantida a paz em Moçambique. Nenhum partido nem mesmo os
seus líderes têm atributos divinos. Todos são figuras ou realidades humanas e
históricas e, enquanto tal, marcados pela fundamental finitude e limitação,
necessitando, por conseguinte, de uma crítica e de reformas contínuas a fim de
se evitar a distorção e, assim, puderem contribuir para o bem comum. A idolatria
dos partidos e o culto da personalidade são graves impedimentos para o
crescimento na liberdade e a elaboração de críticas construtivas. Quando isso
acontece, aqueles que procuram apresentar críticas construtivas, se estas não
são bem-vindas, são vistos como persona non grata, como “não sendo dos nossos”, sofrendo, por
isso mesmo, humilhações e represálias. Este constrangimento gera conformismo
acrítico e antidemocrático.
Usurpação fonte de
conflitos
13.
A usurpação, isto é, o
ato de se apropriar de forma ilegítima de bens morais ou materiais pertencentes
a outrem ou ao público constitui sempre fonte de tensões e conflitos, enquanto
se funda no ato de injustiça, com o recurso da força ou da intimidação. É
notória a tendência dos partidos maioritários de reclamar o privilégio de se
considerarem os únicos benfeitores do país e, por isso mesmo, os legítimos
representantes do Povo Moçambicano. Por esta via, excluem e negam aos outros o
direito de existir e de participar para o crescimento e desenvolvimento do país.
É frequente ouvir, por um lado, a reivindicação da parte de algum partido
político de ser o pai da democracia em Moçambique. Em tais revindicações não
falta, amiúde, uma linguagem belicista, ameaçando retomar o uso de armas ou
atear o país de fogo. E, por outro lado, escuta-se a reivindicação de
antiguidade, reivindicação essa que é, não poucas vezes, acompanhada de frases
feitas e exacerbadas tais como: “o
nosso Partido é que fez, faz e fará”. Ouvindo semelhantes reivindicações,
exclusivistas, parece que estamos diante de sujeitos revestidos de atributos
infinitos e de impecabilidade, que não necessitam de alguma crítica ou
correção. A não admissão de erros e da necessidade de críticas e correções, sobretudo
nos partidos políticos maioritários, conduz a um autoritarismo antidemocrático.
14.
Ameaçam também a paz e
a justa convivência democrática, a usurpação do património nacional. Temos
assistido a casos de privatização de bens ou de espaços, inicialmente
destinados às comunidades, por meio de venda ou de contractos que só beneficiam
uma elite minoritária no país. É o caso, por exemplo, da devastação rápida e
excessiva das nossas florestas, por obra de madeireiros locais e estrangeiros,
bem como a atribuição de espaços públicos, como praias, ilhas e reservas
florestais, a cidadãos nacionais ou estrangeiros, que aos poucos vão-nos
transformando em espaços de uso privado e exclusivo, negando o seu usufruto à
maioria dos moçambicanos. A autoridade estatal ou governativa, a qualquer nível:
local, municipal, distrital, provincial ou nacional, não dispõe de forma
absoluta dos bens de uso comum. É simples administradora e não proprietária.
Infelizmente há casos, e não são poucos, em que, servindo-se e abusando do
cargo que se tem na sociedade, os interesses privados e individuais, do partido
ou do grupo, prevalecem e são postos acima do interesse e da preocupação do bem
comum. Nunca se deveria permitir a privatização e devastação do bem público sem
prévia consulta, auscultação e consenso das comunidades interessadas.
Ambivalência dos
megaprojetos: grande oportunidade e megaproblemas
15.
Graças ao Acordo de
Paz percebemos que Deus abençoou o nosso país com uma infinidade de recursos.
De facto, hoje está acontecendo uma explosão de descobertas, quase em toda a
parte, de riquezas de todo o tipo, fazendo-nos sonhar com o Éden. Mas se vierem
a faltar, a sabedoria, a prudência e políticas justas e clarividentes, na sua
exploração, podem tornar-se em pesadelo, uma séria ameaça para o país, senão
mesmo uma verdadeira fonte de divisão, conflitos e guerras. Não faltam
experiências e exemplos de outros contextos onde a descoberta de muita riqueza
significou maldição para o próprio povo. Em vez de criar prosperidade e
bem-estar para todos, por motivos de ganância, corrupção material e moral, tais
riquezas se transformam em fonte de desigualdades, de violência, de criminalidade
organizada, de destruição e de morte. Os conhecimentos científicos não são
suficientes para explorá-las de forma equitativa. Urge a sabedoria humana e a
vontade política de considerá-las como um bem comum criado por Deus e destinado
a todos os moçambicanos.
16.
Não restam dúvidas que
os grandes projectos trazem muitas oportunidades. Mas também não é menos
verdade que trazem “megaproblemas” políticos, económicos, sociais, culturais e
ecológicos. Com os “megaprojetos” há pessoas que abandonam, obrigadas ou por
livre vontade, as próprias comunidades de origem, perdendo deste modo a ligação
com a própria terra, hábitos de trabalho, cultura e até a própria identidade.
Não são poucos aqueles que, sem uma negociação clara e justa e sem a proteção
da autoridade competente, são compulsivamente deslocados das suas terras de
origem para zonas de reassentamento, nalguns casos, impróprias ou sem um mínimo
de infraestruturas para serem habitadas. Do mesmo modo, não são também poucos
aqueles que livremente acorrem aos lugares de exploração de recursos ou dos “megaprojetos”,
com espectativas de verem suas vidas melhoradas. Mas porque o fazem sem nenhuma
prévia preparação, estas espectativas acabam, muitas vezes, como uma bola de sabão.
Perdem literalmente tudo. Outrossim, os “megaprojetos” agudizam o problema da
crise de valores na sociedade, na medida em que o valor supremo que se busca é
o lucro, o desenvolvimento económico, deixando tantos outros valores no esquecimento
ou na irrelevância.
17.
Preme-nos sublinhar
que Moçambique é para todos os moçambicanos e não só para alguns. Tudo o que
diz respeito a esta nossa pátria deve ser comunicado a todos os interessados.
Assim como é da responsabilidade dos pais educar os filhos, libertá-los da
ignorância; da mesma maneira é dever do Estado Moçambicano lutar por eliminar
entre os moçambicanos não só a ignorância de não saber ler e escrever, mas
também o analfabetismo dos próprios direitos. Não é possível ser-se cidadão
nacional a pleno direito ignorando as grandes decisões que dizem respeito aos
assuntos políticos, económicos e culturais do próprio país. Por isso, queremos
reiterar o quanto já foi de várias partes dito: a necessidade de renegociar de
forma clara e transparente os “megaprojetos” em curso no país. Não se pode
continuar no hermetismo em assuntos do interesse de todos os moçambicanos. É
caso perguntar: a quem beneficia a não publicação e vulgarização de contractos
que dizem respeito a todos?
18.
Moçambique é um país independente e soberano. Livres e independentes devem ser
os seus cidadãos. Mas o desemprego ameaça estes valores porque quem não o tem
perde a liberdade e a possibilidade de escolher os meios adequados para
construir a própria felicidade e a da sua família. Mais ainda, a descoberta de
grandes quantidades de recursos naturais, em vez de aumentar a nossa liberdade
e prosperidade, vai reduzindo tal possibilidade. Assistimos continuamente a
situações em que filas sem número de camiões carregados de madeira desfilam das
nossas aldeias em direcção aos principais portos nacionais enquanto as pessoas
dessas mesmas aldeias não têm sequer carteiras para as próprias escolas nem
beneficiam, em nada, da venda da própria madeira. Só conhecem os prejuízos que
a delapidação dos recursos naturais causa no seu ambiente.
III. COMPROMETER-SE
COM A RECONCILIAÇÃO, COM A JUSTIÇA E COM PAZ
Repensar nossas prioridades e valores
19.
Se queremos preservar
a paz é necessário e urgente um repensamento e debate inclusivo das nossas
opções e prioridades no campo ético, político, económico e social. A reflexão e
o debate das questões cruciais do povo não podem ser deixados só aos políticos
de profissão ou aos especialistas, devem envolver todas as camadas da sociedade
civil.
20. Infelizmente, a vontade insaciável do ter
está a tornar-se no critério que subordina todos os outros aspetos da vida. A ganância
ou o vício da acumulação dos bens materiais estão ocupando nos nossos dias um
lugar primordial na vida das pessoas, acabando por ofuscar outros valores mais
importantes, como a partilha, a solidariedade e a atenção aos mais
desfavorecidos. A sede de possuir e de enriquecer-se fácil e rapidamente são
como um cancro que penetra e corrói as pessoas e os valores mais nobres da
nossa sociedade. Quando o ter torna-se no valor supremo os outros, inclusive o
próprio Deus, são relativizados.
Fazer de Moçambique
uma casa para todos os moçambicanos e não um mercado para os mais espertos
21. Com a ganância caem os valores da vida,
da fraternidade, da solidariedade, da hospitalidade, típicas da nossa cultura.
Riquezas em grandes quantidades que até o dono se esquece delas e necessita que
outros o lembrem de que lhe pertencem são destrutivas. De facto, quando isso
acontece, significa que tal indivíduo está retendo bens que deveriam ser
destinados a quem nada tem; está empatando bens que fazem falta aos outros filhos
da mesma Pátria. A ganância separa, divide e desintegra famílias, comunidades,
o país, e constringe as pessoas a entrar inexoravelmente na lógica da
instrumentalização, da coisificação e da comercialização de tudo, até das
realidades mais nobres e sagradas que tradicionalmente são intocáveis, tais
como: a vida humana, o sangue, órgãos de seres humanos, as crianças, as
mulheres, o sexo, a água, a terra, a religião, as eleições, os votos, etc. Por
causa da ganância, hoje tudo entra no circuito comercial da compra e da venda.
Por esta via Moçambique está a tornar-se num grande supermercado onde tudo se
vende e tudo se compra.
Superar a pobreza não
só económica mas também espiritual
22.
A ganância é sinonimo de pobreza espiritual. Ela é a raiz da injustiça e de
outros males e crimes. Por isso, urge falar-se não só de combater a pobreza
económica, mas também a pobreza do coração, a pobreza moral e espiritual.
23.
É a pobreza do espirito, ou seja a falta e a subversão dos valores, que leva a
pensar que com a acumulação do dinheiro e de bens materiais em quantidades
excessivas teremos todos os nossos problemas resolvidos e viveremos em
paz. É necessário impedir a transformação de Moçambique num supermercado,
a comercialização do nosso país e dos seus recursos naturais.
24.
Moçambique não é nem pode ser transformado num supermercado. O valor que impera
no mercado é o dinheiro, a concorrência, o marketing e o lucro. Moçambique é e
deve permanecer a casa e a morada de todos os moçambicanos. Os valores que
regem uma casa são a comunhão, o amor, a partilha, a hospitalidade, a solidariedade,
a reciprocidade, o respeito e a corresponsabilidade em tudo aquilo que concorre
para a construção do bem comum. De resto, estes são, como já dissemos, os
valores que caracterizam a nossa tradição cultural moçambicana. Parafraseando
as palavras de Jesus no evangelho (cfr. Mt 16,26; Mc 8,36; Lc 9,25), podemo-nos
perguntar: o que vale ganhar muito dinheiro, vendendo o nosso país às grandes e
pequenas potências económicas do mundo, se viermos a perder toda a nossa
identidade cultural como povo moçambicano?
Repensar a política
dos “Megaprojetos”
25.
De várias partes foi
já manifestado o desejo duma revisão da política dos “megaprojetos”. Queremos
associar-nos a tais vozes, fazendo apelo para que se encete um debate geral
sobre se a política definida está em consonância com o projeto e com os
interesses nacionais, de preservação da paz, da unidade nacional, da
convivência democrática, do desenvolvimento sustentável, da équa distribuição
da riqueza e do bem comum. Este repensamento
torna-se necessário em razão de tudo o que estamos a perceber hoje. Quando se
começou a falar de gás natural e de outros recursos que hoje nos vamos dando
conta de que existem em Moçambique, ninguém estava em altura de tomar decisões
e medidas adequadas, pois ninguém podia imaginar as dimensões de tais
descobertas. Hoje percebemos que, no que tange ao gás, estamos na posição de
liderança entre os países possuidores deste recurso energético. Diante desta
constatação é compreensível que as políticas definidas e as condições postas
antes apareçam hoje inadequadas e problemáticas sob vários pontos de vista.
Educar para os valores
da solidariedade, partilha e comensalidade
26.
Urge recuperar os valores da solicitude uns para com os outros, partilha e
solidariedade. A solidariedade, a compaixão, o comer juntos são valores que
marcaram sempre a cultura tradicional moçambicana, mas hoje estão em crise.
Esta crise manifesta-se pelo crescimento das desigualdades na distribuição do
poder, da riqueza e do bem-estar. São também sintomas do declínio destes
valores o rápido enriquecimento de um pequeno grupo, que ostenta opulência,
contrastando com um rápido empobrecimento de uma larga parte da família
moçambicana, mergulhada na escassez dos mais elementares recursos, tais como a comida,
a habitação, os cuidados médicos e a educação. Se,
por um lado, a economia moçambicana regista sinais de crescimento, não obstante
a crise global, por outro, esses resultados positivos não se refletem
positivamente na maioria das famílias moçambicanas. Ora, um crescimento que não
tenha impacto na vida de todos é falacioso. Quem é, afinal, o verdadeiro
beneficiário desse crescimento? Como é distribuído esse crescimento?
27.
Precisamos de tomar a sério o problema de erradicar a fome no seio da família
moçambicana. Não teremos a paz assegurada se uns têm a possibilidade de comer e
de beber, até em excesso, enquanto outros passam fome. Com muita dor,
testemunhamos o aumento do número de pessoas, homens, mulheres e crianças que
andam a vasculhar as latas de lixo ou a mendigar nas avenidas e ruas das nossas
cidades, procurando com que matar a fome. Este estado contraria o sonho de
muitos moçambicanos, que têm a peito a prosperidade do país e o bem-estar de
todos. É necessário encontrar a forma de assegurar uma équa distribuição das
riquezas.
Responsabilidade para
com as gerações futuras
28.
A riqueza de Moçambique é para o bem-estar e a felicidade de todos e não só de
alguns moçambicanos, portanto, não só da nossa geração mas também das futuras
gerações. Há um imperativo de preservar e de manter incólume o património
nacional, evitando para isso toda a forma de degradação, gestão danosa e
apropriação indébita para uso individual ou partidário. Devemos por isso
explorar os nossos recursos de uma forma que seja compativel com a continuação
de uma vida digna de todos os moçambicanos de hoje e do futuro. A
responsabilidade é um valor que concerne a todos: individuos, grupos, partidos
politicos, confissões religiosas, empresas e agentes económicos nacionais e
estrangeiros. As empresas não devem preocupar-se unicamente em produzir e
ganhar lucros, mas também devem preocupar-se com qualidade de vida e as condições
socio-ambientais do nosso país. É necessario evitar saque, o esbanjamento e a
degradação dos nossos recursos naturais.
29.
Exortamos a todos os fiéis a crescer na consciência de que os assuntos do país
nos concernem a todos. Devemos, por isso, comprometer-nos seriamente com o
bem-estar da nação, tornando-nos mais participativos na gestão dos problemas
que afetam a convivência democrática, a paz e o bem comum.
30.
A todos os que têm responsabilidades públicas, solicitamos que se esforcem cada
vez mais em proceder com justiça e transparência na gestão do bem comum, na
consciência de que ninguém é proprietário ou dono dos bens que por própria
natureza pertencem a todos os cidadãos deste país, embora tenham recebido,
mediante o voto eleitoral, a autoridade para governarem o país em nome de
todos. Cooperem, portanto, em nome daqueles que lhes confiaram o mandato, com
todas as forças vivas da sociedade civil e da política, para eliminar a
crescente desigualdade social que existe entre os irmãos da mesma família
moçambicana. Somente com o crescimento dos valores da justiça, da igualdade
perante a lei, da fraternidade e da solidariedade, poderemos fortalecer a paz
no nosso país.
31.
Às empresas e agentes económicos nacionais e estrangeiros, que têm projetos de
exploração de riquezas no nosso país, pedimos que cultivem uma consciência
ética: sejam responsáveis com o bem-estar dos seus trabalhadores e procurem
preservar uma melhor qualidade de vida no país. Deve-se evitar o enriquecimento
fácil e depredador. A paz em Moçambique se consolidará mais e mais com um desenvolvimento
responsável, sustentável e ecológico.
32.
Desejamos pedir aos nossos sacerdotes, religiosas e religiosos, que acompanhem
o mais de perto possível o processo da consolidação da democracia para
preservar a paz em nossas comunidades. Outrossim, pedimos que priorizem, na sua
atividade pastoral, a formação dos cristãos, para exercerem uma cidadania
ativa, ética e responsável. Com efeito, não podemos dissociar o anúncio do
Reino de Deus dos acontecimentos reais da sociedade que somos chamados a evangelizar.
33.
Jesus Cristo, com a sua vida, morte e ressurreição, trouxe à humanidade a Paz
de Deus. Como diz S. Paulo na Carta aos Efésios, Ele é a nossa Paz: fez de
povos diferentes um único povo e derrubou o muro da inimizade que os separava
(cfr. Ef 2,14-16). A humanidade, em geral, e os moçambicanos, em particular,
são chamados a percorrer os caminhos da verdadeira Paz e a construir um mundo
cada vez mais fraterno e sem divisões. Para que isso aconteça, todos nós somos
convidados a nos reconciliarmos uns com os outros e com Deus, através de seu
Filho Jesus, o Príncipe da Paz. Que Maria, Rainha da Paz, acompanhe o caminhar
do povo moçambicano na consolidação da democracia para a preservação da Paz!
Maputo, 6 de Agosto de 2012, Festa da Transfiguração do Senhor
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