A Sentença de Londres
Em
Janeiro de 1991, um tribunal de Londres foi chamado a deliberar sobre a
natureza do conflito armado que opunha o governo de Moçambique à
Renamo. Em causa estava uma queixa apresentada por seis empresas
gasolineiras do Zimbabué contra a seguradora Lloyds, pelo facto desta
ter recusado indemnizá-las por perdas sofridas como consequência da
sabotagem, pela Renamo, do oleoduto Beira-Feruka e do complexo de
tanques de combustíveis situados na zona portuária da Beira. A
seguradora britânica alegou em sua defesa que a apólice de seguros em
nome das gasolineiras “excluía danos causados por guerra civil”.
Não
obstante o Acordo Geral de Paz ter sido negociado e assinado entre
moçambicanos, persiste a linguagem dos anos da guerra, o que augura maus
sinais para o processo de reconciliação nacional. A par do regozijo
publicamente manifestado por figuras arcaicas do regime no poder, face à
crise que assola a oposição nacional, e do conceito sui generis
de democracia bravateado pelo timoneiro da mobilização e propaganda do
partido dirigente, em Sirte surgiram recentemente vozes destoantes que
nos transportaram aos amargos anos do rancor e da exprobração. Reagindo a
um relatório do Mecanismo Africano de Avaliação de Pares (MARP), o
presidente da República considerou o conflito, cujo fim ele próprio
negociara com irmãos seus em Roma, não como uma guerra civil, mas “uma
guerra de agressão que visava desestabilizar Moçambique, e que foi
movida pelo então sistema do apartheid usando os seus tentáculos”.
Posição idêntica foi defendida no mesmo encontro por Graça Machel, para
quem “o país não teve nenhuma guerra civil, mas sofreu uma acção de
agressão movida pelo regime do apartheid.”
Quando surge a oportunidade de se analisar, em fóruns independentes,
as verdadeiras causas do conflito surgido em Moçambique após a
independência, as conclusões são necessariamente outras e coincidentes
com as defendidas por pessoas como o embaixador queniano, Bethuel
Kiplagat, uma das figuras-chave do processo negocial que conduziu à
assinatura do Acordo Geral de Paz entre o governo da Frelimo e a Renamo.
Uma análise, despida de condicionalismos de qualquer espécie, do
conflito armado surgido em Moçambique após a independência teve como
palco um tribunal de Londres em que um juiz foi chamado a deliberar
sobre a natureza desse conflito. A questão tinha como pano de fundo as
acções de sabotagem levadas a cabo pela Renamo contra o oleoduto
Beira-Feruka e o complexo de depósitos de combustível situados na zona
portuária da Beira entre Julho de 1982 e Janeiro de 1983.
Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) havia sido fundada” e que “a partir de 1964 esse movimento anticolonial recorrera à violência para alcançar os seus fins, e que tivera de fazer face a medidas igualmente violentas por parte do governo colonial”. Com a proclamação da independência em 1975, acrescentou Saville, “o movimento Frelimo, que passara a partido dirigente, avançou paulatinamente naquilo por si descrito como o instituição de um Estado marxista-leninista”. Na óptica do Juiz Saville, “o governo da Frelimo iniciou um processo de transferência obrigatória de pessoas das suas zonas tradicionais para aldeias comunais; criou os chamados ‘campos de reeducação’ onde viria a ser encarcerado um largo número de pessoas que por uma razão ou outra haviam entrado em divergências com as novas autoridades; e que a liderança da Frelimo era vista por alguns como sendo dominada por pessoas oriundas do sul de Moçambique, com exclusão de outros grupos étnicos do país”.
Com rigor histórico, Saville declarou que “nos finais de 1980, havia-se registado um aumento das actividades da Renamo” numa “vasta área do país, em que as redes rodoviárias, ferroviárias, de água e electricidade destinadas à Beira foram frequente e seriamente afectadas. As tropas governamentais foram alvo de emboscadas, e técnicos estrangeiros raptados. Entre Julho de 1982 e princípios de Janeiro de 1983 (que é o período em que ocorreram os actos de sabotagem que deram azo à presente queixa) registaram-se ataques contra comboios e linhas de alta tensão, e ao longo desse período houve cerca de 40 incidentes, apesar das medidas tomadas pelo governo da Frelimo e que incluíam o uso em larga escalada das Forças Armadas.”
Em
face dos prejuízos sofridos como resultado dos actos de sabotagem, seis
empresas gasolineiras do Zimbabwe pretendiam ser indemnizadas por
perdas e danos sofridos, ao abrigo de uma apólice de seguros que haviam
assinado com a Lloyds. Esta seguradora, porém, rejeitou o pedido de
indemnização pelo facto da apólice excluir “perdas, danos ou despesas
causadas por guerra, guerra civil, revolução, rebelião, insurreição ou
desacatos civis daí resultantes, ou qualquer acto hostil levado a cabo
contra ou por uma potência beligerante”. Por acreditar que o conflito
armado entre a Renamo e o governo moçambicano não se enquadrava no
âmbito da cláusula atrás citada, as seis gasolineiras moveram uma acção
contra a seguradora Lloyds junto de um tribunal de Londres. Em jogo,
estava um pedido de indemnização por perdas no montante de 5 milhões de
dólares americanos.
A Posição do Juiz Saville
Tendo
analisado os factos apresentados pelos advogados das gasolineiras
zimbabueanas e da Lloyds, o Juiz Saville considerou, em sentença
proferida a 26 de Fevereiro de 1991, que a seguradora britânica não
tinha o dever de pagar a indemnização exigida uma vez que a apólice de
seguros excluía prejuízos causados por guerra civil.
Na
sua sentença, o Juiz Saville começou por salientar que o que estava em
causa era determinar se a posição defendida pela seguradora Lloyds tinha
fundamento, isto é, se “as perdas estavam excluídas pela Cláusula 3.1
da apólice por terem sido causadas por guerra civil, rebelião ou
insurreição.” Referindo-se concretamente à Renamo, o Juiz Saville
declarou que “nas presentes circunstâncias, a questão central é se a
Resistência Nacional Moçambicana (que de ora em diante passarei a
designar de Renamo) estava envolvida numa guerra civil, rebelião ou
insurreição em Moçambique, e se levou a cabo os ataques contra o
oleoduto e os tanques de combustíveis como parte desse envolvimento”.
Apoiando-se no processo jurídico “Spinney vs
Royal Insurance”, ocorrido em 1980, o Juiz Saville definiu “guerra
civil” como sendo “uma guerra com a característica especial de ser
civil, ou seja, de ser interna, em vez de externa”. De seguida, Saville
fez um resumo da história moçambicana, tendo referido que “em
1962, aFrelimo (Frente de Libertação de Moçambique) havia sido fundada” e que “a partir de 1964 esse movimento anticolonial recorrera à violência para alcançar os seus fins, e que tivera de fazer face a medidas igualmente violentas por parte do governo colonial”. Com a proclamação da independência em 1975, acrescentou Saville, “o movimento Frelimo, que passara a partido dirigente, avançou paulatinamente naquilo por si descrito como o instituição de um Estado marxista-leninista”. Na óptica do Juiz Saville, “o governo da Frelimo iniciou um processo de transferência obrigatória de pessoas das suas zonas tradicionais para aldeias comunais; criou os chamados ‘campos de reeducação’ onde viria a ser encarcerado um largo número de pessoas que por uma razão ou outra haviam entrado em divergências com as novas autoridades; e que a liderança da Frelimo era vista por alguns como sendo dominada por pessoas oriundas do sul de Moçambique, com exclusão de outros grupos étnicos do país”.
Depois
desta breve caracterização do regime instaurado em Moçambique após a
independência, Saville afirmou que, como consequência da política
seguida por esse regime, “um número considerável de moçambicanos (dentro
e fora do país) passou a ter uma postura contrária ou de oposição ao
governo da Frelimo e àquilo que ele punha em prática”.
Política Externa
A
par dessa situação, salientou o Juiz Saville, havia ainda a questão das
“relações internacionais que eram desvantajosas para Moçambique,
nomeadamente com a Rodésia (até 1980) e com a África do Sul”.
Referindo-se concretamente à política externa seguida pelo nosso país
após a independência, o juiz britânico recordou que o governo da Frelimo
“apoiava a guerrilha do ZANLA, e na realidade a Constituição de 1975
impunha expressamente a Moçambique a obrigação de ‘solidariedade para
com os movimentos de libertação’. Em Março de 1976, o governo da Frelimo
encerrou as fronteiras com a Rodésia, tendo aplicado sanções.” Um dos
resultados desta media, declarou Saville, “foi Moçambique ter sofrido
ainda mais danos económicos dado que até então havia um tráfego
considerável e de valor comercial entre a Rodésia e (em particular) o
porto da Beira”.
Debruçando-se
sobre a política seguida por Moçambique em relação à África do Sul, o
Juiz Saville considerou que “desde o princípio, o governo da Frelimo
também havia declarado o seu apoio ao Congresso Nacional Africano no
conflito que opunha este movimento de libertação às autoridades
sul-africanas, e que pelo menos concedera apoio tácito a esse movimento.
Isto (e a orientação marxista-leninista expressa pelo governo da
Frelimo) prejudicou bastante as relações entre Moçambique e a África do
Sul, as quais viriam a piorar consideravelmente quando a Rodésia deu
lugar ao Zimbabué.”
No decurso destes acontecimentos, prosseguiu o Juiz Saville, “estavam as actividades da Renamo que tiveram início por volta de
1976.”Com rigor histórico, Saville declarou que “nos finais de 1980, havia-se registado um aumento das actividades da Renamo” numa “vasta área do país, em que as redes rodoviárias, ferroviárias, de água e electricidade destinadas à Beira foram frequente e seriamente afectadas. As tropas governamentais foram alvo de emboscadas, e técnicos estrangeiros raptados. Entre Julho de 1982 e princípios de Janeiro de 1983 (que é o período em que ocorreram os actos de sabotagem que deram azo à presente queixa) registaram-se ataques contra comboios e linhas de alta tensão, e ao longo desse período houve cerca de 40 incidentes, apesar das medidas tomadas pelo governo da Frelimo e que incluíam o uso em larga escalada das Forças Armadas.”
Depois
de ter feito este resumo dos acontecimentos em Moçambique, o Juiz
Saville referiu que “a controvérsia reside na questão de se saber se as
actividades violentas da Renamo (incluindo os relevantes actos de
sabotagem) constituíam tentativas de uma sublevação interna organizada
para derrubar o governo da Frelimo, ou, de facto, manifestações de uma
guerra civil. Os acontecimentos em Moçambique (incluindo o estatuto e as
actividades da Renamo) são questões de considerável significado
político. Como era talvez de esperar, um das consequências que daí advêm
é que muito dos que têm falado ou escrito acerca desses acontecimentos
foram influenciados por necessidades ou simpatias políticas, e um facto
que é lamentável é que tais influencias muitas vezes tendem a fazer com
que a verdadeira posição seja ocultada, escamoteada ou até mesmo
deturpada.”
A Apólice Seguros
A apólice de seguros passada pela Lloyds em nome das seis empresas gasolineiras continha as seguintes cláusulas:
Riscos Cobertos pela Apólice
1. Salvo o disposto nas Cláusulas 3 e 4 adiante referidas, a presente apólice de seguro
cobre perdas ou danos infligidos ao objecto segurado, e que tenham sido causados por:
1.1. Grevistas, trabalhadores em situação de lock-out (ou greve patronal), ou pessoas participantes em distúrbios laborais, motins ou tumultos civis;
1.2. Qualquer terrorista ou qualquer pessoa agindo por motivos políticos.
Exclusões
3. Em nenhum caso, deverá a presente apólice de seguro cobrir ...
3.10. perdas,
danos ou custas causadas por guerra, guerra civil, revolução, rebelião,
insurreição, ou conflitos civis daí resultantes, ou quaisquer actos
hostis por ou contra uma potência beligerante...
Devido
à relutância do governo do Zimbabué em autorizar pagamentos em moeda
estrangeira, as gasolineiras viram-se forçadas a não obter uma apólice
de seguros que incluísse o disposto na Cláusula 3.10. Factores de ordem
financeira, relacionados com o deficit orçamental do Zimbabwe também
ditaram a não inclusão dessa cláusula. De facto, a eventual inclusão da
Cláusula 3.10 tornaria a apólice bastante dispendiosa em face da alta
situação de risco prevalecente, resultante do conflito armado em
Moçambique entre forças governamentais e da Renamo.
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O Julgamento
A
sessão de abertura teve lugar a 16 de Janeiro de 1991 no Tribunal de
Primeira Instância (Divisão Comercial) na cidade de Londres. A acção
contra a seguradora Lloyds foi proposta por um total de seis queixosos:
National Oil Company of Zimbabwe (Private) Limited 1° Queixoso
Shell Zimbabwe (Private) Limited 2° Queixoso
B.P. Zimbabwe (Private) Limited 3° Queixoso
Mobil Oil Zimbabwe (Private) Limited 4° Queixoso
Caltex Oil Zimbabwe (Private) Limited 5° Queixoso
TOTAL Zimbabwe (Private) Limited 6° Queixoso
Ambas
as partes recorreram ao auxílio de peritos em questões moçambicanas,
designadamente o Dr. Tom Young, da Faculdade de Estudos Orientais e
Africanos (SOAS ) da Universidade de Londres, pela parte queixosa, e o
Dr. André Thomashausen, jurista e professor de direito internacional
comparado da Universidade da África do Sul (UNISA). Para além do
testemunho de Young, os advogados da parte queixosa fundamentaram os
seus argumentos em material obtido junto de fontes que reflectiam ou
eram favoráveis à linha oficial do governo da Frelimo, como por exemplo o
serviço de notícias governamental, AIM, e a publicação britânica,
“Africa Confidential”. O depoimento do Dr. Young, em defesa da tese de que o conflito armado em Moçambique não
podia ser considerado de guerra civil atingiria proporções controversas
dada a contradição flagrante entre aquilo que declarou perante o
tribunal, e o teor de um trabalho por si assinado antes do julgamento,
sob o título, “The M.N.R./Renamo: External and Internal Dynamics” no
qual ele próprio defendia a tese de que “tratar a Renamo simplesmente
como ‘fantoche’ da Rodésia ou da África do Sul era ser-se levado pela
propaganda simplista e errada do governo da Frelimo, dos seus apoiantes e
simpatizantes”. Um outro aspecto que ditou a derrota da acção judicial
visando demonstrar a não existência de uma guerra civil em Moçambique,
foi o facto dos advogados das empresas gasolineiras terem dado realce ao
livro de memórias de Ken Flower, ex-director da CIO rodesiana. No
livro, “Serving Secretely”, Flower adulterou o teor de um “relatório
secreto” sobre os “Flechas e a Formação da Resistência Nacional
Moçambicana” com o objectivo expresso de retirar qualquer legitimidade a
este movimento. Com a data de Abril de 1974, o relatório inserido no
livro de Flower relata factos que até então não haviam ainda ocorrido,
designadamente a transferência de poderes para a Frelimo por parte
Estado português e a existência de um Estado moçambicano independente há
já cinco anos. Basta referir o facto de que o golpe de Estado que
derrubou o governo de Marcelo Caetano em Lisboa ter ocorrido
posteriormente à elaboração do relatório em referência.
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Canal de Moçambique – 30.07.2009
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