quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Igrejas e Estado em Moçambique após a independência

Canal de Opinião
Por Eric Morier-Genoud


Genebra (Canalmoz) - O Prof. Dr. Luís Benjamin Serapião e João Cabrita debruçaram-se nas páginas centrais do Canal de Moçambique de 15 de Agosto de 2012 sobre o assunto das igrejas e do Estado em Moçambique.
Isto veio porque eles queriam contestar alguns elementos contidos na entrevista que eu dei ao mesmo jornal no mês anterior.
Agradeço o contributo destes dois intelectuais e aprecio o debate que emerge assim nas páginas da vossa publicação. Queria, no entanto, esclarecer, nas linhas a seguir, algumas minhas posições que me parece terem sido mal representadas assim como trazer algumas contribuições adicionais.
Para começar, o Prof. Dr. Serapião avança o argumento de que teria havido na história de Moçambique duas igrejas católicas, uma colonial e outra nacional/moçambicana. Concordo com esta análise no geral e acho que é  um ponto importante para bem entender a história da igreja no país e a força que ela teve antes e, ainda mais, depois da independência. Pois, se tivesse havido só uma igreja colonial, como teria a igreja conseguido continuar a existir depois de 1975?
Isto dito, discordo do Professor Serapião em relação a ideia que a ruptura entre a igreja colonial e a igreja nacional teria sido absoluta e perfeita com o advento da independência em 1975. Pode ser um bom argumento didáctico e talvez político, mas a verdade é muito mais subtil e complexa. Houve muitas rupturas com a independência, em particular nas relações de poder dentro da instituição católica, mas houve também muitas continuidades, sejam elas de pessoal, na maneira de operar, ou nas ideias e na teologia.
Por isso não me parece adequado afirmar que a igreja colonial desapareceu em Moçambique em 1975 e que só ficou uma igreja nacional que não gozou “de privilégios de qualquer sistema político no país”. Tal declaração dá a impressão de que a igreja nacional era uma igreja nova sem ligação nenhuma ao passado. Ora a igreja nacional desenvolveu-se dentro, e sob impulso, da igreja colonial; ela guardou elementos desta igreja após a independência (incluindo algum pessoal colonial e colonialista); e ela quis guardar todas as propriedades que a igreja colonial tinha recebido do poder português.
No seu texto, João Cabrita vai mais longe ainda ao argumentar que a igreja católica não tinha posição dominante antes da independência e ao recusar a ideia de que havia competição entre instituições religiosas antes de 1975 – ele diz que isto foi “algo inexistente”. Ignora, assim, a Concordata e o Acordo Missionário, vigentes até 1975, que faziam com que o Estado colonial pagasse salários a todos missionários católicos, entregasse terras gratuitamente às missões católicas, e pagasse viagens à Metrópole ao pessoal católico, entre outros benefícios. Ignora também a política concomitante e inversa, de oposição a todas outras instituições religiosas no país – protestantes, muçulmana, ziones, etc. – a quem o governo recusava personalidade jurídica e fazia tudo para impedir o seu progresso.
Para argumentar que não havia monopólio católico nem competição entre religiões, Cabrita dá o exemplo da comunidade muçulmana que o Estado português tentou atrair para a sua esfera de influência antes da independência, e o exemplo das Testemunhas de Jeová do Malawi que foram acolhidas pelo governo português no fins dos anos 1960, quando perseguidas pelo Presidente Banda.
Estes dois exemplos são bastante selectivos e apresentados de maneira muito parcial. Pois, se alguns muçulmanos foram efectivamente cooptados pelo poder colonial nos fins dos anos 1960 (após anos de discriminação), a verdade é que outros foram ao mesmo tempo presos, e alguns assassinados pela polícia política colonial, inclusive alguns Sheiks.[1] No que toca às Testemunhas de Jeová, o refúgio dado pelo poder colonial não pode ser usado como argumento de igualdade das religiões em Moçambique. Primeiro porque o refúgio dado a eles foi nas zonas fronteiriças a fim de criar uma zona tampão contra à entrada da Frelimo na Zambézia, uma vez que as Testemunhas de Jeová recusam-se (como sempre) a entrar em política. Segundo, este desenvolvimento aconteceu ao mesmo tempo que o poder colonial continuava a reprimir as Testemunhas de Jeová moçambicanas que eram vistas como subversivas por recusarem a dar apoio aos portugueses, fazer o serviço militar, e saudar a bandeira nacional, pois não queria entrar em política nenhuma.[2]
Se o período colonial não foi todo bonito, sem desigualdade e competição entre religiões, o período pós-independência também não foi todo feio. Não foi como o afirma Cabrita, anos onde a Frelimo tinha somente um “projecto de índole totalitária”. Quer se queira, quer não, a Frelimo só desencadeou uma luta aberta e total contra as igrejas a partir de 1978. É verdade que houve alguma luta contra instituições religiosas antes disso, mas não foi total e foi muita especifica e limitada – a Igreja Nazareno por causa de ligações à PIDE e ao imperialismo, às Testemunhas de Jeová por terem sido utilizadas pelos militares portugueses, etc. Não houve proibição de usar roupa religiosa em lugar público, não houve igrejas fechadas em massa, e não houve campanhas em prol do ateísmo como foi o caso entre 1978 e 1982. A viragem de 1978 tem a ver com o III Congresso onde o Partido e o Estado fundiram-se e com o afastamento dos elementos religiosos praticantes dentro da liderança da Frelimo, afastamento sem o qual a viragem não teria sido possível. [3]
Finalmente, João Cabrita afirma-se escandalizado pelo facto de eu ter afirmado que a situação religiosa no país é positiva hoje. Aliás, ele entende que dizendo isso, eu teria afirmado que o combate às religiões teria sido positivo. Há aí uma má interpretação, pois o que foi dito e escrito, e que confirmo uma vez mais, é que a situação religiosa actual no país é positiva e que as nacionalizações contribuíram para isto (não a repressão!). Temos que ver pois que, se não houvesse nacionalizações, a igreja católica teria continuado a controlar 90% das escolas no país como no tempo colonial (controlava 89.3% das escolas no país em 1964), e isto teria criado problemas num país independente onde aproximadamente 20% da população é católica, 20% é muçulmana, 30% é cristão não-católica, e a maioria adepta, parcial ou total, da religião tradicional. (Eric Morier-Genoud, Queen’s University Belfast)
[1] Edward Alpers, “Islam in the Service of Colonialism? Portuguese Strategy During the Armed Liberation Struggle in Mozambique”, Lusotopie 1999(Paris, Karthala, 1999), pp. 165–184; Michel Cahen, ‘Le colonialisme tardif et la diversication religieuse au Mozambique (1959–1974)’, Lusotopie 1998(Paris, Karthala, 1998), pp. 377–395; e Fernando A. Monteiro, O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964–1974), Porto, Universidade Portucalense, 1993.
[2] Pedro Pinto, “Jehovah’s Witnesses in colonial Mozambique”, Le Fait Missionnaire. Social Sciences & Missions, No. 17, Dezembro de 2005, pp.61-123
[3] Eric Morier-Genoud, “Of God and Caesar. The Relation between Christian Churches & the State in post-colonial Mozambique, 1974-81”, Le Fait Missionnaire. Social Sciences & Missions, No. 3, 1996, Setembro de 1996; Eric Morier-Genoud, “L’Islam au Mozambique après l’indépendance. Histoire d’une montée en puissance”, L’Afrique Politique (Paris: Karthala, 2002), pp.123-146.