DESCONOLIZAÇÃO ASSENTOU EM LEI ANÓNIMA
Almeida Santos:
Descolonização assentou em lei anónima
PEDRO RAFAEL DOS SANTOS e ISABEL ONETO
Presidente do Partido Socialista e líder do seu grupo parlamentar, António de Almeida Santos, de 68 anos (nasceu no concelho de Seia, em 15 de Fevereiro de 1926), começou a interessar-se pelos problemas africanos quando ainda jovem estudante de Direito em Coimbra. Membro do Orfeão Académico (foi conhecido guitarrista e intérprete de fados), participou numa digressão às então colónias de São Tomé, Angola e Moçambique e apaixonou-se por África. Já advogado, decidiu fixar-se em Lourenço Marques, ali fazendo uma brilhante carreira, que acumulou com intensa actividade política de oposição ao salazarismo, no prosseguimento de uma luta iniciada na adolescência. « Nós defendíamos os chamados terroristas no Tribunal Militar, o que nos dava algum prestígio junto dos africanos mais conscientes, mas causou-nos alguns dissabores junto da população mais retógrada», recorda hoje, lembrando também que deixou avultados bens materiais em Moçambique, que nunca reclamará, embora soubesse que as suas pretensões seriam atendidas.
Ministro
da Coordenação Interterritorial nos primeiros governos provisórios do
pós-25 de Abril, com o estatuto político de independente, Almeida Santos
– que posteriormente viria a sobraçar outras pastas e a evidenciar-se
como orador parlamentar dotado de estilo muito próprio – esteve, intimamente
ligado, por inerência de funções, ao processo de descolonização. Já desde há
muito que sabia ser a autodeterminação das colónias inevitável, e, depois do 25
de Abril, « viu-se até que ponto a responsabilidade pela forma como decorreu a
descolonização foi dos 13 anos de guerra e até mesmo dos anos que a precederam
», diz. Hoje, pensa que o processo « correu mal, mas, apesar de tudo, foi um
mal menor », pois «estivemos muitas vezes à beira de um colapso político
e militar ».
VISÂO --- como viveu o 25 de Abril ?
ALMEIDA SANTOS --- Eu viera de Moçambique a Lisboa, por motivos profissionais. Na noite de 24, fechei uns contractos para o Brasil, deitei-me tarde e, pouco depois, um amigo meu telefona-me e diz-me: « Não durmas mais porque parece que está a haver uma revolução.» Perguntei-lhe, estremunhado: « É boa ou má? » Havia o risco de ser uma acção da extrema - direita militar, que na altura contestava o próprio Marcelo Caetano, dizendo que ele estava a fazer aberturas perigosíssimas relativamente à unidade do império colonial. O meu amigo esclareceu-me: « Pela música parece-me que é boa.» Já não dormi mais. Fui para a rua e dirigi-me ao jornal República.
Estivera preso alguma vez?
Eu teria estado preso tantas vezes quantas os meus amigos (os elementos da oposição democrática ) estiveram, se vivesse em Lisboa. Mas em África a PIDE não prendia brancos, só prendia pretos. Coisas que fizemos com muito mais gravidade do que certas acções levadas a efeito em Portugal, lá não davam prisão. Mas fui incomodado muitas vezes, de diversas maneiras.
Mantinha contactos com as Forças Armadas em Moçambique?
Com alguns elementos, mas convém esclarecer que as Forças Armadas não estavam propriamente do meu lado. Sabia-se que alguns militares andavam descontentes, sobretudo na ponta final do regime. A partir de certa altura, a população (branca) começou a contestar as Forças Armadas, acusando-as de alguma ineficácia no tocante, quer ao combate ao terrorismo quer à manutenção da ordem.
Que informações possuía acerca da actualização da Frelimo?
Só me chegavam boatos, que nem sempre correspondiam à verdade. Tínhamos um grupo que todos os dias se reunia no Café Continental, em Lourenço Marques, e era um fervilhar de informações. Desse grupo faziam parte o Jacinto Veloso e o João Ferreira, mais tarde figuras da Frelimo.
Como foi parar ao Governo?
No dia 25 de Abril, o aeroporto de Lisboa foi fechado e não pude regressar imediatamente a Moçambique. Fiquei por cá uns oito a dez dias e, a dada altura, fui solicitado a dar a minha colaboração no esboço do programa do I Governo Provisório.
Quem o convidou?
Foi o prof. Veiga Simão, que era muito amigo do general Spínola. Pouco depois de regressar a Moçambique, o general Costa Gomes foi lá. Levava-me um convite do general Spínola para eu fazer parte do I Governo Provisório, como ministro da Coordenação Interterritorial. Era um nome muito esquisito, que, no fundo, disfarçava o que restava do antigo Ministério do Ultramar. Tratava-se de ajudar a fazer a descolonização, nos aspectos administrativos e institucionais.
Qual era a sua posição em relação às colónias?
Até 1971/1972 defendi uma solução federativa, porque me apercebi de que ainda poderíamos tentar uma saída política, embora sabendo que, com o tempo, os laços com Portugal seriam cortados. Mas isso permitiria uma transferência de poderes não catastrófica, que salvaguardaria as estruturas económicas e a permanência dos colonos. A partir de certa altura dei-me conta de que isso se tornara impossível e, no meu livro Já Agora, abandonei a tese federativa e passei a defender o princípio da autodeterminação, através de consultas aos povos das colónias.
Portanto, quando tomou posse como ministro, não estava em consonância com as ideias do general Spínola...
O general Spínola ainda tentou, depois do 25 de Abril, pôr de pé a doutrina do seu livro Portugal e o Futuro. Tivemos muitas conversas sobre isso e eu reconhecia nele um patriota cheio de boas intenções, mas o general foi ultrapassado pelos acontecimentos. Houve uma aceleração muito grande no estado de espírito das Forças Armadas, cada dia que passava era mais uma dificuldade acrescida, porque a saturação se tornava cada vez maior. E os militares chegaram a formular exigências, verdadeiros ultimatos no sentido de pressionar decisões rápidas para poderem regressar a casa.
Quer dizer que, num dado momento, Spínola teve de ceder?
O general tentou salvar uma solução de tipo comunitário, mas acabou por aceitar negociar a descolonização caso a caso. Ele próprio assinou o acordo da Guiné – Bissau, mas fê-lo um pouco contrafeito e só porque já não havia outra solução. Devo dizer que ele tentou adiar o mais possível a assinatura do acordo, para ver se conseguia espaço de manobra. Queria salvar o que ainda acreditava poder salvar.
Quem o apoiava nessa tentativa?
Não possuía muitos apoios, porque o Governo já era presidido por Vasco Gonçalves, que tinha uma visão da descolonização oposta à do general Spínola. E é assim que surge uma lei a consentir a descolonização por negociação directa entre Portugal e os movimentos de Libertação. Há, aliás, um aspecto curioso em tudo isso. Um belo dia, vejo no então Diário do Governo uma lei com um artigo único, que permitia a descolonização por acordos negociados e assinados pelo presidente da República. Como não tinha conhecimento daquele diploma, fui ter com o general Spínola e perguntei-lhe: « O que é que se passa? Eu tenho de pedir a minha demissão. Um lei destas - e eu não sei de nada!»
Quando é que isso aconteceu?
Estávamos, salvo erro, a 7 de Julho de 1974 e o presidente respondeu-me: «Mas eu não assinei lei nenhuma!» «Não assinou? Mas está publicada!» Mandámos vir o dossier da lei e, na verdade, não estava assinada. Alguém tivera a preocupação de criar um facto politíco que impedia o regresso à estaca zero.
Sabe quem foi o autor desse facto político?
Não faço ideia nenhuma. Lá se deu um toque na lei, que ficou com dois artigos em vez de um pois constituia um verdadeiro disparate.E no dia seguinte, o general fez um grande discurso a admitir o princípio da autodeterminação com base em acordos negociados. Foi a partir desse momento que se legitimou o processo de descolonização tal como veio a decorrer.
Como encarava o peso da sua missão?
O meu papel não foi tão grande como tem sido dito. Em relação a Angola não tive praticamente interferência nenhuma na negociação do acordo, pois apenas lhe melhorei a redacção, a nível formal. O acordo foi negociado entre as Forças Armadas e os movimentos de libertação angolanos. Portanto, veio de lá feito.
Acompanhava a evolução das negociações?
Infelizmente não, nem sempre sabíamos o que se passava no terreno. Em relação à Guiné, a situação estava à beira da ruptura. Intervim nas negociações, mas tratava-se apenas de salvar a face, pois já nada havia a fazer. O princípio das consultas populares, que se estabelecera inicialmente, não foi possível concretizar na Guiné e o mesmo sucedeu em Moçambique, onde a nossa situação estava a degradar-se cada vez mais. Em Angola, o conflito entre os movimentos de libertação veio inviabilizar essa iniciativa, que esteve prevista. Só em São Tomé e em Cabo Verde, onde não houvera guerra, foi possível auscultar as populações, que recusaram continuar ligadas a Portugal.
Como é que os restantes membros do Governo viam o evoluir da descolonização?
Vou dizer-lhe o seguinte: os outros membros do Governo não queriam ouvir falar sequer do problema colonial. Tratava-se de uma questão escaldante, susceptível de queimar quem dela se aproximasse. De um modo geral, a política ultramarina não foi discutida a nível do Governo. Havia uma Comissão Nacional de Descolonização, presidida pelo presidente da República, com duas componentes, uma militar e outra civil, na qual eu tinha assento. A descolonização foi feita por essa componente militar em 70 por cento.
Tendo vivido tantos anos em Moçambique, deve ser especialmente sensível ao que ali se passou...
Samora Machel foi um dos responsáveis pela fuga da população branca, quando começou a fazer discursos antieuropeus, depois da independência . Mais tarde arrepende-se e revelou-se amigo dos portugueses, corrigindo muitos erros do passado. Foi pena que tivesse morrido, porque era um grande chefe político.
Falando de personalidades moçambicanas, que ideia tinha do engº Jorge Jardim?
Conhecia-o muito bem e tínhamos relações pessoais de grande cordialidade. Ele colaborava numa empresa de que eu era advogado e até sócio. Era um homem muito inteligente, com um sentido heróico da vida. Onde houvesse um conflito, lá estava ele com o avião. Chegou a ter uma milícia por conta própria e estou convencido de que poderia ter sido um grande general.
Teve conhecimento do plano do engº Jardim para a independência de Moçambique, em 1973?
Fui das poucas pessoas a quem ele revelou a existência desse plano. Discutiu-o comigo, sabendo que estava a fazê-lo com uma espécie de líder da oposição moçambicana. Ele tinha confiança em mim. Veio a negociar um plano que não diverge muito do acordo de Lusaca, pois também previa uma consulta popular. Simplesmente, o primeiro ministro Marcelo Caetano não aprovou essa iniciativa e o engº Jardim ficou muito decepcionado.
Visita regularmente Moçambique?
Tenho ido lá algumas vezes e espero voltar brevemente. Devo dizer que se puder ajudar o país em termos económicos, fá-lo-ei. Tenho um projecto muito ambicioso para Moçambique, mas não vale a pena falar dele agora. Destina-se a fazer com que os moçambicanos produzam os seus próprios alimentos, porque o território tem potencialidades para isso e para muito mais. O Ocidente deverá tomar as medidas adequadas para que isso aconteça, em vez de estar a mandar auxílios anuais da ordem de muitos milhões de contos que, no fundo, não resolvem nada.
Spínola
tentou adiar o mais possível a assinatura do acordo da Guiné-Bissau.
Os militares
chegaram a formular exigências, verdadeiros ultimatos no sentido de pressionar
decisões rápidas para poderem regressar a casa.
(In Revista "Visão" - 07/04/1994)
In http://www.espoliadosultramar.com/ip15.html
VISÂO --- como viveu o 25 de Abril ?
ALMEIDA SANTOS --- Eu viera de Moçambique a Lisboa, por motivos profissionais. Na noite de 24, fechei uns contractos para o Brasil, deitei-me tarde e, pouco depois, um amigo meu telefona-me e diz-me: « Não durmas mais porque parece que está a haver uma revolução.» Perguntei-lhe, estremunhado: « É boa ou má? » Havia o risco de ser uma acção da extrema - direita militar, que na altura contestava o próprio Marcelo Caetano, dizendo que ele estava a fazer aberturas perigosíssimas relativamente à unidade do império colonial. O meu amigo esclareceu-me: « Pela música parece-me que é boa.» Já não dormi mais. Fui para a rua e dirigi-me ao jornal República.
Estivera preso alguma vez?
Eu teria estado preso tantas vezes quantas os meus amigos (os elementos da oposição democrática ) estiveram, se vivesse em Lisboa. Mas em África a PIDE não prendia brancos, só prendia pretos. Coisas que fizemos com muito mais gravidade do que certas acções levadas a efeito em Portugal, lá não davam prisão. Mas fui incomodado muitas vezes, de diversas maneiras.
Mantinha contactos com as Forças Armadas em Moçambique?
Com alguns elementos, mas convém esclarecer que as Forças Armadas não estavam propriamente do meu lado. Sabia-se que alguns militares andavam descontentes, sobretudo na ponta final do regime. A partir de certa altura, a população (branca) começou a contestar as Forças Armadas, acusando-as de alguma ineficácia no tocante, quer ao combate ao terrorismo quer à manutenção da ordem.
Que informações possuía acerca da actualização da Frelimo?
Só me chegavam boatos, que nem sempre correspondiam à verdade. Tínhamos um grupo que todos os dias se reunia no Café Continental, em Lourenço Marques, e era um fervilhar de informações. Desse grupo faziam parte o Jacinto Veloso e o João Ferreira, mais tarde figuras da Frelimo.
Como foi parar ao Governo?
No dia 25 de Abril, o aeroporto de Lisboa foi fechado e não pude regressar imediatamente a Moçambique. Fiquei por cá uns oito a dez dias e, a dada altura, fui solicitado a dar a minha colaboração no esboço do programa do I Governo Provisório.
Quem o convidou?
Foi o prof. Veiga Simão, que era muito amigo do general Spínola. Pouco depois de regressar a Moçambique, o general Costa Gomes foi lá. Levava-me um convite do general Spínola para eu fazer parte do I Governo Provisório, como ministro da Coordenação Interterritorial. Era um nome muito esquisito, que, no fundo, disfarçava o que restava do antigo Ministério do Ultramar. Tratava-se de ajudar a fazer a descolonização, nos aspectos administrativos e institucionais.
Qual era a sua posição em relação às colónias?
Até 1971/1972 defendi uma solução federativa, porque me apercebi de que ainda poderíamos tentar uma saída política, embora sabendo que, com o tempo, os laços com Portugal seriam cortados. Mas isso permitiria uma transferência de poderes não catastrófica, que salvaguardaria as estruturas económicas e a permanência dos colonos. A partir de certa altura dei-me conta de que isso se tornara impossível e, no meu livro Já Agora, abandonei a tese federativa e passei a defender o princípio da autodeterminação, através de consultas aos povos das colónias.
Portanto, quando tomou posse como ministro, não estava em consonância com as ideias do general Spínola...
O general Spínola ainda tentou, depois do 25 de Abril, pôr de pé a doutrina do seu livro Portugal e o Futuro. Tivemos muitas conversas sobre isso e eu reconhecia nele um patriota cheio de boas intenções, mas o general foi ultrapassado pelos acontecimentos. Houve uma aceleração muito grande no estado de espírito das Forças Armadas, cada dia que passava era mais uma dificuldade acrescida, porque a saturação se tornava cada vez maior. E os militares chegaram a formular exigências, verdadeiros ultimatos no sentido de pressionar decisões rápidas para poderem regressar a casa.
Quer dizer que, num dado momento, Spínola teve de ceder?
O general tentou salvar uma solução de tipo comunitário, mas acabou por aceitar negociar a descolonização caso a caso. Ele próprio assinou o acordo da Guiné – Bissau, mas fê-lo um pouco contrafeito e só porque já não havia outra solução. Devo dizer que ele tentou adiar o mais possível a assinatura do acordo, para ver se conseguia espaço de manobra. Queria salvar o que ainda acreditava poder salvar.
Quem o apoiava nessa tentativa?
Não possuía muitos apoios, porque o Governo já era presidido por Vasco Gonçalves, que tinha uma visão da descolonização oposta à do general Spínola. E é assim que surge uma lei a consentir a descolonização por negociação directa entre Portugal e os movimentos de Libertação. Há, aliás, um aspecto curioso em tudo isso. Um belo dia, vejo no então Diário do Governo uma lei com um artigo único, que permitia a descolonização por acordos negociados e assinados pelo presidente da República. Como não tinha conhecimento daquele diploma, fui ter com o general Spínola e perguntei-lhe: « O que é que se passa? Eu tenho de pedir a minha demissão. Um lei destas - e eu não sei de nada!»
Quando é que isso aconteceu?
Estávamos, salvo erro, a 7 de Julho de 1974 e o presidente respondeu-me: «Mas eu não assinei lei nenhuma!» «Não assinou? Mas está publicada!» Mandámos vir o dossier da lei e, na verdade, não estava assinada. Alguém tivera a preocupação de criar um facto politíco que impedia o regresso à estaca zero.
Sabe quem foi o autor desse facto político?
Não faço ideia nenhuma. Lá se deu um toque na lei, que ficou com dois artigos em vez de um pois constituia um verdadeiro disparate.E no dia seguinte, o general fez um grande discurso a admitir o princípio da autodeterminação com base em acordos negociados. Foi a partir desse momento que se legitimou o processo de descolonização tal como veio a decorrer.
Como encarava o peso da sua missão?
O meu papel não foi tão grande como tem sido dito. Em relação a Angola não tive praticamente interferência nenhuma na negociação do acordo, pois apenas lhe melhorei a redacção, a nível formal. O acordo foi negociado entre as Forças Armadas e os movimentos de libertação angolanos. Portanto, veio de lá feito.
Acompanhava a evolução das negociações?
Infelizmente não, nem sempre sabíamos o que se passava no terreno. Em relação à Guiné, a situação estava à beira da ruptura. Intervim nas negociações, mas tratava-se apenas de salvar a face, pois já nada havia a fazer. O princípio das consultas populares, que se estabelecera inicialmente, não foi possível concretizar na Guiné e o mesmo sucedeu em Moçambique, onde a nossa situação estava a degradar-se cada vez mais. Em Angola, o conflito entre os movimentos de libertação veio inviabilizar essa iniciativa, que esteve prevista. Só em São Tomé e em Cabo Verde, onde não houvera guerra, foi possível auscultar as populações, que recusaram continuar ligadas a Portugal.
Como é que os restantes membros do Governo viam o evoluir da descolonização?
Vou dizer-lhe o seguinte: os outros membros do Governo não queriam ouvir falar sequer do problema colonial. Tratava-se de uma questão escaldante, susceptível de queimar quem dela se aproximasse. De um modo geral, a política ultramarina não foi discutida a nível do Governo. Havia uma Comissão Nacional de Descolonização, presidida pelo presidente da República, com duas componentes, uma militar e outra civil, na qual eu tinha assento. A descolonização foi feita por essa componente militar em 70 por cento.
Tendo vivido tantos anos em Moçambique, deve ser especialmente sensível ao que ali se passou...
Samora Machel foi um dos responsáveis pela fuga da população branca, quando começou a fazer discursos antieuropeus, depois da independência . Mais tarde arrepende-se e revelou-se amigo dos portugueses, corrigindo muitos erros do passado. Foi pena que tivesse morrido, porque era um grande chefe político.
Falando de personalidades moçambicanas, que ideia tinha do engº Jorge Jardim?
Conhecia-o muito bem e tínhamos relações pessoais de grande cordialidade. Ele colaborava numa empresa de que eu era advogado e até sócio. Era um homem muito inteligente, com um sentido heróico da vida. Onde houvesse um conflito, lá estava ele com o avião. Chegou a ter uma milícia por conta própria e estou convencido de que poderia ter sido um grande general.
Teve conhecimento do plano do engº Jardim para a independência de Moçambique, em 1973?
Fui das poucas pessoas a quem ele revelou a existência desse plano. Discutiu-o comigo, sabendo que estava a fazê-lo com uma espécie de líder da oposição moçambicana. Ele tinha confiança em mim. Veio a negociar um plano que não diverge muito do acordo de Lusaca, pois também previa uma consulta popular. Simplesmente, o primeiro ministro Marcelo Caetano não aprovou essa iniciativa e o engº Jardim ficou muito decepcionado.
Visita regularmente Moçambique?
Tenho ido lá algumas vezes e espero voltar brevemente. Devo dizer que se puder ajudar o país em termos económicos, fá-lo-ei. Tenho um projecto muito ambicioso para Moçambique, mas não vale a pena falar dele agora. Destina-se a fazer com que os moçambicanos produzam os seus próprios alimentos, porque o território tem potencialidades para isso e para muito mais. O Ocidente deverá tomar as medidas adequadas para que isso aconteça, em vez de estar a mandar auxílios anuais da ordem de muitos milhões de contos que, no fundo, não resolvem nada.
(In Revista "Visão" - 07/04/1994)
In http://www.espoliadosultramar.com/ip15.html