Sobre a «Voz da Quizumba»
Sérgio
Vieira deve ser dos poucos autores que após um esforço titânico de
trazer à estampa um volumoso livro, acha necessário lançar “avisos à
navegação” logo nas primeiras páginas, alertando os incautos de que
poderão deparar com “deficiências involuntárias” para depois pedir que
seja considerado como “fonte primária”, mas “capaz de errar”, frisando
que, se “deturpou”, não o fez “deliberadamente”. Bem escorado, o autor
não esclarece, porém, se a memória apenas o atraiçoou à medida que iam
recuando nos anos, ou se lhe pregou partidas também em outras épocas.
Mas
ao leitor atento, fácil é descortinar que a maleita de que padece o
autor é imprevisível, manifestando-se quer quando recorda a fase da
adolescência em Tete, dizendo, por exemplo, (p. 57) que a central local
“pertencia a um privado, o senhor Serras Pires, que depois a vendeu ao
município" (na realidade este velho colono apenas tinha um contrato com a
Câmara Municipal, entidade que lhe havia alugado a central); ou quer
ainda quando as reminiscências reportam-se à fase de estudante
universitário, em que afirma que, ao ir “de férias a Tete de Julho a
Setembro de 1961”,
Baltazar da Costa Chagonga encontrara-se com ele “por acaso, no bar do
Christos & Luskos”. (p. 144) Como assim, se logo após ter saído da
cadeia em Maio de 1960, Chagonga passara a viver exilado no Malawi?
Depois
de ter metido os pés pelas mãos no concernente à disputa Mondlane-Cuba,
o autor de “Participei, por isso testemunho” refere que “o nosso
relacionamento com Cuba teve, a meu conhecimento, apenas um momento de
inquietação” devido a uma proposta apresentada a Moçambique por um alto
dirigente cubano visando a criação de um governo do Zimbabwe no exílio a
partir do território moçambicano. (p. 632).
Posteriormente, segundo o autor, veio a saber-se que a proposta não tinha o aval de Fidel Castro.
Na
realidade, não foi este o único “momento de inquietação” nas relações
entre os dois países. Uns anos depois, Samora Machel ordenaria a
expulsão do chefe da missão militar cubana em Moçambique por ter tentado
obter informações confidenciais sobre a política do regime da Frelimo
em relação ao ANC, servindo-se para tal do contacto que estabelecera com
a secretária particular do chefe de Estado moçambicano. De imediato, a
secretária alertou a segurança moçambicana para a tentativa de
espionagem. Apanhada com a boca na botija, a Embaixada de Cuba em Maputo
desfez-se em desculpas, alegando que o chefe da missão militar cubana
agia por conta própria, havendo até suspeitas que trabalhava para uma
potência estrangeira. Prometeu a embaixada que o irreverente diplomata
seria repatriado sob prisão para Havana e destituído dos cargos que
desempenhava nas FAR.
Quando,
mais tarde, uma delegação do Ministério de Segurança-SNASP efectuou uma
visita de trabalho a Cuba viria a constatar que a explicação que havia
sido dada pela embaixada era redondamente falsa. Enquanto tomavam uma
refeição em Varadero, os membros da delegação moçambicana ficaram
perplexos ao reparar que numa mesa uma pouco afastada estava o antigo
chefe da missão militar cubana em Moçambique, não mostrando indícios de
ter passado por nenhum mau bocado, tendo sido apurado que permanecia no
desempenho de funções.
A
páginas 420 do seu livro de memórias, o autor afirma que “com o apoio
do Governo de Salisbúria, Cristina iniciara violentos ataques de
propaganda radiofónica contra o nosso Estado já nos finais de 1975,
através da chamada Voz da África Livre, que o povo aqui apodava Voz da
Quizumba”. Na página 422, o autor fornece uma data diferente, afirmando
que “a Rodésia e o grupo ultracolonial, com Orlando Cristina à cabeça,
haviam criado em meados de 1975, umas semanas após a nossa
independência, a Rádio Quizumba.”
Na
realidade, a emissora não foi criada nem em meados de 1975 nem nos
finais deste ano. Nem tão pouco foi Orlando Cristina quem a criou. E
contrariamente ao que alega o autor, não foi o povo que “apodou” a
estação radiofónica de “Voz da Quizumba”, mas sim o Departamento de
Trabalho Ideológico (DTI) da Frelimo. A Voz da África Livre foi para o
ar pela primeira vez a 5 de Julho de 1976. Cristina só viria a assumir
controlo editorial da rádio em Agosto desse ano.
Retomando
a falsidade e a mentira crassas do departamento ideológico da Frelimo,
em tempos propaladas através da AIM, o autor afirma que no “indicativo
musical dessa rádio surgia uma canção colonial racista, Kanimambo
(Obrigado) Como o Negro Diz!” (p. 422)
O
indicativo musical da Voz da África Livre era “Moçambique” e não
“Kanimambo”, embora esta canção fosse ocasionalmente radiodifundida pela
emissora. Ao invés do que escreveu Sérgio Vieira, da versão “Kanimambo”
transmitida pela Voz da África Livre não constava “Como o Negro Diz”.
O
timbre de “colonial racista” não se ajusta a nenhuma dessas canções
nem, por inerência, ao autor das respectivas letras, o poeta moçambicano
Reinaldo Ferreira, considerado por figuras como José Régio e Vitorino
Nemésio como um dos expoentes da poesia lusófona. Da obra de Reinaldo
Ferreira constam poemas como “Menina dos Olhos Tristes”, que inspiraria o
famoso cantor antifascista, Zeca Afonso, a compor uma balada contra a
guerra colonial, mas que a censura/exame prévio do regime de Marcelo
Caetano proibiu.
A
publicação póstuma da antologia poética de Reinaldo Ferreira coincidiu
com a presença de Sérgio Vieira em Lisboa, pormenor que, pelos vistos,
passou despercebido ao autor, provavelmente devido à sua
sobrecarregadíssima agenda de universitário, a par das extracurriculares
peregrinações noctívagas pela Avenida Duque de Ávila, Praça da Alegria e
Rua da Glória. (pp. 134-135) (Redacção)
CANALMOZ – 23.03.2010
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