Sobre “El Che” e datas que não batem certo
O
livro de memórias de Sérgio Vieira, lançado a semana passada em Maputo,
promete ser polémico, não apenas por aquilo que deixou de contar, mas
também pelo que contou mal. Seja por descuido, ou por escrever à pressa
no leito de um hospital, a verdade é que um livro das dimensões de um
“Participei, por isso testemunho”, tendo como autor um alto dirigente da
Frelimo com responsabilidades em variadíssimos ramos, aliado ao facto
de ter sido patrocinado por entidades de renome, teria antes de mais ter
em consideração a história, estando a isto subjacente a credibilidade
da organização política que representa. E os descuidos não se prendem
apenas com o rigor dos factos históricos, mas também com o ABC da
escrita.
A
páginas 627, o autor afirma que num encontro com Mondlane em 1965, nos
escritórios da Frelimo em Dar es Salam, Che Guevara propôs “que a
FRELIMO cessasse o combate armado em Moçambique e direccionasse os seus
quadros e meios para lutarem no Congo.” Prossegue o autor: “Pelas
informações dos nossos amigos tanzanianos, Mondlane estava já ao
corrente de que a missão cubana ali obtivera muito pouco sucesso.
Sabíamos, também, pelos nossos amigos tanzanianos, que El Che e o
contingente cubano se estavam a retirar do Congo.”
Sérgio Vieira deturpa de várias formas o que foi discutido no encontro de Fevereiro de 1965. A
entrada do contingente cubano no Congo, através do território
tanzaniano, só teve início em Abril de 1965. De imediato, isto levanta a
questão de se saber como é que, em Fevereiro desse ano, “os amigos
tanzanianos” poderiam ter posto Mondlane ao corrente de algo que ainda
não havia tido lugar. E se a retirada do contingente cubano desdobrado
no Congo só se veio a verificar em Novembro de 1966, logo, “os amigos
tanzanianos” também não poderiam, em Fevereiro de 1965, ter fornecido
informações a Mondlane sobre uma retirada que nem sequer se vislumbrava
no horizonte.
A
forma leviana como o autor de “Participei, por isso testemunho” baralha
datas e deturpa factos, impele-o a fazer afirmações em tudo desfasadas
da realidade, como a de Che Guevara ter proposto que a Frelimo cessasse o
combate armado em Moçambique. Na realidade, na óptica cubana, a luta
devia prosseguir não só em Moçambique, como também em Angola e em outros
pontos do continente africano. Tanto assim é que Cuba, no encontro de
Dar es Salam em Fevereiro de 1965 propôs à direcção da Frelimo o
desdobramento de instrutores militares em bases da Frelimo em
Moçambique. Mondlane recusou, segundo relatariam mais tarde três antigos
membros do corpo expedicionário cubano no Congo, nomeadamente Paco
Ignacio Taibo II, Froilán Escobar e Félix Guerra. Citando o embaixador
cubano em Dar es Salaam, os três, num livro intitulado, «O ano em que
estivemos em parte nenhuma - A guerrilha africana de Ernesto Che
Guevara» escrevem que "alguns companheiros que o Che pensava enviar para
Moçambique não puderam ir porque os contactos que tínhamos estabelecido
com o governo da Tanzânia e com os
moçambicanos disseram que não era ainda o momento, e o Che deu-me
instruções para que fossem para o Congo e para o Congo os enviei."
A
recusa de Mondlane em aceitar instrutores cubanos e de integrar
guerrilheiros da Frelimo no corpo expedicionário cubano prende-se com
algo que Sérgio Vieira certamente sabe, mas que não ousou testemunhar,
da mesma forma que o fez em relação a outros factos, especialmente
aqueles em que participou de forma directa, como o simulacro de
julgamento ocorrido em Nachingwea em meados de 1975 e que no livro o
autor passa por alto, referindo-se a ele de soslaio como “encontro”.
Mondlane
não aceitou as propostas cubanas pelo simples facto de estar
comprometido com os Estados Unidos da América, potência com quem Cuba,
desde os tempos de Playa Giron, pretendia ajustar contas. Tal como o
embaixador cubano em Dar es Salam havia prevenido a Che Guevara, “não
conte com Mondlane pois os campos da Frelimo estão contaminados por
membros do Corpo da Paz”, o chamado Peace Corps, uma versão imperial de
ONG, criada pelo Presidente Kennedy e que tinha como director um cunhado
seu de nome Sargent Shriver. (Redacção)
A seguir: Memórias de Sérgio Vieira – 2
Sobre a “Voz da Quizumba”
CANALMOZ – 16.03.2010
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