quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O PREC SEGUNDO OTELO

O  PREC  SEGUNDO  OTELO


 
Herói ou vilão, não meio termo.
 As opiniões sobre Otelo Saraiva de Carvalho extremam-se entre dois pontos.
 Um dia, Salgado Zenha chamou-lhe «adolescente imaturo».
 Ele ofendeu-se, claro.
 Mas quem percorrer as páginas que se seguem decerto vai lembrar-se da expressão de Zenha.
 O que temos aqui é um relato na primeira pessoa de História vivida por um dos protagonistas de maior peso no período revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril.
 E o leitor há-de interrogar-se amiúde: “onde estaríamos hoje se este homem tivesse montado o cavalo do poder, que, segundo afirma, lhe passou à porta mais de uma vez??” xpresso – O então major Otelo foi o último a sair do Posto de Comando da          Pontinha, já no dia 26 de Abril, às 13 H 30 da tarde. Nessa altura o que  sentiu ??  Era o                      momento da solidão do vencedor ??
 OTELO SARAIVA DE CARVALHO –  Pensei isto exactamente: «Esta malta foi-se toda embora e deixou-me aqui sozinho!». De modo que fui eu que arrumei a casa: guardei as granadas e as pistolas que tinham ficado ali soltas em cima das mesas, fechei as gavetas, retirei a minha carta do ACP que me tinha servido de mapa para acompanhar as operações das unidades da MFA, e pronto. Apaguei a luz, fechei a porta, meti-me no carro e fui para casa.
 EXP. - E o que fez a seguir ?
 O.S.C. – Cheguei a casa, tomei um banho, fiz a barba – já com a barba de dois dias – e fui com a minha mulher, calma e tranquilamente, almoçar a um restaurante em Paço de Arcos. Propus-lhe então que fossemos ver a libertação dos presos de Caxias. A libertação não foi imediata, demorou algum tempo, porque havia dúvidas, por parte do general Spínola e da Junta de Salvação Nacional, em libertar alguns presos. O mais polémico terá sido talvez o Hermínio da Palma Inácio,  que  Spínola classificava como delinquente de delito comum. Entretanto, os fuzileiros estavam já em Caxias, tinham tomado conta da situação. A prisão de Caxias era um objectivo que ficara sem ser conquistado, porque uma das unidades do MFA, o Regimento de Infantaria 1 da Amadora, falhou. Já eu estava no Posto de Comando, no dia 24, quando tive a notícia que as duas companhias desse regimento não entravam em operações. Quer a sede da PIDE na António Maria Cardoso quer o Forte Militar de Caxias não foram conquistados. Enfim, fiquei ali a acompanhar a movimentação até que, a certa altura, cansado como estava, resolvi ir para casa. Peguei no carro e, quando descia pela rampa, os fuzileiros mandaram-me parar. Havia ali uma multidão ululante, profundamente antifascista, que cresceu para o carro, rodeou-o e desatou aos gritos: «É pide, ele é pide !». Eu ia à paisana com a minha mulher, vi o caso um bocado mal parado, mas exibi o meu cartão aos fuzileiros e deixaram-me passar. Aqueles milhares de pessoas passaram então rapidamente do «É pide! É pide»  para o «MFA! MFA!»,  e lá saí daquela opressão que de repente se abateu sobre o carro.
 EXP.- Nesse dia de 26 de Abril de 1974 tinha noção que havia mudado já radicalmente o País e de que a sua vida também ia mudar decisivamente?
 O.S.C. – Não tinha. De facto, não tive essa noção. Quer no dia 25 de Abril, quer nos dias que se seguiram, não tinha a noção da dimensão daquilo que tínhamos acabado de fazer. 
 Logo a seguir – o dia 25 foi uma Quinta-feira – meteu-se o fim de semana, e eu, na Segunda-feira seguinte, apresentei-me na Academia Militar, onde era professor adjunto de táctica de artilharia, para continuar a dar as minhas aulas. E estava eu já tranquilamente a dar as minhas aulas – enquanto o tumulto da Revolução corria cá fora – quando fui intimado pelos meus camaradas, sobretudo pelo Vasco Lourenço, que já tinha regressado dos Açores, a apresentar-me rapidamente na Cova da Moura, porque agora é que as coisas iam começar, agora é que era necessário assumir responsabilidades. E pronto, perante essa intimação, apresentei-me na Cova da Moura. Ninguém me conhecia a não ser os meus camaradas que tinham estado directamente envolvidos comigo no MFA, e indicaram-me um centro de operações para eu me apresentar. Fui bater à porta ... era confidencial, secreto, estavam ali a comandar-se as operações de todas as movimentações das tropas pós-25 de Abril e abriu-me a porta um capitão da Força Aérea que me perguntou: «O que é que tu queres, pá?» «Disseram-me para me apresentar aqui, no centro de operações...» «Pois, mas isto aqui está cheio, já não tens lugar. Podes ir-te embora. Vê aí outro sítio qualquer onde possas caber». Eu não conhecia esse capitão da Força Aérea, ele também não me conhecia a mim, mas, perante o meu ar perguntou-me: «Como é que te chamas?» «Sou o Otelo Saraiva de Carvalho». «Ah, Tu é que és o Otelo? Então entra». Era, vim a saber depois, o capitão Tomás Rosa. 
 EXP.- Qual foi para si o momento decisivo do 25 de Abril, em termos de operação?
 O.S.C. – O momento decisivo foi a rendição do Governo. Era uma coisa esperada, nós já tínhamos tudo na mão, a vitória era óbvia, mas faltava o Governo ajoelhar-se, render-se, dizendo: «Sim senhor, perdemos, e o poder é vosso. O poder é do MFA». E isso aconteceu cerca das 19 h 30m do dia 25.  Esse momento de entrega do poder foi precedido de um telefonema do general Spínola para mim, para o posto de comando. O general disse-me que tinha acabado de receber um telefonema do professor Marcello Caetano, que se encontrava no Largo do Carmo, no quartel-general da GNR, pedindo-lhe para ele ali se deslocar e lhe ser entregue o poder, para evitar que o poder caísse na rua. Spínola disse-me ter informado Marcelo Caetano de que não pertencia ao Movimento, não tinha nada a ver com o desenvolvimento das operações militares e teria de contactar o comando da MFA. Perguntou-me então se eu autorizava, qual era a minha intenção relativamente a esta questão, e eu mandatei-o para se deslocar ao Largo do Carmo e receber o poder das mãos do professor Marcelo Caetano. Isto porque o general Spínola, juntamente com o general Costa Gomes, tinham sido os dois oficiais generais indigitados pelo MFA, na reunião de 1 de Dezembro de 1973, em Óbidos, para virem a fazer parte de uma Junta de Salvação Nacional.
 EXP:- Não tinha ficado definido qual deles seria o presidente?
 O.S.C. – Não. Como a questão da antiguidade na instituição militar é sempre um ponto fundamental, para nós era claro que Costa Gomes, sendo general primeiro de que Spínola assumiria logicamente as funções de Presidente da República. E aí julgo que prevaleceu muito a sageza do general Costa Gomes que, na circunstância que estávamos a viver, considerou mais importante ficar com o comando das Forças Armadas do que com o balcão político da Presidência. Por outro lado, isso conjugava-se com o anseio de há muito tempo demonstrado pelo general Spínola de vir a ser Presidente da República. E, assim, facilmente Costa Gomes empurrou Spínola para a Presidência, ficando ele na chefia do Estado-Maior General das Forças Armadas.
 EXP.- Mas o Movimento não teve a ver com isso? Foi tudo decidido entre os dois?
 O.S.C. – Foi decidido entre eles, como o general Costa Gomes mais tarde revelou, dizendo que não tinha apetência nenhuma pela Presidência da República, interessava-lhe era regressar às suas funções no estado-maior General das Forças Armadas. E entregou de bandeja a Presidência ao general Spínola.
 EXP.- E qual foi o momento que o fez sentir maior apreensão no 25 de Abril ?
 O.S.C.- Tive duas ocasiões: uma primeira às quatro horas da manhã de 25, quando nos faltava ainda conquistar um objectivo importante, e sem isso não podia emitir o primeiro comunicado do MFA. Esse objectivo era o Aeroporto de Lisboa, para evitar o levantamento e aterragem de quaisquer aviões – que, a nível do Pacto Ibérico, pudessem vir ainda em apoio do professor Marcello Caetano. Foi por isso que também procurei guarnecer todas as fronteiras terrestres com tropas, para evitar que houvesse movimentação militar ou de civis através das fronteiras terrestres. A missão estava cometida à Escola Prática de Infantaria, mas a coluna que veio de Mafra para conquistar o aeroporto meteu-se por caminhos ínvios e foi parar a Camarate, andou por ali perdida com viaturas pesadíssimas a fazer manobras em cotovelo e estava atrasadíssima. Nessa altura, encontrava-se sozinho no aeroporto o capitão Costa Martins, da Força Aérea, que teve uma actuação brilhante e extremamente corajosa. Quando tive a comunicação, com alívio, de que o aeroporto já estava cercado e tomado pelas forças do MFA, dei indicação ao major Costa Neves, que controlava o grupo de assalto ao Rádio Clube Português, para emitir o primeiro comunicado do MFA.
 EXP.- E o segundo momento de apreensão?
 O.S.C.- O segundo momento foi o regresso da fragata que estava integrada na esquadra da NATO, quando ela começou a subir de novo o Tejo para ir tomar posição à frente do Terreiro do Paço, com as peças em posição de fogo – embora o almirante Louçã (pai do Francisco Louçã) me tenha mais tarde garantido que dirigiu as peças para o ar, como sinal que não estava disposto a disparar sobre as forças terrestres que ocupavam o Terreiro do Paço.
 EXP.- E quando a PIDE disparou sobre os manifestantes?
 O.S.C.- Aí está uma consequência de a  António Maria Cardoso não ter sido ocupada em tempo oportuno. Se o nosso camarada do MFA do Regimento de Infantaria 1 da Amadora tivesse tido a coragem de levar por diante a acção, nós poderíamos ter ficado com todo o bloco de informação da PIDE – toda aquela documentação que a PIDE teve oportunidade de destruir antes da tomada da sede. E, perante a força que a manifestação popular na António Maria Cardoso estava a ter, os elementos da PIDE acabaram por disparar sobre a população. Isso podia ter sido evitado.
 EXP.- Assistiu na Pontinha à comunicação da Junta de Salvação Nacional pela televisão ?
 O.S.C.-  Assisti na Pontinha através da televisão. Não estava na sala porque, já na noite de 25, quem se foi reunir com os elementos que iam integrar a Junta de Salvação Nacional foram camaradas meus do meu grupo político, que o Vítor Alves tinha constituído e que iria coordenar toda a discussão sobre a política do MFA: o comandante Vítor Crespo, o tenente-coronel Charais, o coronel Vasco Gonçalves, etc.
 EXP.- Já conhecia o general Spínola. Tinha confiança no general para ser ele a pegar no leme a partir dali ?
 O.S.C.- Eu tive um permanente contencioso com Spínola na Guiné. Não era um homem spinolista, nunca fui, não pertencia ao círculo spinolista, não tinha sido requisitado pelo general, apareci lá em 1970 em rendição individual para desempenhar funções. Uma das últimas funções que desempenhei, antes do meu regresso e do regresso dele a Lisboa, em 1973, foi a preparação das cerimónias de 10 de Junho. E aí tive, mais uma vez, um problema grave com ele. A certa altura, o Spínola, não sei porquê – na altura pareceu-me uma birra -, decidiu não impor a condecoração a um militar negro das milícias. «Passe a outro», disse-me. Eu consultei a revista e repeti-lhe: «Mas é o meu general que o deve condecorar...»  Ele recusou completamente: «Mas já lhe disse que não o condecoro». E fez para ali um teatro desgraçado. Fiquei um bocado atrapalhado, até que avançou ... não sei se o Pedro Cardoso para impor a condecoração. O Almeida Bruno explicou-me mais tarde que eu tinha incorrido num erro grave: é que o homem a condecorar era um palmo em altura bem maior que o Spínola e ele tinha de se pendurar nele para lhe pôr a condecoração...  Foi o último contencioso que tive com ele. Mais tarde, quando subiu a vice-chefe do estado-maior General das Forças Armadas, eu e o Vasco Lourenço fomos encarregados de dizer que o MFA estava em movimento e que ele e o general Costa Gomes tinham sido eleitos para uma futura Junta de Salvação Nacional, se o Governo viesse a cair perante as nossas reivindicações.
 EXP.- E esses contactos correram bem ?
 O.S.C.- Correram bem. Spínola viu no Movimento uma alavanca de apoio importante para, finalmente, atingir a Presidência da República. Tinha batalhado por isso durante anos. Esteve rodeado na Guiné por uma equipa excelente de oficiais que montaram e puseram ao seu serviço um sistema de propaganda assinalável, dando-lhe um prestígio, a nível nacional e internacional, muito elevado.
 EXP.- Nessa reunião de Óbidos, em Dezembro de 73, Spínola não foi o mais votado, foi Costa Gomes.
 O.S.C.- Exactamente.
 EXP.- E houve uma terceira figura muito votada, que foi Kaúlza de Arriaga ...
 O.S.C.- Foi nessa reunião que se passou de movimento de capitães a movimento de oficiais das Forças Armadas. Estavam já presentes elementos da Força Aérea e da Marinha, como observadores. Começaram a integrar-se. É por isso que aparece o nome de Kaúlza, fundador dos pára-quedistas em Portugal. Foi um elemento também votado, mas era impensável a sua integração na Junta de Salvação Nacional.
 EXP.- Surpreendeu-o ver Spínola aparecer com presidente da Junta ?
 O.S.C.- Pensei: «Mais uma vez, o general lá conseguiu empalmar o general Costa Gomes». Mais tarde compreendi que não tinha sido assim, que tinha sido o contrário.
 EXP.- Voltando um pouco atrás: um mês e pouco antes do 25 de Abril, há dois acontecimentos decisivos: as demissões de Spínola e Costa Gomes e, no dia a seguir, o golpe falhado das Caldas. Nunca teve medo, sendo já tão conhecida a movimentação dos capitães e oficiais, que a PIDE ou os serviços de informação desmantelassem o MFA, ao longo de todo aquele mês que decorria  até ao 25 de Abril ?
 O.S.C.- Tive receio, sobretudo, a partir de 16 de Março. Já fora sintomático que, três dias do plenário do MFA de 5 de Março, em Cascais, o Vasco Lourenço e mais três capitães do movimento tivessem sido transferidos subitamente das suas unidades. Dos quatro, o importante era o Vasco Lourenço: eu, ele e o Vítor Alves constituíamos a direcção executiva, o núcleo forte do movimento. Essa transferência trazia água no bico, dava indicação de que pelo menos a PIDE já saberia, através de conversas telefónicas, de escutas ou de documentação que tivessem eventualmente apanhado, que aqueles quatro elementos eram do Movimento. Parecia haver aqui uma táctica de dispersão, de começar a separar figuras. Depois, na noite de 15 para 16 de Março, eu estive por duas vezes quase a ser preso pela PIDE.
 A primeira quando foi com o Vítor Alves a casa do Almeida Bruno, no Monte Estoril. Eu fiquei no carro, e o Vítor Alves foi falar com a mulher do Almeida Bruno. Saímos de lá e soube mais tarde que o capitão Farinha Ferreira, afilhado de casamento do Bruno, fora a seguir a casa do padrinho e nem chegara a entrar porque a PIDE já lá estava. Apanharam o Farinha Ferreira, amarram-no a uma árvore, fizeram-lhe perguntas e levaram-no preso. Essa foi uma primeira escapadela  que eu tive à PIDE. Entretanto, nas deambulações que tive de fazer para o 16 de Março, uma das coisas foi ir a Mafra ver se conseguia trazer uma ou duas Companhias da Escola Prática de Infantaria. E vim de lá de mãos vazias, porque era fim-de-semana.
 EXP.- Quer dizer que ainda tentou, à última da hora, que o 16 de Março fosse para a frente.
 O.S.C.- Eu participei activamente no 16 de Março.
 EXP:- Mesmo sem grande planeamento.
 O.S.C.- Não havia plano nenhum, de facto. Havia um plano de operações que não era nada. O 16 de Março foi lançado para tentar evitar a «brigada do reumático» (a apresentação dos generais e almirantes perante Marcello Caetano) e, numa última e desesperada tentativa, para tentar fazer recuar a exoneração de Spínola e Costa Gomes. A primeira acção era para ser desencadeada a 13 de Março e, por minha ordem, ficou sem efeito. Depois, foi recuperada para o dia 16 de Março, quando é dada a notícia de que o Spínola foi exonerado. Nessas minhas deambulações, como dizia, ainda fui a Mafra, cheguei lá às 3 horas da manhã, depois, nada conseguido, regressei a Lisboa e desloquei-me a casa do Monge – ele morava em Miraflores, em Algés – para tentar saber o que é que se estava a passar, porque eu não tinha conseguido cumprir as missões que me foram cometidas. Quando cheguei a casa do Monge, para aí a um 100 metros à minha frente, parou uma viatura da qual saem cinco homens todos de gabardina e chapéu. Parti do princípio que eram da PIDE, e era de facto uma brigada chefiada pelo inspector Oscar Cardoso. Foram a casa do Monge, de maneira que eu nem parei. Se tivesse chegado um minuto antes deles e estivesse em caso do Monge quando eles batessem à porta, às cinco e meia da manhã, não me safava. E se tivesse chegado um minuto depois, batia à porta, já eles lá estavam e prendiam-me também.
 EXP.- Porque é que acha que a PIDE, nos quarenta dias que se seguem, até ao 25 de Abril, não consegue desmantelar o Movimento ?
 O.S.C.- Primeiro, desde os tempos da guerra do Ultramar que havia sempre uma comunhão de actividades entre a PIDE e as Forças Armadas, a nível de escalões menos intermédios mas sobretudo de escalões mais altos...
 EXP.- Acha que havia alguma inibição da PIDE em actuar ?
 O.S.C..- Sim, porque existiam de facto esses contactos. Por outro lado, a PIDE consideraria que uma questão como essa, que envolvia um grupo de oficiais já muito alargado dentro da instituição militar, requeria uma ordem directa do Governo. E Marcello Caetano terá deixado aquilo avançar demasiadamente, à espera de conseguir conciliar e resolver a situação. Com o movimento já em marcha, puxa para vice-chefe do Estado-maior o Spínola, que era, para o Marcello, o «ponta-de-lança», a figura importante que havia que controlar. Com a publicação do livro Portugal e o Futuro, Marcello percebe que alguma coisa pode acontecer. Pressionado pela extrema-direita, tem de exonerar Spínola e com a vitória alcançada no 16 de Março, fica tranquilizado: «O Spínola agora foi isolado, perdemos os spinolistas, a situação acalma», como ele diz no comunicado em que elogia a vitória sobre o 16 de Março.
 EXP.- E acredita que a PIDE não tinha informação que o movimento era mais vasto do que esse número de spinolistas ?
 O.S.C.- A partir do 16 de Março, com a prisão de cerca de 200 soldados, cabos e sargentos do Regimento de Infantaria das Caldas da Rainha, além de 30 oficiais, a PIDE poderia começar a estabelecer um quadro de dirigentes do MFA. Tive receio de que isso acontecesse, e pensei que a única saída para nós não era – como muitos camaradas advogavam – ficarmos quietos, não fazermos mais nada até a situação ficar tranquila. Tive a ideia precisamente contrária: a única saída neste momento é a fuga em frente, e tomarmos a ofensiva e irmos declaradamente para a acção militar. Porque, se não, a PIDE começa a trabalhar e arruma o MFA. Foi essa a teoria que prevaleceu e que, felizmente, foi levada por diante. A minha perspectiva foi sempre a de fazer a acção militar antes do 1º de Maio. Porque depois de ter visto os «grafitti» que havia por Lisboa - «O 1º de Maio é Vermelho», etc. – pensei: «Bem, a PIDE está dedicada neste momento a destruir aquilo que houver de PC e MRPP e vai concentrar-se exclusivamente nisso». Não vamos trocar mais documentos nenhuns, não vai ser elaborada mais nenhuma circular, não há mais nenhuma reunião, acabou tudo, e vocês agora limitam-se de ficar à espera de receber a missão da acção militar. A última reunião em que tudo se decidiu foi em 24 de Março de 74, muito perto da minha casa, na Quinta da Figueirinha. Eu expliquei o que tinha sido o 16 de Março, os erros cometidos, fiz o meu «mea culpa», mas também assumi a responsabilidade.  Garanti ao Marques Júnior, que me perguntou quando é que eu previa lançar a acção militar, que na semana de 22 a 29 de Abril a acção seria desencadeada e que eu me encarregaria de gizar um plano de operações, de preparar a acção e comandá-la a partir de um posto de comando que ia instalar num sítio que depois mais tarde se veria.
 Já tínhamos nas mãos as bases programáticas que, no dia 22 de Março à noite, em casa do Vítor Alves, o Melo Antunes nos tinha lido – ele tinha sido encarregado por mim e pelo Vítor Alves de elaborar esse programa político do MFA. – e o Vítor Alves  assumiu a responsabilidade de constituir um grupo político para levar por diante, em discussão com os generais Spínola  e  Costa Gomes, a feitura final de um programa político que sustentasse politicamente a acção militar se ela fosse vitoriosa.
 EXP.- Está de acordo com aquela ideia – que durante muito tempo andou a circular por aí de que o 16 de Março tinha sido uma jogada de antecipação dos spinolistas ?
 O.S.C.- É falso. Não tem nenhuma razão de ser. E eu não tenho dúvida nenhuma porque acompanhei o 16 de Março, estive na génese do 16 de Março, participei nele e acompanhei o que se passou.
 EXP.- Mas é uma reacção precipitada e irreflectida à exoneração de Spínola e  Costa Gomes.
 O.S.C.- Absolutamente.
 EXP.- Numa entrevista recente,  Kaúlza de Arriaga dizia que tinha preparado três ou quatro planos de contra-ataque para derrotar o 25 de Abril.- Que comentário lhe merece isso ?
 O.S.C.- Não tenho qualquer comentário a fazer, porque isso cai absolutamente no ridículo. É uma bravata que não tem consistência nenhuma. Porque nem com os pára-quedistas, por exemplo, ele podia contar. Em 17, 18, 19 e 20 de Abril eu fiz a entrega das missões todas às unidades do MFA. No 25 de Abril entrou o Exército e entraram oficiais da Força Aérea. Não contava com unidades da Marinha nem da Força Aérea, mas interessava-me obter a neutralidade dos fuzileiros e dos pára-quedistas. Nesse sentido, eu tinha promovido, através do Rafael Durão, coronel pára-quedista, um contacto com o comandante dos pára-quedistas, que era o coronel Fausto Marques. Creio que no dia 21, Domingo, encontrei-me com eles e expliquei ao Fausto Marques qual era a minha ideia de manobra e o que iria fazer. Respondeu-me que os pára-quedistas não entrariam nessa acção porque eu não tinha feito uma preparação aprofundada das nossas forças e das forças do inimigo ... e, portanto, era preciso trabalhar mais o plano das operações, de tal forma a coisa resultasse 100 por cento vitoriosa.  E, quando eu tivesse a coisa bem estruturada, que contactasse outra vez com ele. Eu então disse-lhe: «Suponha que havia uma necessidade imperiosa de lançar a operação como aqui está. O que é que o meu coronel acharia: os pára-quedistas actuariam contra o movimento ?»  «Não senhor. Se isso acontecesse, neutralidade total dos pára-quedistas. Eu não vou empregar a minha força contra o MFA». Era isso que me interessava ouvir.  À despedida o Rafael Durão diz-me: «Pronto, Otelo, ouviste o que disse o Fausto Marques, prepara essa coisa melhor e de daqui a um mês contacta-me outra vez». E eu respondo-lhe: «Não vou contactá-lo, porque a acção vai ser desencadeada daqui a três dias. A mim só me interessava  saber uma coisa do Fausto Marques: que os pára-quedistas não irão contra nós». Os pára-quedistas não entraram, de facto, mas na tarde do dia 25 apareceu-me um helicóptero, no posto de comando da Pontinha, com três tenentes-coronéis pára-quedistas extremamente ofendidos porque os pára-quedistas não iam entrar na acção. E eu disse-lhes: «Estive com o vosso comandante há três dias, expliquei-lhe isto tudo e, se ele não vos quis aqui, a culpa foi dele». Dá-se o 25 de Abril, o coronel Fausto Marques foi saneado, mas beneficiará mais tarde da reconstituição de carreiras promovidas pelo bloco central PS-PSD, será reintegrado e chegará a general ...
 EXP.- Voltando ao dia 26 de Abril. Que comentário lhe fez a sua mulher quando chegou a casa ? Ela estava ao corrente de tudo ?
 O.S.C.- Não estava. Bem, eu fiz imensas reuniões na minha casa. A minha mulher sabia que eu estava integrado num movimento de oficiais, clandestino, que já vinha da Guiné, mas não sabia exactamente quais eram as funções que desempenhava no movimento. E só lhe revelei isso quando me despedi dela, no dia 23 à noite. Por razões de segurança, decidi ir dormir à Pontinha logo na noite de 23 e não voltar a casa, porque podia haver uma denúncia e ser apanhado em casa pela PIDE. Só nessa altura é que lhe disse: «Tens acompanhado estas reuniões que temos feito. Vamos fazer uma revolução e eu tenho um papel importante aí a desempenhar. Vou comandar esta coisa. Vou daqui para o comando clandestino e não sei o que é que isto vai dar. Pode dar uma vitória, mas também pode dar para o torto. Se, por acaso, formos derrotados, eu despeço-me de ti, porque nunca mais, de certeza, nos veremos. Tens de te prepara psicologicamente para isso. Cuida dos filhos. Se isto der vitória, depois de amanhã estou em casa e vamos almoçar». Nesse momento é que ela assumiu a dimensão do meu envolvimento. Ficou num estado de tensão muito grande e eu saí. Mas tinha-me esquecido da pistola e só dei por isso quando estava no carro. Voltei a casa para buscar a pistola, ela já não estava à espera que eu entrasse e encontrei-a desabalada em lágrimas, sentada na cama a chorar. Depois, acompanhou o 25 de Abril pela rádio – não tínhamos sequer televisão nem telefone (eu nunca tinha querido telefone porque a certa altura podia haver uma captação ... ia sempre telefonar à mercearia). Mas, pela rádio, ela tinha acompanhado a vitória do Movimento e por isso estava tranquilizada.
 EXP.- E quando chegou a casa ?
 O.S.C.- Quando cheguei a casa, com a barba por fazer, já não dormia há três noites, foi uma alegria bestial, ela agarrou-se a mim e eu disse: «Prometi que estava cá para o almoço do dia 26 e cá estou».
 EXP.- Acha que ela tinha noção da viragem que se tinha dado em Portugal ?
 O.S.C- Não tinha. E eu também não. Hoje considero que o 25 de Abril foi o acontecimento mais notável para o País pelo menos da segunda metade deste século, dada a transformação que permitiu que Portugal sofresse. E digo pelo menos da segunda metade para não ser imodesto e porque em 1910 houve a queda da monarquia, que foi outro ponto de viragem importante.
 EXP.- Nos meses a seguir ao 25 de Abril começa a ter contactos com figuras políticas. Como foram os seus primeiros contacto com Mário Soares ou com Álvaro Cunhal ?
 O.S.C.- Acabei por não ter muitos contactos com líderes políticos, porque estava mais ligado à questão militar.  Quem assumiu de facto essas funções de contacto com as figuras políticas, em representação do MFA, foi mais a Comissão Coordenadora, com o Melo Antunes, regressado dos Açores, o Vítor Alves, o Vasco Lourenço, o Charais, o Vítor Crespo. Mais tarde, durante o PREC, é que venho a ter  contacto  com  essa  gente. Fui solicitado para muitos encontros com figuras políticas ... Curiosamente, o meu afastamento da vida político-partidária da clandestinidade era tão grande que eu nunca tinha ouvido falar no Álvaro Cunhal. Do Mário Soares  tinha ouvido falar até por causa da CEUD em 1969, e o primeiro contacto que tenho com ele é em Junho, princípio de Julho de 74, quando sou chamada a Belém pelo Spínola, já Presidente da República. Pediu-me para acompanhar em delegação Mário Soares, então Ministro dos Negócios Estrangeiros, às conversações preliminares com a Frelimo. Chamou-me a Belém às 9H da noite já da véspera da partida, para me dar especificamente a missão, como representante do MFA, de vigiar Mário Soares, que levava ordens de Spínola para obter a todo o custo o cessar-fogo em Lusaca.
 EXP.- Vigiar como ?
 O.S.C.- Spínola queria que a Frelimo assinasse o cessar-fogo connosco para, a partir daí, estabelecer mecanismos de conversação e ver como seria possível encaminhar o país para uma autodeterminação ou para eleições. Ele tinha ainda a perspectiva de que se deviam criar partidos em Moçambique, Angola, Guiné, etc., tornando possível uma eleição parlamentarista. E eu levei essa missão de vigiar Mário Soares, para saber se ele se batia por trazer o cessar-fogo a todo o custo nas conversações preliminares com a Frelimo.
 EXP.- E o contacto entre ambos dá-se na viagem.
 O.S.C.- Mário Soares não me conhecia, eu também não o conhecia pessoalmente, e ele tinha encarregado o Vítor Cunha Rego de obter informações a meu respeito.  O Cunha Rego comunicou-lhe que eu era um elemento altamente cotado no MFA e que, se calhar tinha sido seleccionado para uma acção de vigilância. O Mário Soares terá ficado um bocado agastado com essa desconfiança manifestada por Spínola. Mas como o MFA fazia parte do poder, ele aceitou perfeitamente. Para ir a Lusaca fizemos o percurso Londres-Nairobi-Lusaca, não havia avião directo. Durante a viagem, fui sentado ao lado de Mário Soares e ele foi fazendo perguntas, foi tirando nabos da púcara. «Então, em que unidade entrou no 25 de Abril ? O que é que fez ? E eu vi-me obrigado a explicar. Disse o que é que tinha feito, e ele ficou banzadíssimo quando percebeu que era o comandante do 25 de Abril que tinha sido enviado nessa missão com ele: «O quê ? Não me diga ! Então foi o senhor que fez isso tudo ?»
 EXP.- Com que impressão ficou de Mário Soares ?
 O.S.C.- Gostei muito dele. Achei-o um homem extremamente bem intencionado e altamente capacitado para o desempenho daquelas funções. E eu, que estava imbuído ainda daquelas perspectivas de uma certa rigidez formalista dos ministros, tive um espanto enorme no aeroporto de Nairobi, quando lá estávamos à espera da mudança de avião para Lusaca. Lembro-me de nos termos cruzado no aeroporto com o Francisco Balsemão e de, às tantas, ter ido dar uma volta, a ver as lojas e tal. Quando regressei ao local onde o tinha deixado, vejo, num banco de pedra sem encosto, sem nada, o Mário Soares, que tinha tirado os sapatos, tinha tirado o casaco, tinha enrolado o casaco em almofada e estava a bater uma soneca valente. E eu pensei: «Então, mas isto é que é um ministro dos Negócios Estrangeiros ?» Fiquei, a partir daí, com a noção de que Mário Soares é um homem que se sente perfeitamente à vontade em qualquer situação. Até hoje, tenho uma relação cordial e muito afectiva com ele, apesar de poder reprovar muita das coisas que ele fez.
 EXP. - Como decorreram as negociações em Lusaca?
 0.S.C. - Eu cumpri rigorosamente a missão de vigilância a Mário Soares. E o Mário Soares cumpriu exactamente a missão de que tinha sido incumbido pelo general Spínola. Nessas conversações, a nossa delegação era rnixuruca - 0 ministro dos Negócios Estrangeiros, eu, como elemento do MFA, e um elemento do gabinete do Mário Soares, que era o Manuel Sá Machado, primo direito do Vítor Sá Machado, enquanto a delegação da Frelimo tinha nove elementos, todos eles futuros ministros, e era chefiada pelo próprio Samora Machel. Era uma delegação muito forte e ia ali preparada para conversações sérias. Mário Soares bateu-se demoradamente pela obtenção do cessar-fogo. 0 problema é que os argumentos da Frelimo eram extremamente sólidos, queriam a transferência do poder, e Samora Machel apontou claramente a fragilidade enorme das Forças Armadas portuguesas no terreno: <Vocês sabem que, neste momento, estamos a ocupar os vossos quartéis e que o vosso Exército já não está disposto a continuar o combate.» Eu, logo à partida. coloquei-me deliberadamente ao lado da Frelimo, porque aquela perspectiva era exactamente a do MFA.
 EXP. - Afinal, Mário Soares é que tinha de o vigiar a si ...
 0.S.C. - Eu não levava missão nenhuma do Presidente, a não ser vigiar o Mário Soares. E tive oportunidade de dizer: «Aquilo que eu aqui vou dizer é em representação do MFA e, para mim, o representante do povo moçambicano em luta pela libertação e pela independência é a FreIimo.» 0 Mário Soares ficou extremamente incomodado com esta minha posição. Pediu uma interrupção das conversações, para eu me deslocar com ele a outra sala, e disse-me: «Estou aqui numa posição extremamente difícil. Concordo consigo e com a Frelimo mas, como ministro dos Negócios Estrangeiros, trago como missão do Presidente da República: lutar aqui para levar para Lisboa a garantia do cessar-fogo antes de qualquer outra coisa. Foi isso que o senhor Presidente me disse para fazer.» Respondi-lhe: «Eu sei isso perfeitamente. E garanto que está a cumprir a sua missão. Agora, eu é que não tenho obrigação nenhuma de o fazer. Estou aqui a representar o MFA, quem está a representar o Presidente é o senhor.» Então o Mário Soares avisou-me: «0 senhor major tenha paciência, mas quando chegarmos a Lisboa vai assumir essa posição perante o Presidente.» Tranquilizei-o: «É evidente que vou. Fique descansadíssimo que eu vou.» E pronto, a coisa decorreu assim, está claro que não foi obtido o cessar-fogo. Entretanto, o MPLA sabia que um elemento do MFA se encontrava na delegação portuguesa e foi encontrar-se comigo no hotel de Lusaca. Essa delegação do MPLA era chefiada pelo 
Iko Carreira, e eu garanti-Ihes que o MFA estava, de facto, com 0 MPLA, que era, para nós, o movimento de libertação fundamental em Angola.
 EXP. - Preferiam falar consigo do que com Soares?
 0.S.C. - Sim, sim. E de tal forma que, quando vim, o Melo Antunes pediu para falar comigo e perguntou-me: «Então, como é que foi aquilo? Como é que correu Iá a confusão?». Eu estive a dizer-Ihe corno é que tinha corrido, o Mário Soares e tal, o que eu tinha dito...
 
 EXP. - E eles concordaram?
 0.S.C. - 0 Melo Antunes disse-me: «Fizeste muito bem. OK. Foi óptimo dizeres-me isso, porque agora vai ser a nossa base de tratamento quando formos para as conversações, com vista, já, a definir a data da independência.»
 EXP. - Também lhe disse que se tinha antecipado aos acordos do Alvor e que já tinha dado ao MPLA toda a legitimidade revolucionária?
 0.S.C. – também lhe falei nisso, sim. E ele concordou perfeitamente. Era a nossa filosofia, do MFA. Sem dúvida nenhuma.
 EXP. - Como é que o Spínola recebeu o relato dessa missão?
 0.S.C. – Quando chegámos, fomos do aeroporto directamente para Belém e o Mário Soares, quando chegámos a Belém, disse: «Pronto senhor general, cá estamos e aqui o senhor major vai-lhe explicar o, que se passou». E eu disse: «Ó meu general devo dizer-Ihe que, de facto, o senhor ministro dos Negócios Estrangeiros cumpriu rigorosamente as suas determinações. Ele lutou denodadamente pelo cessar-fogo. Não trazemos para já o cessar-fogo, mas as conversações foram boas.» E depois contei-lhe a minha intervenção. O Spínola nem queria acreditar.«0 que"?!» E eu disse: Ó meu general, tomei esta posição porque esta é a posição não só minha, nas do MFA.»
 EXP. - Mas o MFA tinha discutido e decidido isso?
 0.S.C. - Não tinha discutido.  Mas, a partir do plenário de Cascais, em 5 de Março de 74 - uns meses antes - através do documento elaborado pelo grupo de Melo Antunes, o tal documento «0 Movimento das Forças Armadas e a Nação» assinada por 111 dos 197 presentes no plenário, não tínhamos dúvidas nenhumas de que a filosofia do movimento era essa. A do reconhecimento total do direito à autodeterminação, dos povos das colónias, com todas as consequências da independência.
 EXP. - Mas não estava estipulado que a entrega do poder seria feita a um só movimento...
 0.S.C. - Não, não. Estava definido já embora não estivesse explícito no documento - que os movimentos representativos nas colónias eram a Frelimo em Moçambique, o PAIGC na Guiné e o MPLA em Angola. O Spínola, de facto, ficou muito mal disposto. E foi nessa altura que ele ameaçou logo que isto não ia ficar assim e que ele iria solicitar ao Nixon o envio de forças norte-americanas, dada a impossibilidade de manter as nossas forças em continuidade de acção. Era urna utopia de desespero! Enviar forças americanas, de repente, para Moçambique! Onde é que o Nixon ia participar numa coisa dessas? Era impossível!
 EXP. - É por essa altura que se dá a crise do Governo Palma Carlos, que tem na génese o facto de Spínola se sentir  ultrapassado  pelo MFA e querer alargar os seus poderes?
0.S.C. - Exactamente.
 EXP. - Spínola chegou a apresentar alguma vez a demissão durante essa crise?
 0.S.C.- Não, o Spínola não aparece, mas o próprio Sá Carneiro vai defender o reforço dos poderes presidenciais pelo Spínola, numa reunião na Manutenção Militar. 0 Spínola está lá pouco tempo e, depois, abandona a reunião. Mas fica o Sá Carneiro a tentar levar por diante essa ideia. Julgo que o Spínola já não está presente quando há urna intervenção muito dura do Vasco Gonçalves e, depois, outra do Vasco Lourenço a oporem-se a essa ideia. Com a demissão de Palma  Carlos,  processa-se uma crise em que há necessidade de escolha de um novo primeiro-ministro. E passa-se um episódio engraçado. Nós, na Cova da Moura, estamos em reunião. 0 Almeida Bruno, o Hugo dos Santos, o Melo Antunes, o Vítor Alves, eu, o Vasco Lourenço: «Temos que propor nós um nome para primeiro-ministro.» Fala-se em vários e a nossa falta de habilidade para a escolha do primeiro-ministro tinha sido notável, porque, mesmo antes do 25 de Abril, os quatro nomes que propusemos à Junta de Salvação Nacional para primeiro-ministro eram todos nomes que, hoje, nos colocam num certo ridículo. Tínhamos um desconhecimento total da vida política do País, das suas figuras....
 EXP. - Quais foram esses quatro nomes?
 O.S.C. - Tínhamos proposto o Raul Rego, que era militante do PS, portanto era uma estupidez estar a propor o Raul Rego quando não propúnhamos o secretário-geral do partido. 0 Mário Soares diz que se riu a bandeiras despregadas quando soube disso. 0 Raul Rego! Tínhamos proposto o Miller Guerra, que era da ala liberal e uma figura prestigiada, era médico. Tínhamos proposto o Francisco Pereira de Moura, que tinha tudo menos perfil de primeiro ministro, e havia uma quarta proposta que já não me lembro bem qual era. Bom, nessa altura estamos a discutir e são avançadas várias propostas, entre as quais a Dra. Isabel Magalhães Colaço. Até que eu disse: «Porque é que estamos à procura de elementos civis, quando temos elementos militares talvez capazes poder desempenhar a missão?» E sou eu que proponho o nome do Vasco Gonçalves. Portanto, sou responsável por Vasco Gonçalves e, mais tarde, o Pinheiro de Azevedo serem primeiros-ministros. 0 Vasco Gonçalves também estava presente e perguntamos--lhe: «0 que é que você acha de ser primeiro-ministro?» E ele: «Eu posso ser, não tenho grande dificuldade em poder exercer o cargo. Com a vossa ajuda, com a vossa colaboração...» E a malta: «Sim, senhor. É boa hipótese. Então, Otelo, encarregas-te de ir com o nosso coronel a Belém e dizes ao general Spínola que o nosso candidato a primeiro-ministro é o Vasco Gonçalves.» Saímos os dois dali, eu agarrei no meu carro, fomos até Belém, e, enquanto o Spínola estava em reunião, pedimos para falar com o general Costa Gomes. 0 general veio ter connosco, fomos para uma salinha pequena e eu disse-lhe: «Ó meu general, venho aqui em representação da Comissão Coordenadora do MFA para lhe dizer que a nossa escolha para primeiro-ministro é o nosso coronel Vasco Gonçalves.» Responde o general Costa Gomes: «Ah, está bem, sim senhor. Mas não há problema nenhum, escusam de se preocupar com isso porque o primeiro-ministro já está escolhido, o nosso general Spínola está neste momento a falar com ele, tenente-coronel Firmino Miguel, é ele que vai ser primeiro-ministro.» Eu digo-«Bem, nós aceitamos o Firmino Miguel, com certeza. Mas se, por acaso, falhar o Firmino Miguel, o nosso coronel Vasco Gonçalves avança. «Sim, senhor. Mas não é preciso, já está feito», diz o Costa Gomes.
 Ficámos ali a falar encostados a uma janela quando vimos sair o Firmino Miguel do gabinete do Spínola e vem alguém ter connosco: «O Firmino Miguel não aceitou ser primeiro-ministro sem ter o apoio do MFA.» Pouco depois, o António Ramos, vem ter com o Vasco Gonçalves e diz-Ihe: «Meu coronel, o nosso general chama-o.» Ele vai lá dentro, fica uns minutos, sai, vem ter comigo e diz-me: «Pronto, o nosso general nomeou-me  primeiro-ministro.» O que se passou é que, depois  do 
falhanço do Firmino Miguel, o Costa Gomes tinha ido dizer ao Spínola qual era a escolha da Comissão Coordenadora. E o Spínola, em desespero, precisava de ter um primeiro-ministro e nomeou o Vasco Gonçalves
 EXP. - Nunca lhe pareceu que Vasco Gonçalves era um elemento do MFA extremamente ligado à estratégia do PCP?
 O.S.C. - Sabia isso e fui-o verificando ao longo de todo processo, uma ligação estreita, de facto, entre o Vasco Gonçalves e o PCP. E daí o meu confronto permanente com o Vasco Gonçalves.
Ele deu sempre razão aos sindicatos e à CGTP e pretendia até a eliminação das organizações populares de base. Há uma manifestação qualquer que se realiza à revelia dos sindicatos e basta a CGTP considerar que aquela é uma manifestação selvagem para que o Vasco Gonçalves me telefone a pedir para eu impedir que a manifestação se realize. Discuto com ele «Mas porquê? Então isto é uma manifestação de trabalhadores, está pedida, está autorizada...» Mas é uma manifestação  selvagem... Há grandes conflitos, sobretudo no campo laboral e no campo das manifestações de rua, entre mim e o Vasco Gonçalves. E não tenho dúvida nenhuma de que ele era, de facto, um elemento do PCP.
 EXP. - A nomeação daquele como primeiro-ministro veio, também, agudizar a crise que já existia entre o Presidente e o MFA, pois Spínola nunca se deu bem com Vasco Gonçalves...
 O.S.C. - Primeiro, o Spínola ficou com um certo alívio, porque a responsabilidade era repartida. Mas a curto prazo, tudo se agudizou ainda mais. Isto passa-se em meado de Julho e, na mesma altura os oficiais do MFA espalhados por todo o país impõem a minha presença para comandar o Copcon, o Comando Operacional do Continente que é um órgão criado para defesa da revolução. Então, Spínola vem ao meu gabinete e, apenas com a presença do major Monge, começa por me dizer que vai promover-me general de quatro estrelas para eu assumir a chefia do Estado-Maior General das Forças Armadas. Havia aqui uma jogada notória do Spínola. Ele vê que cometeu um erro grave ao querer para ele a Presidência, ficando as Forças Armadas sob o comando do Costa Gomes. E pretende afastar o Costa Gomes com o argumento de que os militares do MFA só me aceitam a mim corno comandante. Eu sou um jovem que ele conheceu na Guiné, que está convencido de poder dominar, um jovem de trinta e sete anos que fica ali debaixo da mão dele. E eu digo-lhe: «Ó meu general, é evidente que não posso aceitar isso. Por várias razões: primeiro, porque não tenho a perspectiva global do que são as Forças Armadas, em termos técnicos, para poder comandá-las. Em segundo, e mais importante, é que há um compromisso entre nós, MFA, ao sairmos vitoriosos desta contenda, de não aceitarmos quaisquer privilégios, honrarias, distinções, que venham de cima para baixo. Portanto, não posso aceitar a promoção que o senhor me quer dar.» Mas ele insiste com uma data de argumentos: a hierarquia estava toda de pernas para o ar, tinha que se tentar repor a hierarquia nas Forças Armadas, e tal. Ao fim de muita discussão, o Monge propõe que eu fique sob o comando do general Costa Gomes, como comandante-adjunto do Copcon, assumindo o general Costa Gomes o comando do Copcon, que é mais uma divisão do EMGFA. E que eu seja graduado em brigadeiro para comandar o Copcon e a Região Militar de Lisboa. 0 Spínola aceita esta proposta e eu também concordo com ela.
 EXP. - Que ideia é que tinha do que devia ser o Copcon?
 O.S.C. - 0 Copcon é criado com urna perspectiva de ser um órgão militar executivo, de decisão rápida, que permite actuar com as unidades todas do Exército espalhadas pelo País e com o reforço de unidades de torças especiais da Marinha - fuzileiros - e da Força Aérea - pára-quedistas - no sentido de impedir as actividades contra-revolucionárias.
 EXP. - Mas pôs o Copcon a fazer ocupações de casas, de terras...
 O.S.C. - Sim, isso aí é da minha responsabilidade. Mas assumi essa actuação devido a uma total demissão de responsabilidades ao longo do PREC.
Começo a receber, no Copcon, delegações de trabalhadores que tem um problema laboral qualquer: o administrador, o dono, abandonou a fábrica, levou tudo o que podia para o Brasil e, agora, o que é que vai ser da fabrica?. Os trabalhadores tornam conta da fábrica, não tomam?. Os trabalhadores dirigiram-se ao Ministério do Trabalho e lá' disseram-lhes que não sabiam como é que se havia de resolver aquilo. Eles, então, aparecem no Copcon e começam a ser canalizados para o Copcon todos os problemas existentes no País. Recebo de1egações de trabalhadores, de camponeses do Alentejo, etc. E penso: «Bem, se aqueles que estão responsabilizados por estes problemas tem receio de tornar uma posição e remetem para mim, então tenho eu que tomar uma resolução qualquer, mesmo que seja má.» E começo a nomear oficiais meus para resolver problemas laborais, de ocupações de casas, de terras... E aquilo começa a ultrapassar, de facto, a sua missão.
 EXP. - As ocupações de terras também resultaram desse seu impulso natural?
 O.S.C. - 0 meu impulso! Por considerar que assim é que estaria bem. Começou a falar--se, em determinada altura, que seria importante fazer-se uma reforma agrária, que daria a posse da terra aos trabalhadores. Perante este anúncio, os grandes agrários resolveram tomar precauções. E, em princípios de 75, comecei a receber  delegações de camponeses, trabalhadores rurais alentejanos que vinham queixar-se ao Copcon: «Os agrários estão a levar o gado, as máquinas agrícolas, tudo para Espanha e a vender, estão a abandonar as terras e aquilo está a tornar-se mato e, depois, nós não temos possibilidade de as trabalhar.» Num dos meus impulsos, disse: «Então, porque é que vocês não ocupam as terras ?» «Mas ocupar como? Depois vem a GNR, com as G3, começa a dar uns tiros e nós temos de fugir e abandonar aquilo.» Eu disse: Vocês não têm caçadeiras ? «Mas os gajos têm as G3, têm as automáticas... e nós com caçadeiras...» «Então, se o problema é a GNR, vamos combinar o seguinte: todas a manhãs eu tenho aqui um reunião com um representante da GNR, um representante da Guarda Fiscal e outro da Polícia. E vou dizer ao capitão da GNR que aqui aparecer amanhã que, a partir deste momento, a GNR não intervém mais no Alentejo a desocupar as terras que vocês vão ocupar. Vocês, a partir de hoje, agarram nas vossas caçadeiras, vão para a terras e ocupam-nas. Se os agrários aparecerem, vocês têm as caçadeiras na mão e correm com o agrário. Pronto, acabou.»
Continua


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