quarta-feira, 17 de maio de 2017

Quem está louco – Erdogan ou os europeus?




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Brandão Ferreira
“Muito honrado Capitão Paxá, bem vi as palavras da tua carta. Se em Rhodes tivessem estado os cavaleiros que estão aqui neste curral podes crer que não a terias tomado. Fica a saber que aqui estão portugueses acostumados a matar muitos mouros e têm por Capitão António da Silveira, que tem um par de tomates mais fortes que as balas dos teus canhões e que todos os portugueses aqui têm tomates e não temem quem não os tenha!” (Gaspar Correia, “Crónica dos Feitos da Índia”, Vol. IV, pág. 34-36).
Esta foi a resposta que deu António da Silveira, Capitão de Diu, à carta que Suleimão Paxá, Comandante turco (que era eunuco), que com 70 galés e 23.000 homens cercava a cidade, defendida por 600 portugueses.
Nessa carta, Suleimão prometia livre saída de pessoas e bens, desde que entregassem a fortaleza e as armas. E prometia esfolar vivos todos os que não o fizessem, gabando-se de ter com ele muitos guerreiros que ajudaram na conquista de Belgrado, a Hungria e a Ilha de Rhodes. Perguntava no fim a Silveira, como se iria defender num “curral com tão pouco gado!”
Recep Tayyip Erdogan, 63 anos, é o Chefe de Estado de um país chamado Turquia, membro da NATO, aspirante frustrado a membro da UE e herdeiro de um dos mais temíveis impérios existentes à face da terra, no segundo milénio da era de Nosso Senhor Jesus Cristo. Império que ganhou projecção mundial após conquistar Constantinopla em 1453, data que marca o fim do Império Romano do Oriente e tida como marco inicial para o que se convencionou chamar “Idade Moderna”.
O Império Otomano (1299-1923), que tinha o seu núcleo original no Planalto da Anatólia, quis expandir-se em todas as direcções, nomeadamente para Oeste, tendo progredido perigosamente no Norte de África, nos Balcãs e no Mediterrâneo Oriental. Este império foi finalmente sustido no Norte de África, quando já estava em Argel (porventura a maior motivação para D. Sebastião ter querido ir a Larache, principal objectivo a preservar e que não incluía a surtida que acabou tragicamente em Alcácer Quibir); no Mediterrâneo Oriental foram derrotados na batalha naval de Lepanto, em 1571, mas nunca se conformaram. Note-se que foi graças à esquadra portuguesa que foram batidos novamente em Matapão, em 19 de Julho de 1717, faz este ano 300 anos.
Finalmente progrediram nos Balcãs, em direcção à Europa Central, até efectuarem dois terríveis cercos a Viena, coração do Império Austro-Húngaro, dos Habsburgo, em 1529 e 1683, data em que foram inexoravelmente derrotados.
O “croissant”, massa folhada em forma de “crescente vermelho”, que se passou a comer ao pequeno-almoço e ao lanche, aí está a ilustrar a vitória. Ou seja, cada vez que se come um “croissant”, quer dizer que se “come” um turco ao pequeno-almoço… É possível que os turcos, desde então, não achem graça à coisa.
No fim da I Guerra Mundial, a Dinastia Otomana desapareceu e o seu império desagregou-se, tendo grande parte dos seus territórios ficado debaixo do controlo de potências ocidentais vencedoras da guerra, sob mandato da então Sociedade das Nações, nomeadamente a França e a Inglaterra. Mais tarde, a maioria destes territórios veio a adquirir, sucessivamente, a independência. A criação do Estado de Israel, em 1948, veio baralhar e complicar ainda mais a complexa geopolítica da região.
Em 1923, o General Mustafá Kemal Atatürk assumiu o cargo de primeiro Presidente da República da Turquia, até à sua morte em 10/11/1938, e transformou o país num estado laico, onde os militares tinham um peso desproporcionado. A necessidade de conter a URSS no início da Guerra-Fria, no fim da Segunda Guerra Mundial, e arranjar um Estado-tampão no Cáucaso e Oriente Médio, fez com que a Turquia fosse convidada a aderir à NATO, o que aconteceu em 1952.
A Turquia, apesar de tudo, dos problemas internos – onde se destaca a questão curda – e dos ódios figadais e seculares (por vezes milenares) entre todos os povos daquela região, teve um papel mais estabilizador do que o contrário. Seria ocioso explicitar tudo o que se passou. A Turquia tirou partido da sua participação na NATO (onde a quezília secular com a Grécia, agravada pelo conflito cipriota, constituiu sempre uma dor de cabeça para a Aliança – e agora é também para a UE), recebeu armamento moderno, acesso a tácticas, doutrinas e logística, e permitiu trocas comerciais com os países do Ocidente, facilitando a emigração de largas massas de turcos e curdos para a Europa. O ovo da serpente começou a crescer desmesuradamente… E pertencer à NATO ajudava a conter um dos seus ancestrais inimigos, o Império Russo!
Quando Erdogan chega a Chefe do Governo (2003-2014) e a Presidente, logo de seguida, tudo muda: cada vez há maior oposição na UE, nomeadamente em França (melhor dizendo, no Grande Oriente Francês…) relativamente à entrada da Turquia na UE. Chegaram, inclusive, ao ponto de assumir como “dogma de fé” que na Arménia tinha havido um genocídio de cristãos, feito pelos otomanos, entre 1915 e 1923, onde se estimam tenham perecido entre 800.000 e 1.800.000 pessoas (o que por acaso até é verdade). Ankara, obviamente estrebuchou.
Erdogan – que em 1994 proferiu uma frase algo premonitória, “a Democracia é um comboio: quando se chega ao nosso destino, saímos” – começou paulatinamente a por de lado a herança de Atatürk e a retirar poderes aos militares. A seguir entrou numa deriva islamita, torpedeando o laicismo e aproximando-se de tudo o que preconiza o Corão. Finalmente envolveu-se no conflito sírio e ficou submerso de refugiados.
Em 15/7/2016 deu-se um estranhíssimo caso de tentativa de golpe de Estado. O que se passou parece um decalque do “11 de Março de 75” português. Erdogan não perde tempo e parte à perseguição dos seus opositores. Prendeu-os e “saneou-os”, às dezenas de milhar, e insiste para que os EUA extraditem um conterrâneo seu (de que ninguém ouvira falar até então) como suposto cabecilha do frustrado golpe de estado. O homem – Fethullah Gülen – ainda vive nos EUA, mas as principais potências ficaram quedas e mudas, a olharem para ontem, sem saberem o que fazer ou dizer.
Erdogan tarda, mas arrecada. Com estes trunfos na mão, embala para mudar a Constituição, a fim de reforçar o seu poder. Pelos vistos, a eternizar-se nele. Estamos pois em vista de um potencial “Califa”, que a seu tempo ocupará o palácio de Topkapi. Só falta organizar o Serralho e o Regimento de Janízaros.
Porém, para obter estes poderes, necessita de votos para um referendo que quer fazer, prestes. Os turcos existentes nos seus domínios não lhe chegam e pretende catequizar a diáspora. E não se fez rogado: país onde houvesse comunidade que valesse a pena influenciar, seria “invadido” por comparsas seus, a começar por membros do seu próprio Governo! Não sabemos exactamente o modo como informou os Governos dos países visados ou sequer se se deu ao trabalho de o fazer; queria ir e pronto!
Quando os Governos e as opiniões públicas de alguns dos países europeus visados souberam da trama, dispuseram-se a contestar tais desejos/ordens. O que espoletou a ira do putativo otomano e foi um ver se te avias de guerra de palavras, ameaças e despautérios. O que encontra amplos antecedentes nos devaneios democráticos e cobardia dos países europeus e da UE, a que têm o despautério de apelidar de “superioridade moral da democracia”! Chamam-lhe um figo…
Os países europeus reagiram individualmente, de um modo frouxo, cobardolas e apaziguador, o que denota o estado de degenerescência política, social e anímica em que a Europa se encontra (para já não falar na incapacidade militar, que é consequência daquelas…). A UE como tal, não reagiu e por cá ouviram-se umas frases de circunstância circunspecta. Ou seja, os europeus viraram uns verdadeiros eunucos…
Entretanto, o grão-turco profere ameaças e manda, filantropicamente – só pode – as famílias turcas emigradas terem cinco filhos. Compreende-se: enquanto não têm balas, disparam rebentos.
Como fazem cá falta os tomates do Capitão António da Silveira e dos cavaleiros que estavam com ele em Diu!

Soares Martínez: O caso da Turquia


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SOARES MARTÍNEZ
Há ainda quem se mantenha fiel à ideia, ou à afirmação, de que o amor da liberdade, ou o seu triunfo, provém da Revolução Francesa, que, afinal, naquilo que teve de bom, apenas traduziu os Evangelhos, por vezes em calão de baixo coturno. Outros transferem tal origem para a Revolução Russa, para o “5 de Outubro”, ou para o “25 de Abril”.
Outros mais, actualmente quase todos, na ignorância plenária característica dos tempos que correm, a qual, por desgraça, nem poupou muitos constelados de mercês, até universitárias, já não cuidam das origens, ou da razão, seja do que for; salvo do que possa proporcionar-lhes vantagens materiais fartas e imediatas. No meio dessa ignorância plenária, aparecem escrevinhadores, blasonando de eruditos, que, na sua busca de antecedentes remotos e ilustres para instituições recentes, vão repetindo que os regimes democráticos já foram adoptados nas antigas cidades gregas, sábias e prósperas.
Esquecem-se esses mesmos escrevinhadores que, naquelas cidades, as votações e outras participações nos governos e na administração respeitavam exclusivamente aos membros das comunidades políticas activas, cujo ingresso era concedido aos supostos descendentes dos fundadores das próprias cidades. Em consequência, essas democracias acabavam por incluir apenas núcleos aristocráticos, pelo modo de viver e pelo dever de servir, ligado à participação nos corpos armados e nas magistraturas.
Mesmo assim, segundo os escritos da época, esses regimes, limitadamente democráticos, costumavam perder-se em discussões estéreis, sendo substituídos por ditaduras. E os celebrados sábios da Grécia, reduzidos à escravidão, foram distribuídos pelas famílias romanas, como secretários dos seus chefes ou como preceptores dos seus meninos.
Felizmente, o amor da liberdade, ou das liberdades possíveis, conservou-se, através de inúmeras adversidades, e com algum sucesso, sempre que a autoridade e a ordem souberam servir esse ideal constante dos povos, em conformidade com as imposições da natureza. Sob rótulos democráticos ou sem eles, no escrupuloso respeito da legitimidade do poder político e das suas justas limitações.
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