terça-feira, 23 de maio de 2017

Mbuzini – Outras Leituras Diplomáticas


João Cabrita, no SAVANA
Documentação oficial britânica sobre o despenhamento da aeronave do Presidente Machel, explica, em pormenor, as razões que levaram o Reino Unido a não participar na investigação técnica do desastre aéreo, como pretendia a África do Sul. Obtida ao abrigo da Lei da Liberdade de Informação, a documentação, constituída fundamentalmente por correspondência diplomática trocada entre o Foreign and Commonwealth Office (o Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico) e diversas chancelarias, cobre o período que vai de Outubro a Dezembro de 1986. Tal como a documentação do Departamento de Estado norte-americano que trata do mesmo assunto e divulgada nos termos de lei semelhante em vigor nos Estados Unidos, a do Foreign Office demonstra cabalmente não ter existido qualquer “cumplicidade ocidental” na morte do chefe de Estado moçambicano, ou que o desastre tenha sido consequência de acto criminoso, como tem vindo a alegar um antigo ministro da segurança de Moçambique, Sérgio Vieira, que integrou a Comissão Nacional de Inquérito. As posições assumidas no âmbito do desastre, não apenas pelos dois países, mas também pelas demais partes, incluindo as Nações Unidas, foram eminentemente políticas, visando servir interesses próprios.
De acordo com Sérgio Vieira, os embaixadores britânico e americano em Maputo contactaram-no poucos dias após o acidente, a informar que, “em nenhuma circunstância”, os respectivos países “queriam participar no inquérito” às causas da tragédia de Mbuzini. Para o então ministro moçambicano “só havia uma leitura diplomática possível: que ambos conheciam as causas reais do acidente e porque os seus interesses os impediam de condenar um acto terrorista do Estado sul-africano (...), que não desejavam aparecer como cúmplices activos do crime, pelos equipamentos fornecidos que haviam facilitado o crime”, (1) nem tão pouco “podiam admitir que peritos seus viessem a fundamentar o envolvimento de Pretória num crime de Terrorismo de Estado, no assassinato dum Chefe de Estado”. (2)
Logo a seguir ao desastre, a África do Sul veio a público declarar que pretendia, enquanto Estado de Ocorrência do acidente, uma investigação imparcial, com o envolvimento de países estrangeiros e ainda da Organização de Aviação Civil Internacional (ICAO). Houve, inicialmente, uma reacção favorável, se bem que cautelosa, por parte do Reino Unido e dos Estados Unidos, ao apelo sul-africano. Ambos, porém, impunham condições a uma eventual participação nas investigações.
Da leitura da profusa documentação diplomática de britânicos e americanos, um ponto em comum torna-se evidente: ambos governos preocupavam-se sobremaneira, de forma obsessiva até, com a percepção que os países africanos e do Terceiro Mundo no geral, pudessem ter de um envolvimento do Reino Unido e dos Estados Unidos nas investigações. Na óptica do Reino Unido, esses países acabariam por tomar partido da União Soviética, a qual poderia ser “tentada a adulterar as provas do gravador de voo”, por “não ter qualquer interesse em que a responsabilidade pela morte do Presidente Machel fosse atribuída aos tripulantes e/ou ao avião soviéticos”. (3)
Se, por um lado, a África do Sul desejava o envolvimento estrangeiro como forma de conferir imparcialidade às investigações, tornando credíveis as conclusões, por outro lado, os americanos e britânicos pretendiam o mesmo, mas por razões diferentes: queriam estar “em boa companhia”, de preferência com países “neutros”, designadamente a Suíça, a Áustria e nórdicos, e assim não serem vistos como os únicos a ajudar a África do Sul.
Em telegrama (4) enviado ao embaixador britânico em Pretória, na sequência do pedido da África do Sul, o ministro britânico dos negócios estrangeiros, Geoffrey Howe, referiu que o seu país “nunca havia rejeita(do) um pedido de ajuda dessa natureza”, mas que o governo de Londres “tinha em conta as suspeitas, por mais infundadas que sejam, de envolvimento sul-africano no desastre”. Acrescentou Howe: “As observações dos americanos de que seriam poucos os países africanos a estabelecer uma grande distinção entre Governo da África do Sul e participação americana nas investigações, aplicam-se também a nós, mutatis mutandis.” Howe adiantou que o Reino Unido “não está em posição de ajudar na leitura do gravador do voo soviético. Não dispomos de capacidade técnica para fazê-lo e de qualquer forma esta é uma prerrogativa soviética”. Na opinião de Howe, “não ajudaria nem a sul-africanos, nem a nós próprios, se houvesse desacordo quanto às conclusões da investigação, com os russos a declararem sabotagem e uma investigação do Reino Unido a culpar a tripulação ou o avião”.
Em face de tudo isso, Howe deu instruções ao embaixador em Pretória para informar o presidente da comissão de inquérito sul-africana, Cecil Margo, ou o chefe da equipa investigadora, Rennie van Zyl, de que “estaríamos prontos a ajudar na investigação, mas apenas sob condição de que seríamos parte de uma equipa que inclua outros países ocidentais de responsabilidade”, designadamente 12 dos 36 membros do Conselho da ICAO e “neutros como a Suécia, a Suíça ou a Áustria”. No mesmo telegrama, Howe fez notar ao embaixador britânico em Maputo, James Allan, que, caso “os moçambicanos estejam preparados para solicitar a nossa ajuda na investigação, ou a aprová-la publicamente, tal ajudaria na forma como a posição britânica seria apresentada”.
Howe foi específico nas instruções transmitidas a James Allan a 23 de Outubro, no sentido deste abordar Sérgio Vieira “quanto à possibilidade da participação do Reino Unido na investigação”, mas que o embaixador devia ter em mente que “é ainda nosso desejo estarmos envolvidos apenas com gente responsável do Ocidente, pelas razões já apontadas”, que “uma participação dependeria sempre de um convite de Moçambique, mas que para ser eficaz e convincente, ela devia ser levada a cabo por peritos de um conjunto de países com experiência comprovada nessa área”, rematando que “uma decisão final britânica seria tomada à luz de um conhecimento claro de quais seriam as outras partes envolvidas”. (5)
De acordo com um telegrama do embaixador Allan, este falou com Sérgio Vieira na manhã do dia 24 de Outubro, tendo o ministro moçambicano respondido que iria informar o governo da diligência, manifestando ainda “apreço pelo nosso desejo em sermos prestáveis”. (6) Reacção idêntica teve Sérgio Vieira depois de ter sido contactado pelo embaixador dos EUA, John De Vos. Num telegrama expedido pelo diplomata americano a 24 de Outubro, lê-se que Sérgio Vieira havia dado “uma reacção preliminar positiva” à ideia de um envolvimento dos Estados Unidos nas investigações e que “subsequentemente apresentou o caso à direcção máxima, tendo esta dado aprovação formal”. (7)
Em livro publicado anos mais tarde, (8) Sérgio Vieira fornece pormenores sobre a forma como pôs a direcção do Partido Frelimo e do governo moçambicano ao corrente das diligências que acabavam de ser feitas pelos dois embaixadores: “Reflecti, antes de me deslocar à sede do Partido, onde se encontrava a Comissão Política (sic) e membros do Governo. Relatei os contactos e as minhas interrogações, que se resumiram aos seguintes pontos: ambos os governos agiam de forma coordenada; ambos os governos fizeram questão de nos virem dar conhecimento, indirectamente, da iniciativa sul-africana; ambos recusavam participar – e porquê?” Sérgio Vieira responde às interrogações com mais perguntas:
“a. Porque conheciam no detalhe os instrumentos que haviam fornecido à África do Sul ou a Israel e que, só esses instrumentos poderiam provocar a falsificação dos dados transmitidos pelos instrumentos de bordo?
b. Porque sabiam o que, efectivamente, ocorrera?
c. Porque no caso de participarem, tratando-se da morte de um Chefe de Estado, deveriam nomear peritos de primeiro plano, que jamais se comprometeriam assinando conclusões menos verdadeiras, mesmo se politicamente correctas e requeridas para ilibar os seus Estados?
d. A conclusão poderia forçar ambos os Governos a retirarem as conclusões político-diplomáticas necessárias, neste caso, aceitar que se tratava de um Acto de Terrorismo de Estado?
e. Estariam os dois Governos prontos a darem esse passo?”
Como se depreende, a exposição de Sérgio Vieira não coincide, no essencial, com as diligências efectuadas pelos dois diplomatas, em particular o facto de o Reino Unido e os Estados Unidos se terem manifestado dispostos a participar na investigação do desastre, mediante o acerto de posições que claramente enunciaram. E a insistência de ingleses e americanos para que outros países se envolvessem na investigação não era típica de quem pretendesse ser ilibado de uma suposta cumplicidade num alegado crime de terrorismo de Estado, ilibação essa que teria necessariamente de contar com a anuência das nações neutras.
Refira-se que o informe de Sérgio Vieira foi apresentado quando a equipa tripartida de investigadores do acidente reunia-se pela primeira vez em Komatipoort, precisamente a 24 de Outubro de 1986. Tratou-se de uma reunião marcada pelo impasse por não se ter chegado a acordo quanto à forma como seriam extraídos os dados das caixas negras da aeronave, impasse esse que só viria a ser sanado em meados do mês seguinte. Não deixa, pois, de ser extraordinário que, mesmo antes do minucioso processo de leitura e análise dos dados contidos nas caixas negras ter tido início na última semana de Novembro, já o ministro da segurança moçambicano podia ir ao pormenor de que houvera “falsificação dos dados transmitidos pelos instrumentos de bordo” por aparelhos “fornecidos à África do Sul ou a Israel” pelos governos britânico e americano. Posteriormente, o Relatório Factual do Acidente, unanimemente assinado pelas delegações da África do Sul, Moçambique e União Soviética em 16 de Janeiro de 1987, não revelou qualquer falsificação de dados, tendo especificado que todos os instrumentos de bordo haviam funcionado normalmente.
Não foi apenas o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido a impor condições para um envolvimento britânico nas investigações. Numa nota enviada a Howe pelo ministro dos transportes britânico, John Moore, este informou “estar disposto a que a Divisão de Investigação de Acidentes (AIB) tome parte, com base em atribuições claramente definidas e em associação com outros Estados aceitáveis”, e que “seria também importante que as autoridades moçambicanas queiram a nossa participação”. Mas Moore alerta para “o grande risco dos Estados africanos verem o nosso envolvimento como uma tentativa de ajudar o Governo da África do Sul a branquear um inquérito tendencioso”, prejudicando assim “a enorme reputação dos nossos investigadores de acidentes, e não servindo os interesses do Reino Unido na área da aviação em África no geral”. (9)
O impasse em torno da leitura e análise das caixas negras do avião fez com que, perante a opinião pública, a investigação sobre as causas do acidente passasse para segundo plano, ganhando proeminência a campanha de desinformação que se havia iniciado logo no dia a seguir ao despenhamento do avião. A par disso, os chamados países neutros e os 12 Estados ocidentais representados no Conselho da ICAO não reagiram favoravelmente à ideia de sul-africanos, britânicos ou americanos de se envolverem nas investigações. A Suíça rejeitou o pedido de ajuda técnica solicitada pela África do Sul, alegando não possuir meios para tal. Todavia, em telegrama expedido de Berna, a embaixada britânica informou que “na decisão que tomou, a Suíça foi também influenciada por sensibilidades políticas”. (10) O governo dinamarquês informou o embaixador britânico em Copenhaga que um eventual pedido de ajuda técnica por parte da África do Sul seria rejeitado “em conformidade com a forma da Dinamarca lidar com o governo sul-africano”. (11) A própria ICAO declinou o pedido formulado pela África do Sul, no sentido de serem designados peritos de Estados membros desse organismo das Nações Unidas para ajudar a esclarecer as causas do desastre. Consciente de que se tratava de um desastre envolvendo a perda de vidas humanas, de mais a mais estrangeiras na sua totalidade, a ICAO não evocou as sanções da ONU impostas ao regime de Pretória para justificar a recusa. Em resposta lacónica, o presidente dessa agência especializada das Nações Unidas informou o governo sul-africano que “encontrando-se a investigação nas mãos do Estado em cujo território o acidente ocorreu, e estando o Estado de Registo e o Estado de Fabrico da aeronave representados na investigação, não há, consequentemente, necessidade de mais comunicações por parte da ICAO”. (12)
Perante esta situação, e tendo tomado em conta um parecer do chefe do Departamento da África Austral do Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico, Sir Walter Kieran Prendergast, a ministra de Estado para África e Commonwealth, Lynda Chalker, recomendou que o Reino Unido “devia manter-se afastado da investigação técnica”. (13) Porém, dois britânicos viriam a integrar a comissão de inquérito sul-africana presidida por Cecil Margo, um deles, Sir Edward Eveleigh, com a aprovação pessoal da primeira-ministra, Margaret Thatcher.
Entre avanços e recuos, os Estados Unidos optaram por participar na investigação técnica, tendo pesado as recomendações do embaixador americano em Pretória, Richard Barkley. Em telegrama expedido a 25 de Outubro, Barkley defendeu o envolvimento dos Estados Unidos, “não para sermos prestáveis ao governo sul-africano – nesta fase não lhe devemos nada – mas para servir os nossos interesses”. Na óptica do embaixador, os Estados Unidos seriam “inevitavelmente atraídos por insinuações e desinformação soviéticas”, pois o acidente “reúne todos os predicados de uma saga a la Patrice Lumumba, ‘de mártir africano do capitalismo’”. Para Barkley, “não há dúvida que é de prever um enorme esforço visando distorcer a investigação, acompanhado de uma campanha de desinformação”, e que por essas razões, “seria melhor os Estados Unidos envolverem-se já, antes que os soviéticos viciem os dados” e “nessa altura o Governo da Republica Popular de Moçambique estaria praticamente amarrado e amordaçado pelos soviéticos”. (14)
Dos “neutros”, a Suíça acabaria por disponibilizar meios para em Zurique se proceder à abertura de uma das caixas negras do avião. A Alemanha nomeou um perito que trabalhou com as equipas investigadoras. Contrariando a posição que antes assumira perante a África do Sul, a ICAO designou uma equipa de três peritos depois de Moçambique, por recomendação dos sul-africanos, ter solicitado apoio. (15)

NOTAS
1. Sérgio Vieira, “Sobre a morte de um herói”, Domingo, 2 de Fevereiro de 2003 p. 8
2. Sérgio Vieira, “Sobre crimes ditos por esclarecer”, Domingo (Maputo) 10 de Outubro de 2004 p. 8.
3. Telegrama Confidencial de Geoffrey Howe para Sir Patrick Morbey, Embaixador do Reino Unido em Pretória, 22 de Outubro de 1986.
4. Ibid.
5. Telegrama Confidencial de Geoffrey Howe para James Allan, Embaixador do Reino Unido em Maputo, 23 de Outubro de 1986
6. Telegrama Confidencial do Embaixador James Allan, 24 de Outubro de 1986.
7. Telegrama Secreto do Embaixador John De Vos, 24 de Outubro de 1986.
8. Sérgio Vieira, “Participei, por isso Testemunho”, Maputo: Editorial Ndjira, 2010, pp. 489-490.
9. John Moore, nota enviada a Geoffrey Howe, 3 de Novembro de 1986.
10. Telegrama Confidencial da Embaixada do Reino Unido, Berna, 24 de Outubro de 1986
11. Telegrama Confidencial da Embaixada do Reino Unido, Copenhaga, 7 de Novembro de 1986
12. Telex de Assad Kotaite, presidente do Conselho da ICAO, Montreal, 28 de Outubro de 1986.
13. Nota Confidencial enviada por R. John Sawers, secretário particular de Lynda Chalker, a Sir Walter Prendergast, 6 de Novembro de 1986.
14. Telegrama Secreto do Embaixador Richard Barkley, 25 de Outubro de 1986.
15. Telex do director de Aviação Civil da República Popular de Moçambique e carta do vice-ministro dos transportes e telecomunicações de Moçambique, Rui Lousã, enviados à ICAO em 30 e 31 de Outubro de 1986, respectivamente. Ambas as missivas não aludem ao facto do Estado de Ocorrência do acidente ter aconselhado Moçambique a solicitar o apoio da ICAO.

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