O grupo de Kavandame não queria o II Congresso no interior de Moçambique”
Como é que um jovem da classe em que pertencia decide fazer parte de um movimento de libertação de Moçambique?
Tudo
depende do termo que nós vivemos e da classe a que pertencíamos. Não
vamos dizer que eu nasci no Materiola, hoje é uma cidade talvez com a
maior expansão no país, que é Tete. Na altura havia o quê? 2 000 a 2 500
famílias quando muito. era um sítio isolado e, para se ir à Beira,
levava-se quase uma semana. Para se ir ao Zóbuè, que fica a cento e
poucos quilómetros, levava-se um dia inteiro. Bom, era uma Materiola
isolado. Acontecia que havia ali, como havia em todas as terriolas, dois
ou três grupos de pessoas. Havia um grupo de colonos ou de pessoas
portuguesas, vamos dizer assim. Essencialmente, naquele tempo, gente boa
que ia para lá castigada, iam castigados pelas boas razões, porque eram
republicanos, anti-facistas, anti-salazaristas. Por outro, havia uma
pequena elite negra mestiça, gente que lia, que discutia, que falava. “O
Brado Africano” era uma das leituras de referência, mas também outras
coisas e o meu avô materno pertencia a esse grupo, os meus avós paternos
eu não conheci. Os meus avós eram dali e vivi com eles também,
conjuntamente com os meus pais. Meu pai era um motorista de camião. A
minha mãe até aos anos 1946/47 era doméstica. Mas depois do nascimento
da minha irmã, começou a trabalhar e, quando lhe perguntavam por que
estava trabalhar, dizia que tinha filhos para educar. Era gente que lia,
que discutia e, também, se convivia em grande parte com aquele grupo
branco, que eram os bons brancos, os castigados. Eu lembro-me de um
grande amigo do meu avô, que era um juiz, o Dr. Garção, que estava lá
castigado e que frequentava a casa do meu avô. Esta gente tinha
aspirações que eram progressistas na época. E a primeira grande
aspiração era a igualdade. Quando punhámos outras perguntas, eles
diziam-nos sempre que “cuidado, precisamos de formar os nossos
doutores”. E porquê? Sem eles como é que vamos fazer funcionar as
coisas? Sem a nossa gente como é que funciona? E nesse sentido havia um
grande esforço para educar os seus filhos. Eu lembro de alguns amigos do
meu avô, o velho Abreu, por exemplo, dos filhos há uma que é uma
ministra, o outro é o vice-governador do banco. Estou a lembrar-me do
velho Diogo, o enfermeiro, pai da Luísa e do médico Diogo. O esforço era
educar os filhos e isso existia muito no nosso tempo. Depois há um
segundo momento, por consequência não éramos gente rica, é verdade que
na casa dos meus pais e dos meus avós havia livros e sempre houve
livros. Já estávamos alfabetizados há mais de 100 anos. A segunda é
quando começam as grandes mutações, e começamos a entrar em choque com
aquilo que víamos com a sociedade colonial. Tive um tio avô que foi
deportado para São Tomé. Nas minas que estavam ali houve parentes que
morreram em desastres das minas; havia o trabalho forçado, o chibalo,
havia isso tudo. E de repente numa cabeça duma criança começa a chocar.
Depois veio o segundo momento, quando adolescentes, que já
questionávamos. A adolescência é um período de questionamento. E veio o
terceiro momento, foi muito importante dentro da minha evolução, quando
chego à universidade. É preciso notar, quando digo quando chego à
universidade, a universidade era em Portugal, porque, em Tete, por
exemplo, em toda a província que faz 104 km2, apenas havia uma escola
primária oficial. Não havia escolas secundárias, não havia nada, tanto
que até os colonos abastados mandavam os filhos para Rodésia, Zimbabwe
actualmente, para Niassalândia, Malawi hoje, e um a outro mandava para
Lourenço Marques, porque inclusive na Beira nessa altura não havia
ensino secundário, apareceu nos meados dos anos 50. Quando chego à
universidade em 1958, havia uma instituição que era a Casa dos
Estudantes do Império, que foi muito importante para a formação de todos
nós. Esta casa dos Casa dos Estudantes do Império tinha sido fundada
nos anos 30 pelo então comissário geral da Universidade Portuguesa,
Marcelo Caetano, e que se destinava aos filhos dos colonos. Ora, filhos
dos colonos que iam a Portugal eram gente abastada e tinham família lá,
não ligavam aquilo. Depois da II Guerra Mundial, há um grupo das
colónias, de Moçambique foi o Marcelino, o João Mendes, que foi expulso
de Moçambique pela polícia política, o Walter Soares, a Noémia, uma
série de moçambicanos, o próprio Mondlane esteve lá, Agostinho Neto,
Mário Pinto de Andrade, Lúcio Lara, Alda Espírito Santo, Francisco José
Tenreiro, o Amilcar. Toda essa gente, no fim da II Segunda Guerra
Mundial, chega a Lisboa para estudar e tomam conta da Casa dos
Estudantes do Império e voltaram o feitiço contra o feiticeiro. Aquilo
tornou-se um espaço de troca de ideias, de formação, e um bocadinho do
nacionalismo. Eu quando chego, estavam as coisas um pouco mais
adiantadas e havia uma grande troca de ideias e aquelas ideias confusas,
aquelas aspirações diluídas e espaças que podíamos ter começaram a
encarreirar e a descobrirmos de facto o caminho. É preciso notar também
que é um momento de grande convulsão, que são as independências
africanas. Em 1959/60 é o assassinato do Lumumba e isto tocou-nos. São
as conversas que nós temos, os livros que lemos, havia um médico de
origem angolana branco, creio que era do partido comunista, que fazia
assistência à Casa dos Estudantes do Império, no sentido de íamos lá às
consultas (...) e ele passava-nos certos livros, revistas, etc.,
Presença Africana, os livros do Jorge Amado, Subterrâneos da Liberdade, e
outros textos. E íamos alimentando a cabeça.
E quando é que se dá o momento crucial?
O
momento crucial veio duma maneira muito forte e aberta, a exigência da
libertação nacional, da independência, o que está ligado a todo o
movimento que acontece no continente. É bom lembrarmos que o MPLA foi
criado em 1956, celebrámos a pouco os 55 anos e, inclusivamente, eles
tiveram a gentileza de convidar o Presidente Chissano, o Marcelino e eu
(...). Então, havia já gente cá fora, o Marcelino, o Mario de Andrade, o
Luís de Almeida, etc., e essa gente deu mais orientação. Lembre-se que é
o momento que se forma a CNCP, a Conferência das Organizações
Nacionalistas das Colónias Portuguesas; já havia o MPLA, o PAGC. Em
Moçambique ainda estávamos divididos. Havia a UDENAMO, a MANU e a UNAMI.
É neste momento que começam as grandes questões, o governo colonial
fascista começa a intervir dentro da Casa dos Estudantes do Império,
põem-nos comissões administrativas, por consequência destituindo as
direcções e gerindo pessoalmente até mais tarde, por volta de 1963
(...). Em 1960 é o massacre de Mueda. Temos a informação do massacre de
Mueda através dos marítimos, que nos traziam correspondências e grande
parte deles eram cabo-verdianos. Andavam nos barcos da Companhia
Nacional de Navegação e traziam correio e levavam correio. Isto foram os
diferentes catalizadores, aceleradores, da nossa consciência e daquilo
que foi acontecendo. Estamos já em finais de 1960. Em 1961, o ano começa
com o ataque ao Paquete Santa Maria (...). Então, tinha se organizado
uma organização para fugirmos de Portugal e juntarmo-nos à união de
libertação. Cá fora estava o Marcelino, o Luís Almeida, o Lúcio Lara, e
outros. Em Portugal, dos mais velhos em relação a mim, estava o Edmundo
Rocha, o Paulo Teixeira Jorge, entre outros, e começámos a organizar a
nossa fuga. Nesse momento havia dois grupos dos estudantes das colónias
em Portugal. Havia um grupo que estava ligado à Casa dos Estudantes do
Império e havia um segundo que estava no Lar de Carcavelos, que
pertencia às igrejas protestantes. Tinha começado a luta em Angola e as
igrejas protestantes estavam bastante ligadas à UPA, quiseram tirar
estudantes cá para fora. E há dois momentos nessa ocasião, um primeiro
momento em que eles queriam tirar os estudantes angolanos protestantes; e
um segundo momento em que há uma discussão em Genebra (...) . Acontece
que nessa discussão, as igrejas protestantes americanas não estavam
envolvidas nisso, não queriam.
Mas isso foi antes da fundação da Frelimo?
Em
1961, isto são antecedentes. Então, há um certo momento que o pastor
Mark Bignely insiste que saiam todos, quando a discussão está acesa ele
levanta-se e mostra a tatuagem que ele tem no braço do campo de
concentração, durante a segunda guerra mundial, preso pelos nazistas e
diz: “estão a ver, eu sou sobrevivente e nós sobrevivemos porque
cristãos, protestantes, comunistas, todos unimo-nos (...) se vocês não
querem, a igreja protestante de França vai fazer”. E a igreja de França,
já com todos, faz e começam as discussões sobre como fazer. Vem para
Portugal um senhor francês que, era parente do ministro dos Negócios
Estrangeiros, que era protestante, começa a organizar a saída. E a um
certo momento, nas nossas discussões, eu disse que é bom que com cada
grupo vá um pastor americano (...) e assim fez-se. O primeiro grupo saiu
bem e o segundo grupo, em que fazia parte Joaquim Chissano, Pascoal
Mocumbi, João Nhambine, é preso em Espanha, na fronteira com a França.
Então aí, o tal pastor americano joga, apresenta o seu passaporte
americano e era amigo pessoal do embaixador americano em Madrid, cujo
embaixador tinha sido um daqueles apoiantes de Kenndy. E então ele fala
com o presidente e o presidente fala com o governo espanhol e passaram.
quando chegaram os aviões da força aérea para evacuar, voltaram vazios.
E quais foram as consequências disso?
Isso
desorganizou a nossa organização. E ficou cada um por si e Deus por
todos. Em Dezembro, eu fugi clandestinamente. Pouco antes tinha saído o
Paulo Jorge, depois saiu o Fernando Ganhão. Quando chegámos na França,
estavam muito poucos moçambicanos. Estava o Mocumbi e Chissano em
Puatiey; em Paris estava eu, Ganhão, o António Matos, Rui Nogueira,
Isabel Brito. Estávamos em contacto com o Marcelino e vem o presidente
Mondlane em Janeiro de 1962. Tivemos vários encontros com o presidente
Mondlane e, entretanto, tínhamos formado uma organização estudantil que
era UNAMI, União Nacional dos Estudantes Moçambicanos e tínhamos tomado
uma decisão, não íamos apoiar nenhum partido, não queríamos a repetição
do que estava a acontecer em Angola.
O que vos guiava?
Queríamos
a unidade. Quem era o guião, o pastor, o condutor da unidade era
Mondlane. Ficámos com o Mondlane e, efectivamente, quando se faz a
união, em 25 de Junho, das três organizações, aderimos à Frelimo.
Chissano, se não me engano, esteve no dia 25 de Junho em Dar-es-salaam.
Depois o Mocumbi esteve no I Congresso, em Setembro.
Qual era o seu principal papel quando surge o movimento?
Eu
era um estudante e recebi tarefas (...). 1963, o presidente Mondlane
mandou-me para Marrocos, interrompi os estudos, para cumprir tarefas e,
depois em 1964 manda-me para Argélia, onde fiz também o treino militar
(...) e acabei os meus estudos e depois voltei, comecei a trabalhar com o
presidente Mondlane directamente
Fala-se
de um período de crise no movimento entre 1965 e 1967. Qual era o
motivo dessa grande crise de que tanta gente fala e que pouca vezes
tentou-se explicar?
A
crise teve várias origens. Está a falar da crise que depois vai
culminar com o assassinato de Eduardo Mondlane. A crise teve vários
momentos. Num primeiro momento, na gloss que forma a Frelimo havia uma
amalgama de gente e, esse tipo de gente, não estava muito segura do que é
que queria e não queria. Pensavam que a independência seria sei lá,
como tinha acontecido com Tanganhica, com outros países, seria negociada
e Portugal dava a independência e havia os que estavam convencidos que
não, Mondlane era um deles, o Marcelino era um deles, e outros
companheiros, o Gundana, o Jeremias Nhambire que agora é nosso
embaixador em Portugal. Estavam convencidos que não era nada assim, não
era um passeio. De tal maneira havia essa convicção de passeio que 1963
quando se forma a OUA, o secretário-geral, que era o Diala Toure, diz ao
Mondlane venha a Addis Abeba e nós vamos libertar. E ele disse não, nós
é que vamos libertar e não vamos a Addis Abeba. Então aqui faz-se um
processo de decantação, entre os que queriam entrar numa via séria
consequente e os que não queriam e que estavam à espera que as coisas
viessem do céu. Então há uma decantação. Se você verifica, entre 1962,
quando se forma a Frelimo, e o I Congresso e 1964/65 já há uma grande
mudança naquilo que era a composição da direcção. Tinham saído,
fundamentalmente, as pessoas que já estavam cá fora, não tinham raízes.
Logo do princípio, Mondlane levou a sério a preparação dos quadros para
desencadearem a luta de libertação nacional. É assim que vai o primeiro
grupo e segundo para Argélia. No primeiro grupo até dirigiu o Magaia,
que mais tarde vai para academia militar em Nanjin. O segundo grupo é
dirigido por Samora, na Argélia, e começa-se a preparar a luta armada de
libertação nacional, que é desencadeada em 1964. Quando começa a luta
armada estava tudo bem, as pessoas estavam convictas, mas depois começam
a surgir as zonas libertadas...
Gostava
de ouvir um pouco sobre a história das zonas libertadas, parece-me que a
Frelimo usou as zonas libertadas como uma experiência daquilo que podia
vir a ser uma nação. É uma ideia errada essa?
Com
certeza. Começam a surgir as zonas libertadas e começa-se a organizar a
produção. Quando se organiza a produção, organiza-se a criação de
riqueza e surgiram contradições. Há aqueles que querem beneficiar do
esforço produtivo em favor próprio. Era grupo dos Kavandane, etc. As
coisas vão se avolumando e há um certo momento em 1967, eu estive
presente, em que Mondlane encarregou-me de ver essa questão, e depois
participei na reunião, na qual Lázaro Kavandame propõe que as nossas
forças tomem Mueda e proclamem a independência de Moçambique em Mueda e
depois ia-se libertar o resto do país
Qual era a ideia de libertar Mueda e deixar o resto do país?
Era
essa mesma a pergunta que nos fazíamos. Eu lembro-me que na ocasião fui
ter com o chefe do Departamento de Defesa, o camarada Samora Machel,
falei com o Chipande, com o Pachinuapa e toda a gente disse que era uma
loucura. “Neste momento, os portugueses estão a encurralar-nos em Mueda e
depois ficamos nós encurralados em Mueda? E o que é isso de tomar Mueda
e proclamarmos a independência?” Viu-se que era uma solução absurda.
Mas o que acontecia com esse pedido de libertar Mueda e proclamar-se a
independência? Era instalar o poder, era aquilo que depois o Comité
Central falou dos ambiciosos, económicos e políticos e faz-se a junção
entre os dois grupos. Vai-se ao II Congresso e o grupo Kavandame
boicota. Não queriam o II Congresso no interior de Moçambique, e nós
queríamos discutir as coisas dentro de Moçambique. Então, vai-se ao II
Congresso e o mesmo afirma os princípios fundamentais da nossa luta, que
era guerra popular prolongada; o princípio de servir o povo; o
princípio de respeitar o inimigo, no sentido de não maltratar civis,
prisioneiros e nós temos, desculpe, essa coroa de glórias. Não houve
nenhum prisioneiro de guerra que morreu nas nossas mãos. Houve situações
em que morreram soldados nossos e que nossos soldados deram sangue para
salvar a vida de soldados inimigos. E quando chegou o momento de troca
de prisioneiros, os portugueses não nos entregaram nada e nós tínhamos a
lista completa (...). O grupo do Kavandame, que era apoiado por outros
que estiveram no congresso, como Simango, Nungo, etc., boicota o
resultado do congresso e quer fechar a fronteira. É nesse processo de
fechar a fronteira que eles assassinam o camarada Paulo Samuel Kamkomba.
Que é assassinado quando ia levar abastecimento, ele era o chefe das
Operações da província de Cabo Delgado. O Lázaro deserta depois do
assassinato de Mondlane, junta-se abertamente aos portugueses. O
assassinato aconteceu em Dar-es-salaam, com a carta-bomba, preparada na
Beira, por um agente muito conhecido da PIDE, que também esteve
envolvido no assassinato de João Delgado e Cassimiro Monteiro. Depois
segue-se um período perturbado, até que se reúne o Comité Central.
Sentiu-se um pouco de luta pelo poder depois da morte de Eduardo Mondlane. Como é que conseguiram superar esse momento?
Penso
que falar de luta pelo poder é um bocado exagerado. Havia um grupo
pequeno, em termos reais, que era da junção dos ambiciosos políticos e
económicos, dos que queriam fazer negócios das zonas libertadas e dos
que queriam poder e havia o grosso. E a essência do grosso era a
população e as forças armadas, de modo que quando chega a sessão de
Abril do Comité Central, o pequeno grupo dos ambiciosos já estava
isolado. Lázaro fugiu depois do assassinato de Mondlane e juntou-se aos
portugueses. Então foi-se ao Comité Central e este organismo tomou as
suas decisões e falou das duas linhas. Pouco depois, Simango deserta, o
Nungo morre e Murrupa junta-se aos portugueses. E a partir daí acabou
esse período de conflitos.
O que foi importante para o movimento voltar a unir-se, depois da desertação de Simango, que era uma figura influente?
O que foi importante é que de facto estes elementos que desertam tinham pouca presença no seio do povo.
Estamos a falar do vice-presidente da Frelimo
Sim,
mas fazia muito trabalho de fora, não estava enraizado nem nas forças
armadas, nem na população (...) mesmo na organização da produção o
próprio Nungo estava cá fora, quem esteve ligado à produção foi o Manuel
dos Santos, o Lopes Tembe, essa gente esteve ligada e tinha presença no
seio do povo, os outros não.
Leia mais na edição impressa o "Suplemento Especial- 50 anos- Frelimo "do «Jornal O País»
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