Celebrando 18 anos de paz
Fotos de Joel Chiziane
Foi
no dia 5 de Maio de 1980 que um jovem de 22 anos decidiu abandonar a
família (pais), a namorada, os amigos e o cargo de chefe da secção de
desenhos na manutenção portuária nos CFM para se juntar a um movimento
de guerrilha ainda em gestação e que se pretendia lutar ideologicamente
contra a orientação marxista-leninista que a Frelimo
havia assumido nos anos imediatamente após a independência. Estamos a
falar da entrada de Raul Domingos no movimento que mais tarde viria a se
transformar num partido político (na oposição), a Renamo.
Hoje
com 52 anos (faz 53 a 14 de Outubro), o principal negociador da paz por
parte da Renamo e hoje presidente do PDD (um partido na oposição que
ainda não conseguiu a sua descolagem politica) terminou a sua juventude
nas matas. Foi lá onde conheceu a sua esposa e fez três, dos cinco
filhos.
O
enlace entre Raul Domingos e a antiga guerrilha deu-se na localidade de
Doeroi, posto administrativo de Amatongas, distrito de Gôndola, quando
uma coluna liderada por Afonso Dhlakama interceptou um comboio de carga,
onde ele e um colega e amigo viajavam. “Foi com muita sorte, o comboio
parou, sem ser atacado, no local onde a coluna estava a passar”, lembra o
interlocutor em declarações ao SAVANA esta
quarta-feira em Maputo. Os homens armados dirigidos por Dhlakama
aproximaram-se ao comboio e começaram a dialogar com os poucos
ocupantes.
“Fomos
convidados a fazer parte da guerrilha e eu aceitei”, conta com muita
naturalidade. “Na altura ainda não tinha começado a propaganda política
governamental de que o movimento era um grupo de bandidos armados, tanto
mais que o movimento existia a sensivelmente três anos”, contou, quando
perguntámos se foi fácil tomar a decisão.
Os
pais souberam da decisão do filho de integrar o movimento de guerrilha
através de uma carta que ele escreveu e entregou-a ao amigo com quem
viajava. “Ele mostrou-se relutante porque tinha mulher e filhos, tinha
uma mãe viúva que dependia dele”, conta Raul Domingos, lembrando que o
chefe da coluna (Dhlakama) decidiu libertar o seu amigo. “Fiz a carta e
pedi-lhe para levá-la aos meus pais. Quando me encontrei com os meus
pais depois de terminar a guerra, exibiram a carta”, explica, lamentando
que durante a guerra não pode visitar os pais. Luís Lino Guilherme, o
amigo que serviu de correio, viria a ser o primeiro representante da
Renamo na cidade da Beira, logo após o término da guerra.
Razões
Até
1980, o jovem funcionário dos CFM já tinha ouvido falar de um movimento
que “contra o marxismo-leninismo”. E as razões para ele apagar todos os
sonhos e juntar-se a esse movimento diz que eram bastantes. Uma delas,
segundo conta, é a visão que tinha sobre a “grande” restrição das
liberdades. Nos CFM, ele havia beneficiado de um curso que o dava
direito a ascender imediatamente a uma outra categoria. “Não ascendi
àquela categoria, porque na altura havia um decreto que dizia que
ninguém podia ser promovido”, explica. Outro decreto que aos seus olhos
coarctava as liberdades dos cidadãos, proibia os funcionários públicos
de abandonarem as suas vagas estatais para irem trabalhar em empresas
privadas sob pena de serem acusados de sabotagem.
Por
não ter sido promovido, Raul Domingos tinha a possibilidade de ir
trabalhar para uma empresa privada que oferecia vagas para a sua
formação e pagava melhor, a Açucareira de Moçambique. Mas não podia
abandonar os CFM sob pena de ser acusado de sabotagem.
“Esta
restrição de liberdades criou em mim um trauma e comecei desde cedo a
perceber que a independência não tinha trazido a liberdade”, explica os
efeitos que as proibições da época criaram em si. E mais: “Percebi que
havia um motivo para lutar”.
Momentos difíceis
Passam
18 anos após a assinatura do Acordo de Paz e o tempo apagando alguns
episódios de guerra na memória de Raul Domingos. Mas alguns ainda
resistem ao tempo, como a primeira experiência de um ataque que teve
lugar em 1980 na base de Citatonga, sul de Manica.
Diferentemente
dos outros jovens que uma vez capturados eram distribuídos por unidades
militares dispersas, ele foi integrado na unidade central onde estava
Afonso Dhlakama, o guia do movimento.
“A
coluna movimentava-se de Gorongosa para o sul da província de Manica e
fomos nos fixar em Citatonga. Era uma base muito conhecida e era
dirigida pelo próprio Dhlakama. Mas mais tarde viria a sofrer uma
ofensiva, naquilo que constitui para mim a primeira experiência
militar”.
Outra
experiência que Raul Domingos guarda na memória é o ataque que sofreu
em Mahele, um dos cinco postos administrativos de Magude, província de
Maputo. Na altura, 1984, ele era, na hierarquia da guerrilha, chefe do
Estado Maior da zona sul onde dirigia entre cinco a sete mil efectivos. O
ataque ocorreu dois meses depois do Acordo de Nkomati.
“Foi
a 2 de Junho, o terreno não era favorável para a guerrilha. Era muito
fácil sermos atacados com viaturas de combate e tanques”, descreve. E o
ataque das forças governamentais viria a ser feito com recurso a tanques
e carros blindados.
“Tivemos
que fugir dispersos”, lembra, deixando muita informação, mapas de
localização das bases e de esconderijos de material. “Mais tarde
descobrimos que eles não tinham levado o saco que tinha documentos de
informação militar”.
Não havia mobilização
Até
Outubro de 1992, a Renamo tinha aproximadamente 25 mil efectivos. Como
era feita a mobilização? Não havia, responde. “A resistência era contra a
agressão à liberdade, aos valores culturais e religiosos. As pessoas
sentiam a guerra como sua, não precisavam de mobilização, não precisavam
de comissários políticos”, argumenta, reiterando que “cada um
juntava-se à guerrilha por motivos próprios.
Outro
aspecto que facilitava os movimentos da guerrilha era o acesso a
informação das forças governamentais. Segundo relata, os serviços de
informação eram tão sofisticados que captavam quase todas as informações
militares, incluídos os planos militares, a movimentação, a logística, a
ordem de batalha de inimigo - saber que tipo de armamento existe numa
unidade (base), quantos homens existem, qual é a sua rotina e a sua
logística.
Abastecimento
Sobre
o abastecimento em material bélico, Raul Domingos a guerrilha era
fornecida pelo regime do Apartheid da África do Sul e pelo regime do
Zimbabuè. Mas depois dos Acordos de Nkomati, em Março de 1984, esses
apoios cessaram.
“Passamos
a receber material bélico fornecido por oficiais e altas patentes das
forças governamentais”, acusa, sem fornecer muitos detalhes sobre isso.
“Agora não posso indicar os nomes dessas pessoas, mas do lado do
movimento quem colaborava com elas era Manuel Pereira e o senhor
Carrelo”, explica. As duas figuras, hoje membros da Renamo, faziam parte
daquilo a que Domingos designa de guerrilha urbana e de
clandestinidade.
Sobre a comida, o interlocutor diz que a população é que abastecia a guerrilha.
Não vendemos a paz
Alguns
académicos têm demonstrado nas suas análises que tanto o Governo da
Frelimo como a Renamo aceitaram a paz a troco de recursos de poder
(materiais e simbólicos) oferecidos pela comunidade internacional.
Assim, dizem, os Acordos de Roma permitiram à Frelimo capturar o Estado e
a Renamo ter acesso aos fundos da indústria de desenvolvimento. Sem
essas garantias nenhuma parte estava em condições de aceitar a paz que
era promovida pela comunidade internacional. Raul Domingos não concorda
dessa visão e argumenta: “em nenhum momento exigimos dinheiro para
aceitar o que quer que fosse. Os nossos princípios não eram vendidos,
por isso conseguimos ter um dos melhores acordos de paz até aqui se
conseguiu em África”.
Para ele, a guerra não teria durado 16 anos se houvesse uma abertura para o diálogo por parte do Governo da Frelimo.
A
falta de diálogo e de tolerância política, diz ele, é que criou a
situação de guerra. “Esse conjunto de mentiras faz um colorado de
informações que pretendem desvirtuar o verdadeiro sentido da guerra
civil que aconteceu no país”, desabafa.
Mas admite que as despesas das suas deslocações a Roma eram suportadas pela Itália, através da Comunidade do Sant´Egídio.
Negociações
Depois
de ter sido nomeado Chefe do Estado-Maior da zona sul em 1984, Raul
Domingos foi transferido em 1987 para zona centro do país. Aqui ele
desempenha as funções de chefe do Estado Maior - General a nível
nacional. Dois anos mais tarde, é chamado para o gabinete do presidente
do movimento para cumprir a missão de enviado especial para Quénia.
“Fui
a Quénia para atender a um convite que tinha sido feito ao presidente
da Renamo pelo presidente da Quénia. Foi lá onde encontrámo-nos pela
primeira vez com o grupo dos clérigos moçambicanos, o Dom Alexandre, o
Dom Jaime, o dom Dinis Singulane e o falecido pastor Ozias Mugache”.
Depois da viagem para Quénia, Raul Domingos é desvinculado do Estado
Maior - General para assumir o cargo de chefe das relações externas. “A
partir dai comecei a acompanhar todo o processo de aproximação entre a
Frelimo a Renamo”, conta, indicando que mais tarde viria a ser designado
para chefiar a delegação da Renamo para o encontro directo com a
delegação da Frelimo, que teve lugar em Junho de 1990 em Roma.
As
negociações foram difíceis, porque era uma questão tolerância para
ouvir opiniões contrárias, diz. “Enquanto uns nos viam como bandidos
armados, nós tínhamos que fazer um esforço para que essa atitude mudasse
e passassem a considerar-nos parceiros”.
Houve impasses nas negociações, “não chegávamos ao entendimento, cada parte voltava à sua posição”.
Sobre
concessões, o interlocutor diz que foram muitas, e dá um exemplo: “Na
questão da paridade nas forças de defesa e segurança, o nosso desejo era
ter paridade nas Forças Armadas, na Polícia e no SISE. Mas acabámos
cedendo na Polícia e no SISE, acabando por ficar com a paridade nas
Forças Armadas onde os efectivos tinham de ser 50% de cada lado, os
comandos também 50% de cada lado”.
“Uma
negociação é dar e receber, não é uma imposição”, lembra, dizendo,
porém, que a única imposição que o Renamo fez foi a instauração do
Estado de Direito e de uma democracia multipartidária. “Chamo a isto de
imposição porque existe um grupo ortodoxo na Frelimo que ainda acredita
que o marxismo-leninismo seria o melhor modelo de governação”,
justifica.
Dentro
da Renamo também não era fácil convencer os membros sobre a necessidade
de fazer algumas concessões. “É por isso que estou careca”, diz, entre
risos. “Não foi fácil, tinha de passar a mão muitas vezes pela cabeça,
tinha de engolir sapos, aceitar ouvir coisas que não queria ouvir”,
recorda, dizendo o desafio era de encontrar termos apropriados para
convencer internamente sobre as concessões a fazer e tecer argumentos
para convencer a outra parte.
SAVANA – 01.10.2010
Poderá também gostar de:
Sem comentários:
Enviar um comentário