Mão amiga fez-me chegar o livro de Barnabé Lucas Ncomo "URIA SIMANGO Um homem, uma causa".
Aproveito para transcrever o capítulo abaixo:
Do Pelotão Maldito ao efeito boomerang
Manuel Mapfavisse era um dos mais temidos carrascos de M'telela desde a abertura do Centro em 1975. Estava à testa de um pelotão de guardas e, por ser mais instruído literariamente do que a maioria de outros guardas, servia de correio entre M'telela e Lichinga.
Natural de Ampara, no distrito de Búzi em Sofala, Mapfavisse havia recebido a alcunha de "o Bazuca", dada a sua estatura latagónica. Tal como o comandante e a grande parte dos que integravam a Companhia de 150 homens que guarnecia o Centro, Mapfavisse vivia com a família nas cercanias do mesmo.
A páginas tantas, a situação dos presos começou a preocupar um certo grupo de guardas. Condoía-lhes a situação de alguns presos doentes e particularmente da Dra. Joana Simeão. Como esta era ainda muito jovem, chegado o período menstrual, viam-na na sua cela a contorcer-se de cólicas sem poderem ajudá-la. Aos trapos que lhe atiravam como pensos para conter o fluxo sanguíneo, cabia a eles voltar a recebê-los através da portinhola da cela e desembaraçarem-se dos mesmos.
Deste modo, até princípios de 1977, havia em M'telela dois tipos de guardas para mesmos prisioneiros: Um grupo de defensores acérrimos da causa do regime e um outro que aparentava ser defensor dos direitos dos prisioneiros. Bazuca alinhou com o segundo grupo constituído pelo pelotão que ele chefiava. Num dia, sem dar conta da dimensão do problema que ia criar, planeia com alguns do seu pelotão a fuga de três prisioneiros dentre os quais a Dra. Joana Simeão. Mas antes, Bazuca ter-se-á queixado junto do comandante dos transtornos que aqueles três presos davam. Falou da situação de Simeão e de homens que se prezavam como tal - como aqueles guardas - terem que suportar situações que contrariam a tradição, lidando com coisas íntimas que só às mulheres diziam respeito, apenas porque a infeliz prisioneira não podia sair da cela. Aparentemente, a lamentação foi ao encontro da sensibilidade de Mombola e este, tomando a peito a questão, garantiu que encontraria uma solução. Efectivamente, Mombola encaminhou a preocupação a Lichinga, usando como argumento a tradição africana e os "perigos" que advinham de um homem lidar com coisas femininas daquele tipo. A resposta de Lichinga não se fez esperar. Veio "curta e grossa": "Mandem a Joana e os outros dois cortar lenha!...'»9.
Na gíria da guerrilha da Frelimo, especialmente desde a abertura da base Moçambique D, próximo de Nangololo, na província de Cabo Delgado, "cortar lenha" significava execução sumária de prisioneiros.
Recebida a Ordem de Serviço, Mombola incumbiria a missão precisamente a Bazuca, a quem deu aval para escolher alguns do seu pelotão para executarem a missão. Bazuca escolheu então quatro guardas dentre os que com ele conspiravam e deu instruções claras, alertando-os como deviam agir para libertarem os três presos sem levantar suspeitas.
As instruções de Lichinga haviam chegado numa altura em que o Comandante preparava uma viagem para aquela cidade, exactamente na companhia de Bazuca. Assim, achou-se por bem executar a "missão Joana" antes da partida, de forma a poder relatar os resultados à chefia da Contra Inteligência Militar na capital provincial.
Ao entardecer, os quatro homens, sob ordens de Bazuca, que na circunstância se viu impossibilitado de se fazer à mata dado o avalanche de trabalho que tinha que executar antes de seguir para Lichinga, retiraram os presos e encaminharam-nos para o local da execução. Chegados aí, os quatro guardas deram instruções aos presos para que escapulissem. Mas antes, terão exigido que estes lhes assegurassem possuir capacidades para alcançarem "terra firme" , isto é, o vizinho Malawi. E mais, exigiram aos presos que nunca revelassem as circunstâncias da sua fuga. O receio de possíveis transtornos recaía sobre Joana Simeão por na época o seu nome ter sido muito sonante na opinião pública moçambicana. Se reaparecesse no estrangeiro, certamente que iria complicar a vida dos guardas. Joana Simeão assegurou, então, que se manteria calada, e uma vez a salvo no estrangeiro adoptaria um outro nome como garantia de passar ao anonimato.
Tendo concordado que tudo ficaria no segredo dos deuses, os guardas dispararam alguns tiros ao acaso e depois instruíram os presos como deviam caminhar e comportar-se na densa floresta de Niassa. Iniciou assim a fuga dos três prisioneiros incómodos. Todavia. Joana ficaria para trás por não conseguir manter a passada" dos seus companheiros de cárcere. Como consequência disso, viria a ser recapturada dias depois.
Mas antes, regressados ao Centro, os quatro carrascos relataram os factos ao seu chefe - Bazuca - o qual, por sua vez, informou ao Comandante sobre o "pleno cumprimento" da Missão Joana. Sossegado, no dia seguinte, Mombola empreende então a viagem programada a Lichinga, na companhia de Bazuca para, entre vários afazeres, informar aos seus superiores hierárquicos acerca da execução da Dra. Joana Simeão e de outros dois prisioneiros.
Contudo, contrariamente às garantias dadas pêlos presos, as coisas no terreno complicaram-se. Um dos prisioneiros, conhecedor da mata e natural de Majune, uma vila situada a norte de M'telela, conseguiu lá chegar pedindo protecção a familiares seus. Estes imediatamente esconderam-no, para mais tarde tratar do seu envio para o Malawi onde residiam pessoas de família. Antes, porém, o antigo prisioneiro revelaria as atrocidades cometidas pelas autoridades em M'telela e as circunstâncias da sua fuga na companhia de Joana Simeão e de outro prisioneiro. Se bem que o homem não tivesse denunciado os guardas que lhe facilitaram a fuga, não evitou que a notícia se espalhasse entre os aldeões, chegando ao conhecimento das autoridades locais.
Notificadas as autoridades em Lichinga sobre o acontecido em Majune, Mombola, ainda mergulhado nos seus afazeres na capital provincial, foi posto ao corrente da situação pelo chefe provincial da CIM. Perante o choque inicial da notícia, e longe de imaginar que Bazuca fosse a pessoa que planificou tudo, o Comandante recorre a este para com ele estudar a forma de se livrar da situação. Igualmente alarmado, Bazuca apercebe-se da dimensão do problema que criou. Precavido, ciente do que lhe aconteceria se Mombola regressasse primeiro à M'telela, sugere ao comandante do centro que permaneça em Lichinga para ultimar os seus afazeres, e que ele regressaria de imediato a M'telela para acudir à situação. Tanto Mombola como o Chefe da CIM terão concordado com a ideia e deu-se instruções para que assim que chegasse ao Centro, Bazuca perseguisse os fugitivos. Aos infractores que deixaram escapulir os presos, devia-se-lhes "mandar cortar lenha", vituperou o chefe da CIM.
De regresso a M'telela, Bazuca move-se no sentido de evitar que o seu nome se associe ao plano da fuga. Age com cautela e rapidez. Fala em surdina com os outros chefes de pelotões que ficam estupefactos com a notícia. Informa-os sobre os passos à seguir, de acordo com as instruções que trazia. Numa missão silenciosa, os quatro carrascos foram imediatamente presos e não se lhes deu tempo para se explicarem, pois perante um quadro devidamente pintado por um homem de extrema confiança como o era Bazuca, a medida não sofreu qualquer suspeita dos restantes chefes de M'telela. Na calada da noite, os detidos foram levados para um local afastado e executados a golpes de baioneta desferidos por Bazuca e outros chefes de pelotões.
"Aqueles tipos morreram sem perceber porquê. Primeiro porque não lhes passou pela cabeça que um dos presos foi parar ao Posto administrativo de Majune. Segundo, como cada um deles foi amordaçado, tendo uma venda colocada sobre a vista, não era possível perceber quantas pessoas estavam a sua volta. Depois foram arrastados para sítios diferentes e mortos."50.
No dia seguinte a morte dos 4 guardas, iniciou a caçada aos fugitivos. Um grupo de cerca de quinze homens armados de kalashnicovs fizeram-se ao mato à caça dos fugitivos. A Dra. Joana Simeão viria a ser recapturada pouco tempo depois. Sozinha na mata de Majune, não conseguiu ir longe. Os guardas, ao avistarem-na, gritaram para que parasse. Por não obedecer à ordem, um dos guardas disparou, atingindo-a na mão direita. Meses depois seria sumariamente executada na companhia do Rev. Uria Simango e dos restantes prisioneiros políticos.
Cerca de uma semana após a execução dos quatro carrascos e da recaptura de Joana Simeão, Mombola regressou ao Centro tendo felicitado Bazuca pelo trabalho. Todavia, para as autoridades, os guardas de M'telela haviam vacilado. Era necessário imprimir uma maior rigidez na disciplina do Centro. Mombola regressou a M'telela com uma ordem severa para cumprir, e, aos chefes dos vários pelotões, viria a declarar:
" (...) o que aconteceu aqui é grave. Todos vocês sabem que isto não é brincadeira camaradas. Nós que somos responsáveis aqui podemos ser culpados e morrermos por brincadeiras de alguns desordeiros. Trago ordens que devem ser cumpridas, doa a quem doer. Todos aqueles que estavam de serviço naquele dia também sabiam do jogo. Os chefes em Lichinga disseram que é preciso punir severamente todos para servir de lição para que ninguém no futuro aceite mais ser comprado ideologicamente por estes reaccionários aqui:51 .
Dessa forma, os restantes quinze guardas de um pelotão de 20 homens comandados por Bazuca, morriam. Levados para o local da matança, foram todos executados.
Entretanto, eliminados os guardas, surgiu o problema de como se informar as esposas de alguns deles sobre o brusco desaparecimento dos maridos. A solução encontrada foi a de se liquidar não só as senhoras, mas também os filhos52.
Medida semelhante estava, ao que se diz, reservada aos filhos do Rev. Uria Simango. Depois de o ter mandado executar, o regime da Frelimo insistentemente endereçava convites aos filhos do casal Simango para que se deslocassem ao Niassa a fim de "visitarem" os pais. "0s meus tios disseram-me que, por duas vezes, apareceram na Beira, vindas de Maputo, pessoas das nossas relações familiares ligadas a Frelimo. Não vou dizer os nomes dessas pessoas. Diziam que o governo queria que nós fossemos visitar os nossos país em Niassa. Nunca falavam directamente comigo. Dirigiam-se aos meus tios e os tios nunca nos diziam nada porque éramos menores, para além de que se nos dissessem nós imediatamente passaríamos a viver imaginando sempre a hora da partida para Niassa e o reencontro com os país"*.
Desconfiados da "boa fé" do regime, os tios dos três rapazes sempre se opuseram. Tinham informações, vindas de outras pessoas ligadas ao poder, de que tais convites encerravam em si algo de sinistro, que culminaria com o desaparecimento dos filhos do casal Simango.
-"Arranjem-se como puderem, mas não deixem que os meninos sigam para Niassa porque de lá não mais regressarão com vida" – diziam.
Mas a uma dada altura a nostalgia provocada pela separação forçada da família ter-se-á apossado de forma dramática do filho mais velho do Reverendo Simango. O jovem optou então por arriscar, espantando a fera na sua toca. Nos fins de 1981, sem o conhecimento dos tios, Lutero escreveu uma petição ao então ministro residente na província de Sofala, solicitando-lhe que autorizasse a sua deslocação e dos irmãos a Niassa, a fim de visitar os pais. Numa reflexão retrospectiva, Lutero Simango acredita também numa possível existência de separação de poderes no seio da Frelimo daquela época, pois, segundo suas palavras, a existir um plano para os liquidar, ou o ministro residente não estava ao par dele ou, simplesmente, quis poupa-los. "De contrário, não faria o que fez"55.
Com efeito, em face da petição que lhe chegou as mãos, o então ministro residente mandou chamar o rapaz. Eis o que diz Lutero Simango:
" Quatro ou cinco dias depois de ter recebido a minha petição, logo de manhã cedo mandou um jeep militar lá para casa do tio Francisco onde eu vivia, no bairro do Esturro. Foram lá 4 militares bem fardados e armados com AKM's. Os meus irmãos viviam no Bairro do Vaz com o tio Elijah. Como o jeep chegou antes das sete horas, ao tocarem a campainha quem abriu aporta foi o tio Francisco que se preparava para ir ao serviço. Ao deparar com dois homens armados, o velho entrou em pânico. Mas os homens acalmaram-no. Disseram-lhe que não havia problemas nenhuns. Perguntaram muito civilizadamente se era naquela casa onde vivia o filho de Uria Simango. O meu tio disse que sim mas quis saber o que se estava passando. Os homens insistiram que não havia problemas nenhuns. Tinham vindo a mando de sua excelência levar o senhor Lutero para ir ao gabinete do governo, porque sua excelência queria falar com ele. Eu ainda estava na cama. Acordaram-me. E como o velho nada sabia da carta que eu havia feito, ficou mais baralhado. Preparei-me então para seguir com aqueles homens. Os tipos até me deixaram matabichar. Estavam todos atentos aos meus gestos e sorridentes. Acho que nunca tinham visto de perto um filho de um reaccionário!... Achavam graça me vendo comer. Depois saí com eles direitinho para o gabinete do ministro residente. Só que quando lá chego, quem me recebe não é o ministro. Foi o chefe do gabinete. O homem foi muito gentil também. Estava todo sorridente. Começou por oferecer-me um café que recusei. Depois disse que o ministro recebeu a minha carta e pediu-lhe que conversasse comigo antes de estar frente a frente com ele num encontro que se previa para a semana seguinte. Disse que o governo sabia que nós estávamos passando algumas necessidades. Que o camarada ministro deu instruções para disponibilizar uma casa recheada de mobílias e uma viatura para nos os três, etc., etc. Estavam dispostos a disponibilizar-nos uma mesada e garantir as necessidades escolares. Eu deixei-lhe falar e depois disse-lhe: ok, diga ao camarada ministro que eu aceito que o governo tome conta de nós e nos dê mundos e fundos. Mas há uma condição: Que tudo isso esteja aliado a preocupação número um, visitar os nossos pais. Que nos fosse permitido, nem que uma vez de seis em seis meses, visitar nossos país. De contrário, nada feito.
Ele disse que ia encaminhar a preocupação ao ministro. Só que nunca mais me contactaram e eu também não insisti, porque quando regressei a casa os tios estavam em alvoroço. Coitado do tio, nem foi trabalhar nesse dia. A tia Mazwiona, então, estava mergulhada num charco de lágrimas. Só parou de soluçar quando me viu a entrar. Contei-lhes o que havia feito. Nesse dia levei um bom puxão de orelhas e avisaram-me de que nunca mais queriam ouvir falar disso. Foi daí que passei a saber que já houve tentativas de levar-nos para Niassa, e tudo fora água abaixo porque outros diziam que isso significava morte certa. Isso aconteceu entre 1977 e 1978. Como eu não soubesse nada disso, durante as férias escolares de 1981, se a memória não me engana, fiz então a petição, sem conhecimento dos tios. No ano seguinte vim para a Universidade em Maputo. Nunca mais se falou do assunto, porque os tios voltaram a avisar-me que em Maputo eu tinha a missão de estudar e nada de me meter em coisas que podiam dificultar os meus estudos. Penso que eles já desconfiavam que os nossos pais estavam mortos."56.
Bazuca saiu limpo do esquema por ele montado, mas não viveria por muito mais tempo. Nos meados de Janeiro de 1982, eclodiu no Centro de M'telela um problema de índole passional. Uma das filhas do comandante Mombola, já suficientemente donzela para atrair a gula dos homens, seria o centro de gravitação de dois amores: o de Manuel Mapfavisse (Bazuca) e o do jovem operador de rádio de comunicações do Centro. Enquanto Mapfavisse se esgrimia em presentear a rapariga de bugigangas que trazia de Lichinga onde constantemente se deslocava em missão de serviço e em visita a sua esposa que já nessa altura vivia naquela cidade, clandestinamente, a donzela correspondia ao amor do jovem operador de rádio, fazendo de Bazuca um bobo contente. Bazuca sabia que apesar das suas aliciantes ofertas, quem efectivamente tirava proveito da beldade da rapariga era o homem das telecomunicações que, para além de ainda jovem e com boas perspectivas de vir a casar com a rapariga, era, por outro lado, mais culto literariamente do que ele. Bazuca não encontrava formas de se desembaraçar do jovem apaixonado.
Um dia, a esposa do comandante, vê, na calada da noite, um vulto a sair da janela que dava acesso ao quarto da filha. Alarmada com a situação, informou de imediato o marido o que acabava de presenciar. Ferido no seu ego, o casal Mombola entende então pôr a filha na "prensa", para que dissesse quem havia saído pela janela naquela noite. A menina nega pelas "cinzas dos seus antepassados" ter visto alguém. O assunto não morreu por aí. No dia seguinte ao acontecimento, Mombola pôs em formatura todos os guardas que não estavam de serviço na noite anterior. Deles procura saber quem andava a saltar das janelas das meninas na calada na noite.
Enquanto aguardava pela resposta, confidenciou o sucedido à Bazuca, um que se encontrava a seu lado. Este, sem perca de tempo, sentenciou:
"É o Radista" - referindo-se ao jovem operador de rádio:
Havia muito tempo que Bazuca andava desconfiado dos movimentos do rapaz. O operador de rádio foi assim arrastado da formatura e de seguida, severamente punido. Tudo ficou por aí.
Entretanto, a simples punição que consistiu em fazer buracos de dois metros de profundidade e tornar a tapá-los durante quatro dias consecutivos não agradou a Bazuca. O "radista" tinha que sair do seu caminho.
Numa das suas habituais viagens à Lichinga, Bazuca forja um documento, com carimbo e tudo, onde se lia que o "radista" devia ser fuzilado, porque, segundo dados em poder da Contra Inteligência Militar em Lichinga, o rapaz passava informações ao inimigo. No seu regresso ao Centro, Bazuca exibe a Ordem de Serviço a Mombola. Dada a autenticidade do documento, ao comandante nada restou senão executar a medida. Para alegria de Manuel Mapfavisse, aliás, Bazuca, o jovem "radista" foi executado, deixando-lhe livre o caminho para a rapariga em disputa.
Passaram-se semanas até que o comandante se deslocou a Lichinga, desta feita sem ser acompanhado de Bazuca. O jovem operador de rádio, fora, entretanto, substituído por outro, o qual, perante os insistentes pedidos de colegas em Lichinga, não ousava informá-los por via da rede de telecomunicações os pormenores do que ocorrera com o jovem colega. A notícia da liquidação do "radista" chegou a Lichinga por vias não claras. Os operadores de rádio naquela cidade faziam notar ao novo operador de M'telela que o assunto já constava da agenda do chefe provincial da CIM. De facto, assim que Mombola chegou a capital provincial, o chefe da CIM quis ouvir do comandante do campo de M'telela o que se passara com o jovem operador das telecomunicações daquele Centro. Mombola, perplexo e boquiaberto, apercebe-se de que algo não batia certo, pois que a execução daquele rapaz fora a mando daquele mesmo homem que agora o questionava. Não fazia sentido que o chefe local da CIM quisesse saber de histórias passadas. Decide-se a contar tudo e informa que agiu de acordo com a Ordem de Serviço vinda do gabinete do próprio chefe do CIM.
Em face do que acabava de escutar, o chefe da CIM aconselhou Mombola a manter-se calmo. Deu ordens para que Bazuca fosse chamado à Lichinga com a maior urgência possível.
Uma vez em Lichinga, Bazuca comparece no gabinete do chefe da CIM. A princípio não se apercebe de que havia algo de errado. Desperta quando viu o seu Comandante, de semblante pesado, a entrar e tomar lugar no gabinete sob ordens do chefe da CIM. Confrontado com a célebre Ordem de Serviço, Bazuca nada soube explicar. É imediatamente preso e encaminhado para as celas do comando provincial da CIM em Lichinga. Depois de se confirmar que a Ordem de Serviços havia sido forjada, e que afinal, a história da fuga de Joana Simeão havia igualmente sido por si esquematizada, Bazuca viria a morrer enquanto se encontrava sob detenção em Lichinga, ao que se diz, vítima de um golpe de baioneta espetada por um outro prisioneiro. O golpe, desferido do lado inferior esquerdo do pescoço, provocou-lhe morte instantânea e um certo alívio entre alguns dos seus colegas em M'telela que já andavam cansados das peripécias de Bazuca58.
"A partir da morte de Bazuca começou a desvendar-se muita coisa em torno dos seus segredos e da forma como Simango e outros presos foram mortos. Mombola, apesar de na altura ser o comandante do Centro, era um homem calmo. Era apenas obediente às ordens de Lichinga e não queria problemas para ele. Bazuca não. Esse inventava ordens dele e até aldrabava Mombola. Alguns até ficaram felizes quando se soube que ficou preso em Lichinga. Quando chegou a notícia da sua morte, então é que se pulou de alegria porque era daqueles que punia a torto e a direita lá no Centro. Alguns guardas tinham cicatrizes provocadas pelas punições dele e sempre que se envolvesse em problemas pessoais com pessoas em Lichinga, arranjava forma de trazê-las como presos em M'telela para maltratá-las. Quem me conta a história dele é um dos guardas lá de M'telela, pouco tempo depois que nos chegou a notícia da sua morte"59.
Precavendo possíveis transtornos por parte da esposa de Bazuca que certamente não tardaria a procurar saber junto da CIM em Lichinga das causas do silêncio do marido, e dado que esta não possuía filhos ou familiares próximos naquela cidade que pudessem reclamar o seu desaparecimento, a chefia da CIM entendeu "por bem" encaminhá-la à M'telela para visitar o marido "que estava passando alguns problemas de saúde!..."60. A senhora havia sido colocada na mesma palhota onde viviam Celina Simango e Lúcia Tangane. Foi executada no mesmo dia com estas duas.
Os responsáveis? Todos sabemos os nomes.
Mas que ligará M'telela a Wiriamu?
Vejemos o que escreve, em 1977, Inácio de Passos, residente em Tete, no seu livro "Moçambique a escalada do terror":
Mas que ligará M'telela a Wiriamu?
Vejemos o que escreve, em 1977, Inácio de Passos, residente em Tete, no seu livro "Moçambique a escalada do terror":
Um outro elemento da minha confiança — comandante de talabarte da
Frelimo — era também meu confidente. Por ele tinha conhecimento dos
resultados do trabalho de limpeza ao cérebro de que o Presidente Samora
Machel estava a ser cobaia pelo grupo marxista do Partido, resultados
que eram palpáveis nos seus discursos e nas suas atitudes. Esse
comandante, que para sua segurança não divulgo o nome, alarmava-se de
dia para dia com o procedimento dos dirigentes da Frelimo.
Como o comandante Machava, não representava nenhuma corrente política e ainda possuía em comum com ele o desejo de preservar a ordem social e barrar a evolução de Moçambique para o liberalismo e para a anarquia. Tanto um como outro declinavam a ocupação de papéis de executantes da verdadeira justiça que ambicionavam para Moçambique, e aguardavam com ansiedade o momento que lhes proporcionasse, como em 1964, colocaram-se inteiramente ao dispor do seu país, integrando-se sob o verdadeiro mando do povo.
Com ele falei sobre a Fumo. Com ele discuti, e nem sempre estávamos de acordo, sobre a Rádio África Livre. De tudo quanto lhe contava guardava segredo, pois sabia que o seu silêncio não era traição ao seu povo, pois traição às massas e ao Partido era o procedimento e as ideias dos actuais dirigentes. Mas também por ele tomei conhecimento de factos que sei que até hoje não foram por ninguém revelados.
Quem dirigiu os militares portugueses a Wiriamu, ao «massacre» que serviu de ponta de lança à propaganda anti-portuguesa, encetada com sucesso pelo padre Hastings?
Quem os guiou num pequeno «Volks Wagen», protegido por aperradas armas até ao acesso da picada e os acompanhou até ao local?
Quem assassinou, após o 25 de Abril, o seu serviçal, conhecedor do seu segredo, para que a sua criminosa atitude não fosse divulgada aos dirigentes da Frelimo?
O seu nome é Raul Frechaud Fernandes, primo carnal de Sérgio Vieira, um dos homens que dirige e automatiza Samora Moisés Machel.
— Mas a Frelimo não sabe isso? — interroguei-o.
— Eu próprio informei o comandante José Moiane e ele como comandante provincial não procedeu. O velho afirmou que atitudes antigas eram para esquecer. Eu creio que ele não quer tocar na família de Sérgio Vieira... — respondeu-me.
Raul Frechaud Fernandes, mestiço asiático, é dirigente do Departamento Distrital da Frelimo de Informação e Propaganda. Mas apenas ocupa esse cargo após a Independência. Possuía uma pequena cantina comercial de onde o povo de Wiriamu se abastecia. Desse povo veio a adquirir os meios de fortuna que hoje possui, pois lhe furtava o gado que vendia a militares portugueses em candonga.
Colaborou no assassinato do povo moçambicano que mais intimamente lhe esteve ligado mas hoje é um dos dirigentes do Partido. O povo, porém, sabe que os seus inimigos de ontem são os de hoje. São seus inimigos desde que as teorias e as atitudes do dr. Eduardo Mondlane foram silenciadas pelo deflagrar de um livro armadilhado.
Como o comandante Machava, não representava nenhuma corrente política e ainda possuía em comum com ele o desejo de preservar a ordem social e barrar a evolução de Moçambique para o liberalismo e para a anarquia. Tanto um como outro declinavam a ocupação de papéis de executantes da verdadeira justiça que ambicionavam para Moçambique, e aguardavam com ansiedade o momento que lhes proporcionasse, como em 1964, colocaram-se inteiramente ao dispor do seu país, integrando-se sob o verdadeiro mando do povo.
Com ele falei sobre a Fumo. Com ele discuti, e nem sempre estávamos de acordo, sobre a Rádio África Livre. De tudo quanto lhe contava guardava segredo, pois sabia que o seu silêncio não era traição ao seu povo, pois traição às massas e ao Partido era o procedimento e as ideias dos actuais dirigentes. Mas também por ele tomei conhecimento de factos que sei que até hoje não foram por ninguém revelados.
Quem dirigiu os militares portugueses a Wiriamu, ao «massacre» que serviu de ponta de lança à propaganda anti-portuguesa, encetada com sucesso pelo padre Hastings?
Quem os guiou num pequeno «Volks Wagen», protegido por aperradas armas até ao acesso da picada e os acompanhou até ao local?
Quem assassinou, após o 25 de Abril, o seu serviçal, conhecedor do seu segredo, para que a sua criminosa atitude não fosse divulgada aos dirigentes da Frelimo?
O seu nome é Raul Frechaud Fernandes, primo carnal de Sérgio Vieira, um dos homens que dirige e automatiza Samora Moisés Machel.
— Mas a Frelimo não sabe isso? — interroguei-o.
— Eu próprio informei o comandante José Moiane e ele como comandante provincial não procedeu. O velho afirmou que atitudes antigas eram para esquecer. Eu creio que ele não quer tocar na família de Sérgio Vieira... — respondeu-me.
Raul Frechaud Fernandes, mestiço asiático, é dirigente do Departamento Distrital da Frelimo de Informação e Propaganda. Mas apenas ocupa esse cargo após a Independência. Possuía uma pequena cantina comercial de onde o povo de Wiriamu se abastecia. Desse povo veio a adquirir os meios de fortuna que hoje possui, pois lhe furtava o gado que vendia a militares portugueses em candonga.
Colaborou no assassinato do povo moçambicano que mais intimamente lhe esteve ligado mas hoje é um dos dirigentes do Partido. O povo, porém, sabe que os seus inimigos de ontem são os de hoje. São seus inimigos desde que as teorias e as atitudes do dr. Eduardo Mondlane foram silenciadas pelo deflagrar de um livro armadilhado.
Povo de Moçambique, acorda!
Fernando Gil
Fernando Gil
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