Elisio Macamo
Não estou a pensar em nada. Apenas nisto:
O que queremos ser
Fui assistir Panaíbra Gabriel, um dançarino moçambicano, no seu mais recente show „Tempo e Espaço: Os Solos da Marrabenta“. Fiquei impressionado e maravilhado. Não entendo muito de coreografia, por isso deixo essa parte para lá. O baile todo é um monólogo introspectivo durante o qual o dançarino constata que seus pais nasceram em Inhambane, que ele nasceu em Moçambique quando o País ainda era província ultramarina portuguesa, que o pai foi assimilado, que Moçambique foi República Popular, depois apenas República e ele indaga-se: sou bitonga, português, comunista democrático, africano falante da língua portuguesa? E ele contorce-se à procura duma resposta que só lhe ocorre quando constata que o que resta são apenas músculos, ossos e, talvez, a consciência de que mais do que qualquer outra coisa ele é uma experiência que dá na marrabenta, isto é numa mistura feita de tudo isso.
Um espectáculo impressionante e que me pôs a pensar em muita coisa numa altura em que as notícias que vêm do País são preocupantes. Curiosamente, durante o percurso histórico que ele faz ao longo dos marcos identitários que lhe causam problemas, ele não fala da guerra dos 16 anos, talvez porque esta parte mais negra da nossa história recente não tenha por onde se pegue de tão esvaziada de sentido que foi. Quem sabe realmente porque foi aquela guerra? Quem pode identificar palavras que a possam descrever duma maneira que nos permita perceber porque ela, aparentemente, ainda não terminou? Eu não consigo. E admiro todo aquele que tem segurança suficiente para tecer considerações sólidas a partir de algo sem explicação porque simplesmente vazio de sentido. O facto de o dançarino ter ignorado completamente essa guerra mostra, talvez, a profunda sensibilidade artística que não é, infelizmente, apanágio da abordagem académica das coisas. O artista, ao contrário do académico, parece saber o que não sabe.
Ocorrem-me estas coisas todas a propósito da ameaça de guerra em Moçambique. Embora a situação seja preocupante, eu não creio que vá haver guerra. E se tivermos em mente o número de pessoas que morrem de forma violenta no País – violência de todo o tipo desde a armada até aquela da pobreza – não acho prudente focalizar a análise das escarramuças recentes no que elas querem dizer em relação ao futuro. É verdade que há um contexto político que teima em ser explosivo e que, por isso, confere outro sentido ao que acontece. Não obstante, vistas no contexto do presente do País estas escarramuças reflectem um padrão infelizmente rotineiro que pode até ser funcional à reprodução do tipo de sociedade que nos tornamos. A nossa rotina é a rotina da intransigência, do açambarcamento da razão e do direito que cada um de nós se arroga de saber tudo melhor do que qualquer um de nós.
Contudo, há muita perplexidade por aí, de todos os lados – no seio do governo, que gostaria de dar substância ao sentido de poder que pensa ter, mas não tem confiança suficiente nos órgãos que poderiam dar corpo a isso (polícia e exército) como também no seio da Renamo, cujo curso errático há muito desautorizou o uso do termo “oposição” uma vez que este só cria confusão analítica – que nós os auto-intitulados analistas tentamos tornar coerente confundindo os nossos esquemas analíticos com as motivações dos actores políticos. E isto tudo misturado com medos e receios. Assim vamos desfiando teorias bem plausíveis do estilo (a) Guebuza está a executar uma estratégia de eliminação da Renamo e perpetuação do seu poder; (b) Dhlakhama está a executar uma estratégia de recuperação de protagonismo utilizando para o efeito a ameaça de guerra. Tudo isto é reflexo do efeito nefasto da crença na identidade entre os nossos esquemas analíticos e a racionalidade dos actores. É também reflexo da crença na ideia segundo a qual um plano bem pensado vai ser executado da forma como foi pensado. O único que é encorajador nestes cenários todos é que, pelo menos, (ainda) não entram chineses, nem os brasileiros da Vale.
O que custa aceitar como ponto de partida para a análise de fenómenos desta natureza é a ideia segundo a qual ninguém faria a mínima ideia do que anda por aí a fazer. Que o chefe de informação da Renamo seja um desgraçado qualquer refém dum discurso que ele próprio não entende, mas dentro do qual ele aprendeu a dar sentido à sua própria vida e ao País; que o Presidente Guebuza esteja tão perplexo como todos nós, mas rodeado de gente e instituições que falam e agem de acordo com uma ideia que elas têm daquilo que pensam ser a sua vontade; que o grande analista de televisão, do jornal, do “Facebook” e da rádio – que nunca aprendeu a reflectir sobre os méritos duma questão, ou se aprendeu prefere ignorar, mas sim a procurar os bons e os maus e distribuir culpas – se sinta na obrigação de produzir um discurso que torne coerente o que não tem coerência, racional o que é irracional, direccionado o que está completamente desnorteado simplesmente porque dizer perante uma câmara de televisão que algo não faz sentido seria o mesmo que reconhecer incapacidade analítica. Nenhum feiticeiro que se preze fica sem explicação para alguma coisa. Nenhum fanático também. O mundo precisa de ter explicação.
Não há-de haver guerra em Moçambique, mas, sinceramente, não sei para que servirá a paz. Para já, será a mesma paz de sempre. A paz da irresponsabilidade no uso da palavra. Uma irresponsabilidade que consiste em falar e depois reflectir (nessa ordem), em acreditar no último livro que se leu desde que este sustente um ponto de vista que surgiu assim mesmo; uma irresponsabilidade que consiste em comentar os assuntos da terra pintando os maus como sendo extremamente maus ao ponto de não merecerem partilhar o mundo connosco, e os bons como sendo as vítimas eternas e homogêneas dos maus; uma irresponsabilidade que consiste em não saber distinguir o útil e o supérfluo, numa incapacidade que se reflecte na dificuldade de saber condenar e apoiar sem, contudo, pôr em causa o subtracto normativo da ordem democrática – as reivindicações da Renamo podem ser justas, para quem as compreende, claro, mas o tom e a forma como elas são feitas deviam ferir as sensibilidades democráticas de todos nós, independentemente do que sentimos em relação ao governo do dia; na verdade, só quem consegue fazer esta distinção é que pode ter autoridade moral para condenar, se achar que tem mesmo que condenar seja o que for. Esse tipo de paz será sempre o vestíbulo da guerra. A única alternativa pior a este tipo de paz é uma guerra sem frentes claras (como sempre) e por nada (idem).
Mas é justamente neste ponto onde o dançarino Panaíba Gabriel volta à ribalta. O seu baile é uma longa constatação duma coisa mito simples. Nós não somos o que somos. Nós somos o que queremos ser. E em Moçambique anda aí muita gente desorientada em relação a isto, razão pela qual nâo vê nenhum problema em se descrever como cristão, da oposição ou do governo, amante dos direitos humanos, changana ou sena, jovem, isto mais aquilo, mas, em certos momentos, e quase que por magia, reduz tudo e todos a uma única variável: este é da Frelimo ou da Renamo! Este é changana ou sena! Este quer ser ministro, etc. Com esse esquema de pensamento é fácil analisar tudo e tornar coerente o que nenhuma coerência tem. Aliás, a análise nem é necessária. O que não está claro, está claro. Na verdade, o mais trágico em Moçambique não é a ameaça de guerra e a perplexidade de quem a devia prevenir. O mais trágico é que a nossa sociedade se tenha transformado num corpo disforme que permite a coexistência de todo o tipo de gente engraçada: defensores de direitos humanos que não acreditam na tolerância; defensores da liberdade de imprensa que acham que ela alcança os seus limites quando alguém diz uma coisa que lhes incomoda; sociedade civil que é, na verdade, um ramo industrial; patriotas que acham que somos os piores em tudo e merecemos sê-lo. A ameaça de guerra que páira sobre o País, se de facto ameaça de guerra páira, é um aviso à navegação. O assunto não é nem Guebuza, nem Dhlakhama. O assunto somos nós, isto é o que cada um de nós quer ser. Há algo profundamente incoerente numa sociedade que pode passar a vida a diabolizar tudo e todos, mas esperar que haja sensatez na abordagem dos momentos de crise. Se, contra todas as previsões, houver guerra em Moçambique ela não vai ter começado na desorientação de Dhlakhama, nem na arrogância de Guebuza. Ela vai ter começado nos pequenos comentários incoerentes e irresponsáveis, nas práticas quotidianas sem nenhum sustento normativo e no oportunismo que caracteriza a vida de muitos de nós. Uma guerra é sempre o falhanço duma sociedade inteira. Sobretudo duma sociedade que detesta textos longos... parabéns a quem leu até aqui!
Alguém já chamou a isso de País da Marrabenta, mas marrabenta mesmo de rebentar.See more
O que queremos ser
Fui assistir Panaíbra Gabriel, um dançarino moçambicano, no seu mais recente show „Tempo e Espaço: Os Solos da Marrabenta“. Fiquei impressionado e maravilhado. Não entendo muito de coreografia, por isso deixo essa parte para lá. O baile todo é um monólogo introspectivo durante o qual o dançarino constata que seus pais nasceram em Inhambane, que ele nasceu em Moçambique quando o País ainda era província ultramarina portuguesa, que o pai foi assimilado, que Moçambique foi República Popular, depois apenas República e ele indaga-se: sou bitonga, português, comunista democrático, africano falante da língua portuguesa? E ele contorce-se à procura duma resposta que só lhe ocorre quando constata que o que resta são apenas músculos, ossos e, talvez, a consciência de que mais do que qualquer outra coisa ele é uma experiência que dá na marrabenta, isto é numa mistura feita de tudo isso.
Um espectáculo impressionante e que me pôs a pensar em muita coisa numa altura em que as notícias que vêm do País são preocupantes. Curiosamente, durante o percurso histórico que ele faz ao longo dos marcos identitários que lhe causam problemas, ele não fala da guerra dos 16 anos, talvez porque esta parte mais negra da nossa história recente não tenha por onde se pegue de tão esvaziada de sentido que foi. Quem sabe realmente porque foi aquela guerra? Quem pode identificar palavras que a possam descrever duma maneira que nos permita perceber porque ela, aparentemente, ainda não terminou? Eu não consigo. E admiro todo aquele que tem segurança suficiente para tecer considerações sólidas a partir de algo sem explicação porque simplesmente vazio de sentido. O facto de o dançarino ter ignorado completamente essa guerra mostra, talvez, a profunda sensibilidade artística que não é, infelizmente, apanágio da abordagem académica das coisas. O artista, ao contrário do académico, parece saber o que não sabe.
Ocorrem-me estas coisas todas a propósito da ameaça de guerra em Moçambique. Embora a situação seja preocupante, eu não creio que vá haver guerra. E se tivermos em mente o número de pessoas que morrem de forma violenta no País – violência de todo o tipo desde a armada até aquela da pobreza – não acho prudente focalizar a análise das escarramuças recentes no que elas querem dizer em relação ao futuro. É verdade que há um contexto político que teima em ser explosivo e que, por isso, confere outro sentido ao que acontece. Não obstante, vistas no contexto do presente do País estas escarramuças reflectem um padrão infelizmente rotineiro que pode até ser funcional à reprodução do tipo de sociedade que nos tornamos. A nossa rotina é a rotina da intransigência, do açambarcamento da razão e do direito que cada um de nós se arroga de saber tudo melhor do que qualquer um de nós.
Contudo, há muita perplexidade por aí, de todos os lados – no seio do governo, que gostaria de dar substância ao sentido de poder que pensa ter, mas não tem confiança suficiente nos órgãos que poderiam dar corpo a isso (polícia e exército) como também no seio da Renamo, cujo curso errático há muito desautorizou o uso do termo “oposição” uma vez que este só cria confusão analítica – que nós os auto-intitulados analistas tentamos tornar coerente confundindo os nossos esquemas analíticos com as motivações dos actores políticos. E isto tudo misturado com medos e receios. Assim vamos desfiando teorias bem plausíveis do estilo (a) Guebuza está a executar uma estratégia de eliminação da Renamo e perpetuação do seu poder; (b) Dhlakhama está a executar uma estratégia de recuperação de protagonismo utilizando para o efeito a ameaça de guerra. Tudo isto é reflexo do efeito nefasto da crença na identidade entre os nossos esquemas analíticos e a racionalidade dos actores. É também reflexo da crença na ideia segundo a qual um plano bem pensado vai ser executado da forma como foi pensado. O único que é encorajador nestes cenários todos é que, pelo menos, (ainda) não entram chineses, nem os brasileiros da Vale.
O que custa aceitar como ponto de partida para a análise de fenómenos desta natureza é a ideia segundo a qual ninguém faria a mínima ideia do que anda por aí a fazer. Que o chefe de informação da Renamo seja um desgraçado qualquer refém dum discurso que ele próprio não entende, mas dentro do qual ele aprendeu a dar sentido à sua própria vida e ao País; que o Presidente Guebuza esteja tão perplexo como todos nós, mas rodeado de gente e instituições que falam e agem de acordo com uma ideia que elas têm daquilo que pensam ser a sua vontade; que o grande analista de televisão, do jornal, do “Facebook” e da rádio – que nunca aprendeu a reflectir sobre os méritos duma questão, ou se aprendeu prefere ignorar, mas sim a procurar os bons e os maus e distribuir culpas – se sinta na obrigação de produzir um discurso que torne coerente o que não tem coerência, racional o que é irracional, direccionado o que está completamente desnorteado simplesmente porque dizer perante uma câmara de televisão que algo não faz sentido seria o mesmo que reconhecer incapacidade analítica. Nenhum feiticeiro que se preze fica sem explicação para alguma coisa. Nenhum fanático também. O mundo precisa de ter explicação.
Não há-de haver guerra em Moçambique, mas, sinceramente, não sei para que servirá a paz. Para já, será a mesma paz de sempre. A paz da irresponsabilidade no uso da palavra. Uma irresponsabilidade que consiste em falar e depois reflectir (nessa ordem), em acreditar no último livro que se leu desde que este sustente um ponto de vista que surgiu assim mesmo; uma irresponsabilidade que consiste em comentar os assuntos da terra pintando os maus como sendo extremamente maus ao ponto de não merecerem partilhar o mundo connosco, e os bons como sendo as vítimas eternas e homogêneas dos maus; uma irresponsabilidade que consiste em não saber distinguir o útil e o supérfluo, numa incapacidade que se reflecte na dificuldade de saber condenar e apoiar sem, contudo, pôr em causa o subtracto normativo da ordem democrática – as reivindicações da Renamo podem ser justas, para quem as compreende, claro, mas o tom e a forma como elas são feitas deviam ferir as sensibilidades democráticas de todos nós, independentemente do que sentimos em relação ao governo do dia; na verdade, só quem consegue fazer esta distinção é que pode ter autoridade moral para condenar, se achar que tem mesmo que condenar seja o que for. Esse tipo de paz será sempre o vestíbulo da guerra. A única alternativa pior a este tipo de paz é uma guerra sem frentes claras (como sempre) e por nada (idem).
Mas é justamente neste ponto onde o dançarino Panaíba Gabriel volta à ribalta. O seu baile é uma longa constatação duma coisa mito simples. Nós não somos o que somos. Nós somos o que queremos ser. E em Moçambique anda aí muita gente desorientada em relação a isto, razão pela qual nâo vê nenhum problema em se descrever como cristão, da oposição ou do governo, amante dos direitos humanos, changana ou sena, jovem, isto mais aquilo, mas, em certos momentos, e quase que por magia, reduz tudo e todos a uma única variável: este é da Frelimo ou da Renamo! Este é changana ou sena! Este quer ser ministro, etc. Com esse esquema de pensamento é fácil analisar tudo e tornar coerente o que nenhuma coerência tem. Aliás, a análise nem é necessária. O que não está claro, está claro. Na verdade, o mais trágico em Moçambique não é a ameaça de guerra e a perplexidade de quem a devia prevenir. O mais trágico é que a nossa sociedade se tenha transformado num corpo disforme que permite a coexistência de todo o tipo de gente engraçada: defensores de direitos humanos que não acreditam na tolerância; defensores da liberdade de imprensa que acham que ela alcança os seus limites quando alguém diz uma coisa que lhes incomoda; sociedade civil que é, na verdade, um ramo industrial; patriotas que acham que somos os piores em tudo e merecemos sê-lo. A ameaça de guerra que páira sobre o País, se de facto ameaça de guerra páira, é um aviso à navegação. O assunto não é nem Guebuza, nem Dhlakhama. O assunto somos nós, isto é o que cada um de nós quer ser. Há algo profundamente incoerente numa sociedade que pode passar a vida a diabolizar tudo e todos, mas esperar que haja sensatez na abordagem dos momentos de crise. Se, contra todas as previsões, houver guerra em Moçambique ela não vai ter começado na desorientação de Dhlakhama, nem na arrogância de Guebuza. Ela vai ter começado nos pequenos comentários incoerentes e irresponsáveis, nas práticas quotidianas sem nenhum sustento normativo e no oportunismo que caracteriza a vida de muitos de nós. Uma guerra é sempre o falhanço duma sociedade inteira. Sobretudo duma sociedade que detesta textos longos... parabéns a quem leu até aqui!
Alguém já chamou a isso de País da Marrabenta, mas marrabenta mesmo de rebentar.See more
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